“Precisou alguém morrer pra ser levado a sério”: a pandemia no presídio feminino de Piraquara

L. passou parte da pandemia no presídio feminino de Piraquara e conta como a covid-19 chegou e foi recebida na penitenciária

Desde o início da pandemia tenho acompanhado a mobilização de familiares de detentos buscando o cumprimento dos direitos fundamentais dos encarcerados no Brasil. São direitos garantidos pela Constituição Federal (a exemplo, o art. 5°, inciso XLIX, que assegura ao preso o respeito à integridade física e moral; e o inciso II,I que diz que  “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”) e também pela Lei de Execuções Penais, que elenca uma série de assistências asseguradas aos privados de liberdade. 

Esposas, mães, filhas, companheiras que acamparam diversas vezes em frente ao Palácio do Iguaçu, em frente ao DEPEN, exigindo visitas virtuais, a entrega de encomendas (sacola) no presídio masculino – devido o alto custo do sedex – e, em muitos casos, em busca apenas de informações sobre seus parentes privados de liberdade. 

Em todos os encontros eu e as esposas dos encarcerados nos fizemos a mesma pergunta: se no presídio masculino está dessa forma, qual será a situação das mulheres que estão custodiadas na unidade prisional? 

Bem, me lembro que, algumas vezes, chegamos a gastar a conversa tentando entender como e porque a luta que estava sendo feita não tinha a mesma representatividade de famílias das mulheres encarceradas e sobre a dificuldade de encontrarmos informações sobre a vida dessas mulheres dentro do presídio.

Em boa parte desses diálogos endossamos várias teorias sobre a paridade da conjuntura em ambos os presídios com relação à superlotação, a problemas estruturais, insalubridade, condições precárias de higiene, doenças e outras tantas já presentes no imaginário brasileiro. Era a nossa forma de trazer para a luta do dia a presença dessas mulheres. 

Ainda que sob as defesas mais fervorosas sobre os direitos dessas mulheres, a verdade é que nada sabíamos sobre como estava sendo o dia-a-dia delas. Existe, desde sempre, uma grande dificuldade em obter informações sobre as mulheres privadas de liberdade. Era certo que, dentre tão poucas informações e muitas elucubrações, especialmente neste período de pandemia, o que enxergávamos era o reforço da invisibilidade. Nada podíamos prever sobre outras violências e torturas (internas e externas) que poderiam estar acontecendo no sistema prisional, nas galerias ou no “xis” – como é chamada a cela. 

Na última mobilização feita por familiares de detentos em frente ao PEP I –  Penitenciária Estadual de Piraquara 1 – conheci L. que tinha acabado de deixar o sistema prisional feminino. Ainda na porta, ela conversava com duas esposas de detentos e trazia a narrativa de quem havia vivenciado um período de pandemia dentro do presídio feminino. Fiquei, então, de escrever seu relato. 

Qual seu nome e quanto tempo ficou no presídio feminino de Piraquara? 

L., 2 meses em Piraquara.

Lembra o mês que chegou ao presídio?

Foi em Abril de 2021.

Quando você chegou já havia casos de covid dentro do presídio?

Já, mas estava sendo abafado. 

Quais as medidas que estavam sendo tomadas? Havia respeito pelas mulheres? 

As guardas, algumas, te tratam de certa forma com dignidade, mas não havia nenhuma medida sendo tomada quando cheguei e as detentas nem imaginavam o surto iminente. 

As mães estavam amamentando ou as crianças foram retiradas do espaço? Estavam amamentando.

Se havia casos de covid, as mulheres estavam sendo isoladas das outras e recebendo atendimento médico? 

O isolamento só aconteceu depois de quase a cadeia inteira ter pego. Eles isolaram umas 33 pessoas que deram negativo porque o resto já havia pego.

Existe alguma atenção básica de saúde dentro do presídio?

Só os enfermeiros. O que salvou muitas vidas naqueles dias foi uma médica que caiu presa e veio de Umuarama, ela que ajudou e salvou várias meninas. Ela dizia quando era necessário levar pro SUS.

O presídio feminino oferece uma assistência médica. Essa é razão pra tanta presidiária, geralmente, ter só o atendimento do enfermeiro. Não resolve. E o médico demora pra ir lá. Os produtos de higiene para quem não tem o Sedex são bem rasos e, algumas vezes, temos que aguentar até o próximo mês, pois vem com falta.

Você se contaminou dentro do presídio com o covid? 

Sim. 

Teve atendimento externo, no SUS? 

Não tive atendimento externo.

Qual foi o procedimento que você recebeu quando estava com covid? Teve alguma medicação?

Azitromicina, paracetamol e só.

Tem conhecimento de algum relato de outras mulheres no atendimento do SUS? 

A grande maioria diz que tratam diferente, com desprezo, e não ligam pra o que a gente tem. Somos presas. 

Quais medidas você acha que foram erradas nesse processo dentro do presídio?

As medidas tomadas erradas foram as do começo onde tentaram abafar tudo pra que a gente não surtasse ao invés de deixar bem claro pra que todo mundo se prevenisse.

As mulheres estavam conseguindo fazer a visita online com os familiares? 

Não.

Quantas mulheres ficam em uma cela?

Geralmente, no máximo 3, mas não só por causa do covid. Em alguns casos, porque estão numa reforma, estava ficando até 5. 

Você soube de alguma morte dentro do presídio? Você se recorda como tomou conhecimento? 

A primeira morte a gente estava sendo examinado pelos enfermeiros e aí do nada a outra galeria começou a gritar que a menina tinha acabado de morrer, foi um choque. A cadeia ficou paranóica e desesperada. Qualquer sintoma já chamava para atender com medo de morrer mais gente. 

Ela morreu dentro da galeria na frente de outras mulheres então?

Morreu dentro do “xis” na frente das companheiras de cela.

Sabe dizer se estão vacinando as mulheres? 

Até quando eu estava lá não tinha vacina nenhuma.

Vocês chegaram a fazer algum pedido de intervenção na situação que não foi atendido?

Sim, aí disseram que estavam fazendo o máximo possível. A questão mais importante é que só recebemos o devido atendimento depois da primeira morte. Precisou alguém morrer pra ser levado a sério. Isso poderia ter sido evitado.

A situação na versão do Estado

Seguindo na contramão dos relatos de L. sobre os procedimentos adotados na prevenção e cuidado das mulheres encarceradas em relação à pandemia, e contrariando a matéria publicada em 31 de março de 2021 pela CBN Curitiba – que informava que o Depen, pela primeira vez, revelava que havia surto de covid entre as presas custodiadas na Penitenciária Feminina do Paraná (PFP) –  o governo do estado afirma que “desde o início da pandemia foram reforçados os protocolos de higiene, distribuídos EPIs para servidoras e reeducandas, realizada pulverização diária com hipoclorito, produção e distribuição de máscaras descartáveis e aventais, testagens periódicas, monitoramento pela equipe de saúde, dentre outras ações”.

O departamento, em resposta à entrevista, disse que existem 341 mulheres privadas de liberdade na PEP em Piraquara e que são apenas três mulheres por cela. Três também é o número de mães e bebês que, segundo alegam, “foram isoladas e alojadas 24 horas na unidade materno infantil (creche), que fica numa edificação separada das demais áreas de circulação e convívio, com o objetivo de minimizar o risco de contágio”. Estratégia que justificam, ter dado certo.

Contudo, o departamento afirma que “desde o início da pandemia foram registrados cerca de 250 casos. A maioria assintomática ou com sintomas leves” e que “os medicamentos foram fornecidos pela unidade, conforme a prescrição médica realizada pela médica da unidade, do CMP ou de hospital externo, conforme a gravidade”.

Dentro da PEP, diz o Depen, as mulheres contam com o atendimento de uma médica, uma enfermeira e um técnico de enfermagem e como complemento “são realizados atendimentos externos, no CMP, em hospitais e UPA da região, conforme a necessidade”.

“Tivemos quatro mulheres que faleceram em decorrência da Covid-19, em datas diferentes. Duas estavam internadas no Hospital Angelina Caron, uma na UPA de Pinhais e outra no Hospital de Reabilitação de Curitiba. Em todos os casos, elas apresentaram sintomas graves, foram encaminhadas para atendimento externo, ficaram internadas vários dias, foram intubadas, mas infelizmente não resistiram à doença. Todas tinham algum tipo de comorbidade”.

Durante esse período o procedimento de visitas e sacolas foram adaptados. “As visitas acontecem de forma virtual, por meio de videoconferência. Já as sacolas devem ser encaminhadas pelos Correios, via SEDEX”, relata o Depen. 

E, finalizando, o DEPEN informa que neste momento todas as mulheres privadas de liberdade na PFP já receberam ao menos a 1ª dose da vacina contra Covid-19.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima