Podcast – O tiro

/oi armamento da população nada tem a ver com cidadania, diz Daniel Medeiros

Quando surgiram as armas de fogo, foi o fim da honra e do formalismo que cercava as guerras. Se era para ter confronto, que os inimigos pudessem se olhar nos olhos e sentir a raiva pulsando no corpo de seu adversário. As diferenças eram as provenientes da força dos músculos e da habilidade, frutos de treinamento, de exercícios de uma vida toda.  A arma de fogo tornou a raiva distante, insípida. A morte do adversário deixou de ser algo que afetava o agressor. A tecnologia colocou o assassino à salvo da fúria ou do pânico de sua vítima. A morte foi desumanizada e se banalizou. A arma de fogo tornou o ódio um cavalo sem peias, uma energia sem foco, um tornado sem rumo. Um mal sem alvo certo.

As armas de fogo hoje carregam muitas balas e muitas balas são disparadas a esmo, sem precisão. As mortes são circunstâncias e não objetivos. O objetivo é disparar, o projetil atingindo algo no espaço e no tempo. Errou? Acontece. Matou a pessoa errada? Fazer o quê. Não há dignidade na arma de fogo. Nem fúria. Só tédio e preguiça. Nem a raiva se faz mais como antigamente.

Agora o governo quer que todos possamos carregar uma arma conosco, para nos defender. E parece que isso seria um direito, uma expressão da nossa cidadania.

Que bobagem!

As armas de fogo são a expressão da covardia de quem não é capaz de enfrentar as situações adversas e acredita que poderá atirar de longe ( ou de perto, não importa. Afinal, quem olha os outros nos olhos mesmo?) e garantir que a rua estará limpa para que passe carregando toda a imensidão de sua desimportância. Armas de fogo deixaram o campo das batalhas épicas entre nações inimigas para povoar as ruas porque desaprendemos a discutir e a por um fim nas discussões sem imaginar outro cenário para  esse fim senão o desaparecimento do outro. Querem disponibilizar   armas de fogo não para nossa proteção, mas para garantir que não precisarão discutir conosco, debater e convencer-nos . Bastará que apresentem suas armas e então tudo estará suficientemente dito: “sou um idiota, incapaz de conviver no espaço público, carrego meus bens com mais apreço do que meu nome e uma arma para impedir que queiram que me explique. Meu nome? Sou o que tem coisas, que pagou por elas e que agora me agarro a essas coisas como as cracas no casco dos navios. Quem se importaria com uma craca vagando solta pelo mar? Ser craca é muito humilhante. Mas com uma arma de fogo, torno-me uma craca capaz de furar cascos de navios e afunda-los. Agora quero ver quem me ignora ou me exige algo.”

A arma de fogo acabou com os embates de salão, as discussões de bar, os bate bocas de esquina, os debates acalorados nas academias, as trocas de textos nos jornais, as vozes alteradas nos parlamentos. Até mesmo nas arquibancadas dos estádios, as armas de fogo acabaram com as chacrinhas bem humoradas contra o adversário derrotado em campo. As armas de fogo são o cala boca da civilização.

Agora muitos querem ter um revolver na cinta, uma espingarda na parede, uma pistola debaixo do travesseiro. E quando isso tudo estiver regulamentado e permitido para dar ao indivíduo o direito de se defender – já que ele não tem mais ágora e não tem mais voz, nunca teve partido e nem instituições para defende-lo – aí, penso eu, que vai começar a angústia. Quando vai aparecer o inimigo para eu provar a importância da minha arma de fogo? Quando vão mexer na cerca ou roubar uma galinha para eu defender minha propriedade com o sangue do vagabundo? Quando vão forçar as janelas ou entrar no quintal e tentar levar o bujão de gás para que eu, da janela, mire nas costas do marginal e deixe um rastro de sangue justo nos muros para que os cachorros lambam pela manhã? Ah, quanta espera será necessária para que usemos nossas defesas e assim reafirmemos nossa cidadania contra os não cidadãos que nos ameaçam com a sua pobreza e a sua vileza e a sua vulnerabilidade?

Armas de fogo tornam a sociedade uma arena de gladiadores e feras e cristãos em um coliseu sem espectadores nas arquibancadas. Somos todos o pão e o circo de um Estado cujo imperador vê tudo pela janela enquanto incendeia as próprias vestes.

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