Podcast -Consciência histórica

Talvez seja isso o mais importante para produzir consciência histórica: resgatar as experiências entre as pessoas

No texto “O conto de natal de Auggie Wren”, o escritor norte-americano Paul Auster narra uma história que afirma ter realmente se passado com ele. Na esquina da Avenida Atlantic com a rua Clinton, no centro do Brooklyn, Nova York, há uma tabacaria, cujo gerente, Auggie Wren, era conhecido do escritor há onze anos. Auster sempre ia ao local comprar cigarrilhas holandesas. Um dia, depois destes anos todos, Auggie descobriu que Auster era escritor e, sentindo-se identificado com este “outro artista”, resolveu mostrar a ele o seu trabalho.

Diz o autor: “Em um quarto pequeno e sem janelas ao fundo da loja, abriu uma caixa de papelão e tirou doze álbuns de fotos, todos negros, idênticos. Era a obra de sua vida, me disse, e não levava mais que cinco minutos ao dia para realiza- la. Cada manhã dos últimos doze anos, às sete em ponto, se quedava parado na esquina da avenida Atlantic e da rua Clinton e sacava uma única foto, sempre da mesma vista”.  

Auster conta que ficou perplexo com aquele projeto e, vendo-se diante daqueles doze álbuns, começou a folhear sem grande entusiasmo aquela fileira de fotos iguais. Auggie, no entanto, permanecia imperturbável ao seu lado, sorrindo. Passados uns angustiantes minutos, ele então comentou: “Está indo demasiado rápido. Nunca poderá entender se não for mais devagar”.

Auster deu razão a ele. Se não tomamos tempo para olhar, nunca lograremos ver nada, pensou. E apanhou outro álbum e começou a folhear com calma, observando detidamente cada fotografia. Começou a notar as diferenças sutis que se pronunciavam naquela repetição de imagens: a variação do clima, dos dias da semana, o trânsito, as pessoas apressadas ou lânguidas em um passeio de domingo. Começou a reconhecer algumas pessoas e a perceber seus olhares, posturas e formas de comportamento.

E disse o escritor: “Compreendi que Auggie estava fotografando o tempo, o tempo natural e o tempo humano, e o fazia plantando-se em uma minúscula esquina do mundo e desejando que fosse sua, montando guarda em um espaço que havia escolhido para ele mesmo.

Como se compreendesse o que Paul Auster pensava, o gerente da tabacaria sussurrou: “Amanhã e amanhã e amanhã. O tempo se desliza com passo mesquinho”.

O romancista estadonidense usou esta narrativa no primeiro filme que ele roteirizou, Smoke. No enredo do filme, o escritor havia perdido a esposa, morta por uma bala perdida, o que havia arrasado com o espírito do personagem. Sempre de passagem pela tabacaria, torna-se amigo do gerente que resolve, então, mostrar-lhe as fotos. Sucede-se o mesmo cenário e os mesmos comportamentos. Meio aborrecido, o personagem-escritor folheia os álbuns até que se depara com as imagens da sua esposa. Fica emocionado com aquelas imagens prosaicas de sua mulher atravessando a rua, carregando pacotes, esperando um carro passar, caminhando despreocupadamente. Aquele encontro com a vida de sua esposa falecida o faz redescobrir a força para enfrentar sua própria falta de iniciativa para prosseguir, ele próprio, o seu caminho. O documento fotográfico recupera não só o passado de sua esposa como também o seu próprio futuro. A imagem do passado dela o redime. E ele agradece o trabalho fundamental que o gerente da tabacaria foi capaz de realizar.

A crônica histórica fabulada por Paul Auster encerra um conteúdo, um questionamento e uma orientação para o futuro. O autor se vale de um texto fácil e agradável, afirma ter sido rigoroso com a fonte que o inspirou, enuncia os nexos causais da história e sua relação com o presente. Por fim, neste papel de redenção que o material e a aula de história podem ser instrumentos eficazes, a narrativa reorienta a ação, recuperando um passado diferente do pensado e criando uma nova oportunidade de futuro.

No entanto, Paul Auster não é um historiador. Seu conto não é um plano de aula nem um capítulo de um material didático. Mas poderia ser. Ou melhor, as aulas e os materiais didáticos poderiam encerrar estas qualidades de fruição, rigor científico e sentido. Os alunos e alunas, acredito, não teriam do que reclamar. Generosos, mesmo diante do que têm a frente deles, eles esperam pelas nossas atitudes.

O filósofo alemão Walter Benjamin não era muito otimista com as possibilidades de um resgate da narrativa capaz de produzir consciência histórica: “São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências”.

E Benjamin conclui: “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores”.

Talvez seja este o ponto mais importante para pensarmos como produzir consciência histórica: resgatar as experiências entre as pessoas. Academia e professores; professores e alunos; alunos e pais, em um processo dinâmico de trocas, como na confecção de um mapa, na tessitura de um imenso tapete.  Imaginem intensificar a formação dos professores do Ensino Médio pelos pesquisadores da Academia – e tornar os professores pesquisadores; e ampliar a oportunidade de diálogos com os alunos e alunas; e proceder a incorporação dos pais no processo pedagógico da escola. Creio que assim teremos alguma chance de desenvolvermos uma posição crítica que comece por negar os programas, manuais e aulas de história incapazes de produzir consciência histórica e depois, quem sabe, construir o tempo no qual ninguém mais dirá  – sem temer as consequências – que um torturador foi um herói da Pátria ou que um golpe de Estado foi uma revolução redentora.

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