Perseguidos pela tragédia

Haitianos que vieram para o Brasil fugindo da pobreza e das consequências do terremoto de 2010 viram vítimas de incêndio em favela de Curitiba. Veja em reportagem de Felippe Anibal e Brunno Covello.

A tenda instalada na ruazinha estreita que corta de fora a fora a Vila 29 de Março, em Curitiba, serve como uma espécie de posto central de arrecadação – principalmente de roupas, que se amontoam sobre chão de terra batida. Ali, a haitiana Pisse Riche, de 31 anos, passa as tardes, desde o dia seguinte ao incêndio que devastou cerca de 300 dos mais de 400 barracos da ocupação.

Grávida de seis meses e desempregada, ela ajuda a fazer a triagem de tudo que a comunidade recebe como doação. Em creole – língua oficial do Haiti –, a migrante tenta explicar que não fala português. Indica, então, a filha Maileny Riche Zoumene, de apenas seis anos, que passa a servir de intérprete. É a menina quem responde sobre a madrugada de 7 de dezembro do ano passado, quando as chamas destruíram a favela.

“Veio a polícia! Aí, fogo, fogo, fogo! Todo mundo na rua, gritando! Meu coração ficou batindo forte, forte!”, relembra Maileny, em bom português e ainda um tanto impressionada. “Meus amigos ficaram muito tristes. Uma amiga da minha mãe fica dormindo no chão da minha casa, porque a dela pegou fogo. Eu tenho muito medo e quero que melhore”, acrescenta, de forma expressiva. Antes de se despedir, a garotinha pede ajuda para os pais e para a tia, que estão desempregados. “Elas [a mãe e a tia] gostam de varrer a casa”, observa, como quem destaca uma qualidade decisiva.

Vila 29 de Março: reconstrução depois de incêndio criminoso. Foto: Brunno Covello/Plural.

Os haitianos da 29 de Março, assim como milhares de outros compatriotas que vieram parar no Brasil, saíram de seu país para fugir da pobreza e do terrível terremoto de 2010, com suas consequências – entre as quais uma séria epidemia de cólera. Aqui, se alojam onde podem, muitas vezes em áreas de ocupação, para sobreviver e mandar algum dinheiro para os parentes que, por incrível que pareça, vivem em condições ainda mais graves no Haiti.

Apesar dos traumas, um mês e meio após a tragédia, a comunidade já dá sinais de reconstrução – e com forte sotaque dos cerca de 50 haitianos que vivem na Vila, conforme estimativa das lideranças. Do outro lado da rua, nas paredes de um dos barracos reerguidos e pintado em cores vibrantes, se lê: “29 Resiste”. Logo em frente, há uma placa com a data do incêndio (precedida de uma cruz) e a do dia seguinte (acompanhada de uma estrela). É como se esses elementos marcassem a tentativa de renascimento da ocupação, cujos moradores parecem não ter outra opção, senão seguir em frente.

Até agora, a organização não-governamental Teto construiu 21 casas de madeira na comunidade – todas já ocupadas pelas famílias. Outras 16 foram levantadas por moradores, com a ajuda de empresas e de entidades. No dia em que o Plural esteve na 29 de Março, por exemplo, integrantes do MST trabalhavam como voluntários na reconstrução de residências e na instalação de biofossas. No mais, os próprios moradores têm apostado em pequenos mutirões e na solidariedade para reerguer os barracos.

Acordando em meio às chamas

Viela adentro, o haitiano Elidieu Caselieu Pierre, de 39 anos, tenta se equilibrar entre a esperança e as dificuldades. Na noite do incêndio, ele estava em Chapecó, Santa Catarina, para onde havia viajado em missão com a Igreja Evangélica Embaixador de Jesus. A mulher dele conseguiu escapar das chamas por pouco, salvando o filho do casal, de um ano e quatro meses. A família, no entanto, perdeu tudo o que tinha: móveis, roupas, documentos e a própria casa.

“Ela estava dormindo e acordou com os gritos, quando o fogo estava chegando. Só conseguiu pegar nosso filho e sair”, conta Pierre. “Ela me ligou desesperada, contando. Eu voltei pra cá. Quando cheguei, no dia seguinte, senti muita dor. Vi que tudo que eu tinha conseguido virou cinza. Mas, graças a Deus, não aconteceu nada com eles. Deus salvou minha família”, afirma.

Eledieu: reconstruindo a casa com as próprias mãos. Tijolos doados só chegaram até o joelho. Foto: Brunno Covello/Plural.

Com materiais de construção que recebeu de doação, Pierre começou a reconstruir sua casa com as próprias mãos. Os tijolos e o cimento, no entanto, mal deram para os alicerces. Como está desempregado há dois anos, ele não tem condições de continuar com a obra. O haitiano, a mulher e o filho só estão dormindo sob um teto graças à solidariedade dos vizinhos. “Se dependesse de mim, eu queria sair daqui [da comunidade], mas a gente não tem como nem pra onde ir. Então Deus é quem sabe. Eu tenho fé”, diz.

Uma casa escapa por… milagre?

Adiante, uma única casa – de alvenaria – escapou praticamente ilesa das chamas. Nela, moravam os haitianos Oge Gechelus e a mulher dele, Jaquelines Jacques, que carrega uma barriga de nove meses de gestação. Assim que o fogo começou a avançar pelos barracos, Gechelus teve uma visão: sua residência não seria afetada pelas chamas. Imediatamente, pegou a Bíblia e começou a rezar, à soleira da porta. Só quando as labaredas consumiam o casebre vizinho é que, às pressas, ele deixou o livro sagrado sobre a mesa e fugiu. O fogo destruiu outros barracos em volta, mas a casa dele não foi atingida.

“Foi um milagre”, sentencia a comadre dele, Loulouse Petit Frere, de 35 anos. Após o incêndio, Gechelus e a esposa se mudaram temporariamente para a casa de amigos, no bairro Novo Mundo. Devem permanecer por lá até que Jaquelines dê à luz, o que deve ocorrer nesta semana. “É uma menina, que vai se chamar Ana Vitória. É o primeiro filho deles. Estão há 12 anos esperando esta bênção”, diz Loulouse, sorrindo.

Quando pensa na própria família, entretanto, Loulouse fecha o rosto. Com ar de desalento, ela conta que o barraco em que morava com a irmã foi um dos consumidos pelo incêndio e que ambas estão desempregadas. O marido está trabalhando no Rio Grande do Sul como pedreiro, mas consegue guardar pouco do que ganha. A haitiana não tem ideia de como reconstruir a residência. “Quando vi minha casa destruída, eu não sabia o que fazia: se chorava, se corria pra cima, se corria pra baixo. A gente, que tinha tão pouco, agora não tem nada”, resume. Ainda assim, ela sonha em fazer dinheiro para trazer ao Brasil os dois filhos que ficaram no Haiti.

Loulouse: guardando dinheiro para trazer as crianças ao Brasil. Foto: Brunno Covello/Plural.

No lote ao lado, ficava o barraco em que moravam a dominicana Ketelene Pilsse, de 27 anos, e o haitiano Servio Destine, de 37 anos. Quando o fogo avançou, eles só tiveram tempo de calçar os sapatos e fugir. A mulher ainda desafiou as chamas e voltou para pegar o celular, que contém as fotos dos dois filhos, que ficaram em Gonaîves, no Haiti. “Parecia terror. O fogo subiu mais alto que os postes. Na hora, nós não tivemos esperança de salvar mais nada. Ali, a gente sabia que tinha perdido tudo”, disse Ketelene, que trabalha como cozinheira em uma escola infantil no bairro Xaxim.

No terreno, eles começaram a construir uma casinha de alvenaria, mas o dinheiro acabou. Nem por isso, ela se deixa abater. Sorridente, percorre as vielas estreitas para lá e para cá, organizando moradores, sobretudo haitianos, e auxiliando na reconstrução da comunidade. “Todo mundo se ajuda, divide o pouco que tem. Se não for isso, a Vila não vai se reerguer nunca”, disse.

O terremoto foi natural. O incêndio, não

Na 29 de Março, os moradores são unânimes em afirmar que o fogo foi provocado por homens da Polícia Militar (PM), em represália pela morte de um soldado assassinado na comunidade. Relatam ainda a execução a tiros de dois moradores. O Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) instaurou um procedimento para investigar se o incêndio e as duas mortes estão vinculadas ao homicídio do PM.

Na última sexta-feira (18), o Gaeco e a Corregedoria da Polícia Militar cumpriram, ao todo, dez mandados de busca e apreensão relacionados ao caso. Conforme o Plural apurou, entre os alvos, estavam endereços ligados a dois policiais que aparecem em filmagens atirando a esmo contra as casas da Vila, na mesma noite do incêndio.

Enquanto isso, os horrores daquele incidente parecem ainda não ter sido superados por quem vive na vila. Qualquer rumor de presença da polícia na comunidade é motivo para pânico e os boatos proliferam. Um dos exemplos ocorreu na noite de domingo (6) – quase um mês depois do incêndio – quando os moradores ficaram em polvorosa, depois que se alastrou a notícia de que a PM faria um blitz em todas as residências e que “não deixaria ninguém dormir”. Assustados, moradores fizeram barricadas nas vias de acesso à comunidade e ficaram fora dos barracos.

Placa marca datas da tragédia e do “renascimento” da vila: otimismo, apesar de tudo. Foto: Brunno Covello/Plural.

“Ninguém dorme direito. Qualquer barulho, eu pulo da cama. A gente tem medo de que aconteça de novo”, disse Ketelene. “Eu não queria continuar morando aqui. Tenho medo. Mas meu marido quis ficar, porque não temos como pagar aluguel. Eu fiquei por ele. Mas também… como a gente ia sair? Ir pra onde? A gente nunca vai conseguir morar lá”, disse, apontando para o horizonte, onde é possível ver os prédios do Centro, a duas dezenas de quilômetros dali.

Outra haitiana – que pediu para não ser identificada – não consegue aceitar a passividade da sociedade diante do incêndio e a falta de respostas imediatas ante a tragédia. “No Haiti, aconteceu o terremoto. Mas o terremoto é uma catástrofe natural. Não dá pra evitar. O incêndio, não. O incêndio foi provocado”, apontou. “E até agora não aconteceu nada para quem pôs fogo. A vila virou pó e ninguém fez nada. As famílias estão chorando e ninguém fez nada”, acrescentou.

Por meio de nota, a PM informou que o procedimento instaurado pelo 23o Batalhão (responsável pela área) “está em andamento e dentro do prazo legal”. A corporação alegou que “como o caso ainda está sob investigação, o 23o Batalhão se reserva ao direito de não se manifestar para não atrapalhar os trâmites legais”. A PM não se manifestou sobre as duas mortes que, segundo os moradores, ocorreram na noite do incêndio.

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