Júlio Rosa: vida breve, morte trágica

Rapaz apareceu enforcado na cadeia, mas devia estar no semiaberto

O rapaz que sorri da foto, fazendo metade de um coração com as mãos, tem um leve sorriso nos lábios finos – acima deles, é possível ver resquícios da barba que cresce. O pedaço exposto do antebraço esquerdo, visível em razão da pose para a fotografia, revela traços de uma tatuagem. Abaixo dos cabelos curtos, castanhos, o reflexo nos óculos escuros revela que o retrato é uma selfie, feita com o celular.

A imagem foi fornecida por Ana Paula Pereira dos Santos, uma jovem mãe, que aos 22 anos se viu viúva. Júlio da Silva Rosa, “Juninho” – o companheiro de Ana, foi morto aos 21 anos, enforcado em uma cela na Casa de Custódia de Piraquara em março desse ano. Além de Ana, ficaram para trás os dois meninos do casal: J.V., de quatro anos, e o bebê A. com pouco mais de um ano de idade.

Ana ainda se lembra de quando contou para Júlio que estava grávida do primogênito – é a memória mais marcante que tem do marido. Fazia um mês que Júlio tinha aparecido de moto, na esquina da casa da avó dela, para saírem pela primeira vez. “Depois desse dia, começamos a nos ver todos os dias”, conta. Com o nascimento do bebê, passaram a viver juntos.

Os dois se conheceram ainda na adolescência, em Almirante Tamandaré, no bairro em que cresceram. Na verdade, Júlio nasceu na região metropolitana de Curitiba. Os pais, Juvanir e Ângela Maria, se separaram quando o menino tinha ainda quatro anos. “O Júlio sempre esteve comigo”, conta Juvanir Gonçalves da Rosa. Ele e o filho moravam nos fundos da casa da avó materna de Júlio, sem muito contato com a mãe – que não tinha condições de criá-lo. “A gente sempre se deu bem”, relata o pai.

Juvanir é um homem de cabelos claros e pele avermelhada. Mesmo não tendo aprendido a ler e escrever, os dedos grossos manuseiam o smartphone com uma certa desenvoltura: no WhatsApp, toda a comunicação é feita por áudio. O trabalho sempre exigiu habilidades com as mãos – hoje faz parte do time de manutenção de um órgão público, ligado à prefeitura de Curitiba, mas já atuou por dez anos numa panificadora.

Durante a infância de Júlio, dos oito anos até sua adolescência – aos 16, o pai trabalhava como churrasqueiro em um estabelecimento no Batel. Juvanir entrava de manhã e só saia às 22h30 – uma rotina que se repetiu ao longo de nove anos, abrangendo dias da semana, sábados e domingos.

Trabalhando todos os dias, exceto às segundas-feiras, foi difícil convencer o menino a não deixar a escola. Por volta da terceira ou quarta série, Júlio parou de estudar – uma decisão que o próprio pai relaciona às amizades da época. “Ele tinha um estudo bom, tinha uma letra bonita…”, rememora. “Falei com ele: ‘Mas como assim? Tem que ir para a escola’, mas não deu certo mais… daí não estudou mais, eu só trabalhando…”, lamenta.

Alguns anos mais tarde, em 2007, a família cresceu: veio o primeiro de três meios-irmãos. Um menino, hoje com 10 anos de idade, e duas meninas – uma de nove e outra de seis. “Esse aqui, quando vai ver os vídeos dele [do Júlio] chora”, conta seu Juvanir, enquanto me aponta, na fotografia salva no celular, o mais velho do trio. “Esses dias sumiu. Fui ver o piá e tava lá no quarto – chorando”, comenta com um meio sorriso de quem também sente a dor da falta. A relação com a madrasta também era tranquila: “Às vezes, eu chegava e ele tava até ajudando ela a lavar a louça” relembra.

Mesmo com o aumento da família, pai e filho só se separaram quando Júlio, aos 19 anos, foi pai pela primeira vez. Morando com Ana, era ele quem sustentava a família. “Ele pagava o aluguel, fazia os corres dele e pagava tudo”, conta a jovem. “Os corres” foram, inclusive, motivo de discussões entre ele e a sogra. “Eu não brigava por ele ser assim, porque a vida é a vida dele… Ele sabia do risco que estava correndo”, emenda a mãe de Ana. O casal chegou a brigar algumas vezes, a ponto de morar em casas diferentes, mas sempre acabava passando os dias juntos.

A união estável só veio mais tarde: J.V. tinha um ano quando Ana ficou grávida pela segunda vez, e Júlio foi preso. O documento foi providenciado para garantir que Ana tivesse direito às visitas na cadeia como companheira. Ao todo, Júlio passou um ano no regime fechado, e dois meses no semiaberto. Só conheceu o filho mais novo quando teve sua liberdade parcialmente restaurada, já na Colônia Penal.

O pai ainda se lembra de uma visita, com a nora ainda grávida: “Ele falou ‘ó pai, vou te dar orgulho!’”. O pai de um amigo, responsável por pagar a advogada que atendeu a família, tinha ofertado um trabalho em uma chácara, como caseiro. O jovem não chegou a começar o trabalho, foi preso uma segunda vez – por engano – três dias antes de assumir a nova responsabilidade.

Júlio já estava havia três meses com uma tornozeleira eletrônica, quando, por um erro do Judiciário, acabou sendo enviado novamente à prisão. “Essa prisão dele aí foi pra acabar com ele, porque foi por engano. Foi a prisão por engano, pra soltar foi engano… O que ele devia, ele pagou”, lamenta o pai.

Os shelters (contêineres) da Casa de Custódia de Piraquara abrigam cerca de 1 mil presos.

“Depois dos nenês, ele queria mudar a vida dele”, conta Juvanir. Os nenês eram os xodós de Júlio, que passava a maior parte do tempo com a família, mesmo em meio às brigas. “Ele era um grude com aquelas crianças”, relembra. Júlio brincava e cuidava dos meninos. Não gostava que ninguém levantasse a voz para os filhos. O mais velho, ainda hoje, pergunta pelo pai: “Eu não respondo, já quero chorar…”, relata Ana.

Os últimos 20 dias de vida de Júlio foram passados assim: cuidando dos filhos, vivendo em família. “Tá fazendo falta até hoje”, lastima o pai, que mantém a foto do filho mais velho como pano de fundo do celular. Lembra da última vez que o viu. Almoçaram juntos, Júlio tinha planos: “É, não deu”, constata seu Juvanir, enquanto olha para o registro digital.

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