Partiu, rodoviária: viajar de ônibus é enfrentar perrengues

Em 20 anos, o transporte interestadual de passageiros no Brasil experimentou algumas evoluções – veículos mais confortáveis e tecnológicos e terminais modernizados, por exemplo. Entretanto, são melhorias restritas a grandes centros. Oligopólio no setor impede concorrência de tarifas e qualidade do serviço

Carolina Corsi começou 2022 se mudando de cidade e estado. Contratada para jogar no time de vôlei de Santos, passou a viver no litoral paulista depois de três temporadas em Nova Trento, Santa Catarina.  Aliás, a ida para a cidade catarinense já representara nova morada: ela e sua família são de Curitiba. Assim, desde 2019 faz parte da rotina de Carolina embarques e desembarques em rodoviárias, para viagens entre suas residências temporárias e a capital do Paraná.

Ela nasceu em 2003. Um ano antes, o autor desta reportagem elaborou uma outra sobre o mercado de transporte rodoviário interestadual de passageiros no Brasil. Publicada em fevereiro de 2002 no jornal Gazeta do Povo, a matéria, intitulada ‘Oligopólio sobre rodas’, mostrou a concentração no setor e a falta de marco regulatório, raízes de uma série de outros problemas. A reportagem ficou em terceiro lugar no Prêmio da Confederação Nacional de Transportes (CNT), daquele ano.

Agora, em 2022, exatos 20 anos daquele raio-x, o que mudou? Será que a concentração das viações nas mãos de poucos mas poderosos grupos persiste? Ou o mercado se pulverizou? Ainda: será que há novas empresas operando? Há, enfim, legislação regulando o setor? A qualidade dos ônibus melhorou? O valor das tarifas é justo? Quais os impactos das novas tecnologias da informação nesse serviço? Em que medida beneficiam os usuários? Os aplicativos de transporte são uma ameaça para os prestadores tradicionais?

Embarque de passageiros em Santos, rumo a Curitiba: ônibus melhores que há 20 anos, mas faltam opções de horários, queixa-se a viajante Carolina Corsi. Foto: Wagner Alcântara Aragão.

O que Carolina Corsi vivencia em seus deslocamentos interestaduais dá as primeiras respostas. Na ligação Santos-Curitiba, a atleta, hoje – assim como um viajante 20 anos atrás – não encontra opções de empresas, nem de tarifas. Tal como em 2002, agora em 2022 só a Auto Viação Catarinense – pertencente a, desde aquela época, um dos maiores conglomerados do setor de transporte, o Grupo JCA – opera o trajeto.

Uma das consequências é a pouca variedade de horários e de preços das passagens. Desde que chegou a Santos, a atleta de vôlei voltou duas vezes a Curitiba para visitar a família, nos feriados de Carnaval e de Tiradentes. “Sou liberada do treino no final da tarde. Mas só posso viajar quase meia-noite, porque não tem horário antes. Então, em vez de conseguir chegar a tempo de ainda dormir [na casa da família], só chego de manhãzinha”, conta.

No retorno, o mesmo problema. Ou volta muito cedo – no horário da manhã ou do meio da tarde – e “perde o dia” (um domingo, por exemplo) na estrada, ou tem de esperar até o fim da noite para embarcar. Nesse caso, o trajeto é feito de madrugada e o desembarque em Santos é por volta de 7 horas. Mal dá tempo de passar em casa – o suficiente apenas para deixar a bagagem. E de lá ir direto para o clube.

Ah, sim, existe a possibilidade de a atleta viajar entre as duas cidades via aplicativo de ônibus, o Wemobi, que oferece a rota. Só que a plataforma de fretamento foi criada e é mantida pelo mesmo JCA da Catarinense. Ou seja, a concorrência… fica tudo em casa. O Wemobi nem força melhoras de serviço nem de preço oferecidos pela Catarinense. Tanto é assim que os horários são semelhantes ao do serviço original da Catarinense, utilizado por Carolina Corsi e outros tantos passageiros que fazem o percurso entre a capital do Paraná, o litoral de São Paulo e o Grande ABC (a linha tem ponto final em São Caetano do Sul).

DADOS GERAIS

Principais números do transporte interestadual rodoviário de passageiros no Brasil

  • 4.431 linhas regulares
  • 234 viações
  • 7.840 ônibus em operações
  • 28,8 milhões de passageiro transportados por ano (média 2020 e 2021, impactada pela pandemia)
  • R$ 6,16 bilhões de faturamento do setor em 2021

Fonte: Abrati. Dados levantados em fevereiro de 2022.

Oligopólio

Oligopólio, o leitor e a leitora sabem, é quando em uma determinada atividade econômica poucos grandes grupos empresarias atuam. No mercado de transporte rodoviário de passageiros é mais ou menos assim. Embora haja mais de 200 empresas de ônibus circulando pelo Brasil, o domínio está com meia dúzia de conglomerados. Estes têm, sob seu guarda-chuva, uma porção de viações, e nem sempre essa relação entre as empresas é percebida pelo público, até porque em boa parte dos casos, não é explícita.

A entidade que representa as operadoras – a Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros, conhecida pela acrônimo Abrati – rechaça a aplicação do conceito de oligopólio ao mercado em questão. É o que afirma, em entrevista para esta série, a consultora Letícia Pineschi, porta-voz da Abrati.

 “O título da reportagem de 20 anos atrás [‘Oligopólio sobre rodas’] com toda certeza deve ser revisto, diante de tamanha transformação que o setor experimentou nestas duas décadas”, assinala. “Se antes ‘oligopólio’ já não era um termo adequado, hoje merece ser definitivamente revisto”, defende (ver entrevista completa no capítulo III desta série).

As 20 linhas interestaduais mais movimentados, de acordo com a Abrati.

Concentração empresarial

Análises e estudos, contudo, seguem apontando para um mercado caracterizado pela concentração empresarial. O mestre em Engenharia de Transportes Felipe Freire da Costa, que tem especialização em Regulação de Transportes Terrestres, considera que, desde 2002, “muita coisa mudou” no transporte interestadual de passageiros no Brasil, mas que a falta de concorrência na prestação do serviço persiste.

Costa é servidor de carreira da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Para esta reportagem, fala como especialista no assunto, e não representando o órgão regulador. “O nível de concorrência no setor”, diz ele, “permanece muito aquém do esperado, principalmente em se tratando de um mercado naturalmente concorrencial, sem custos afundados ou necessidade intensiva de capital. Cerca de 70% das ligações [linhas] são operadas por monopólios”.

Resultado: perrengues para os passageiros. A falta de concorrência, observa o especialista, “explica, em grande medida, a baixa eficiência da prestação do serviço”. Felipe Costa pontua uma diferença entre “qualidade” e “eficiência”. A primeira está mais ligada a, por exemplo, ônibus novos, modernos. A outra, ao serviço oferecido de modo a atender às demandas e necessidades de deslocamentos da população no território nacional.

“De forma geral”, continua ele,  “o setor presta um serviço de boa qualidade, mas o faz de forma ineficiente, onerando os usuários, que acabam arcando com serviços mais caros, muito em razão do baixo nível de competição entre as empresas operadoras. Sequer se poderia falar em sistema de transporte rodoviário interestadual de passageiros, na medida em que o que subsiste é um conjunto de linhas que obedecem unicamente a lógica individual de cada empresa operadora”.

No artigo ‘Divisão territorial do trabalho e transporte interestadual de passageiros: mudanças recentes na circulação’, publicado em 2020 na Revista Geo USP Espaço e Tempo, o doutorando em Geografia Bruno Cândido dos Santos assinala que o cenário de concentração do mercado de transporte rodoviário de passageiros no Brasil se intensificou dos anos 2000 em diante. Os conglomerados operadores se interessam pelas “áreas mais rentáveis”, ao passo que “centenas de cidades nem sequer contam com uma linha de ônibus rodoviária, ou são atendidas por um único horário semanal, entre outros problemas”.

A avaliação do pesquisador dialoga com a diferença entre qualidade e eficiência do serviço, sublinhada por Felipe Costa. Enquanto ligações entre São Paulo e capitais como Rio de Janeiro, Curitiba e Belo Horizonte são cobertas por diversas viações, que oferecem veículos dois andares, de última geração, com opções de assento convencional, semi leito e leito cama, e saídas durante todo o dia, as viagens de milhares de quilômetros e dias de estrada entre o Sul-Sudeste e o Norte- Nordeste ainda são cumpridas por ônibus de segunda categoria – e com uma empresa só fazendo cada linha.

AS MAIORES VIAÇÕES

Por tamanho da frota

  • Gontijo            960
  • Cometa*         535
  • Expresso Guanabara  344
  • Águia Branca  340
  • Catarinense*   277

* Cometa e Catarinense pertencem ao mesmo grupo (JCA)

Fonte: Abrati. Dados levantados em fevereiro de 2022.

Salto de qualidade

De qualquer forma, mesmo esse padrão elevado de qualidade nos trechos mais procurados e rentáveis representa um salto em relação a 20 anos atrás. Em 2002, a ligação Curitiba-São Paulo, por exemplo, era servida por apenas duas viações, a Cometa e a Itapemirim. Não havia operação de ônibus dois andares e o serviço leito, além de raro, era muito caro.

Hoje, da Rodoferroviária curitibana ao Terminal Rodoviário do Tietê há sete opções de companhias regulares – além da Cometa e da Itapemirim (esta, por ora, com autorização suspensa; ver mais no capítulo V desta série), operam o trecho a Penha, Ouro e Prata, Andorinha, Expresso e Eucatur. As promoções nos valores das passagens são constantes; praticamente todos os horários – dezenas ao longo do dia – são feitos por veículos ônibus modernos, dois pisos, incluindo cabines camas.

Mesmo na rota que a atleta Carolina Corsi, citada no início desta matéria, começa a fazer com frequência agora em 2022 – a Santos-Curitiba -, a qualidade atual é incomparável com a de dois decênios atrás. Fosse nascida e viajante em 2002, e Carolina só encontraria à disposição, pela Catarinense, veículos convencionais, apertados, e rodando até o limite de sua vida útil. Hoje, o trajeto é feito com mais conforto. “Já usei semi leito e leito; os ônibus são bons”, atesta.

Rodoviária do Tietê, em São Paulo, a maior da América Latina: 30 milhões de passageiros em todo o Brasil viajam por ano em uma das 4,4 mil linhas interestaduais. Foto: Wagner Alcântara Aragão.

Rodoviárias melhores

Nas três temporadas em que atuou na equipe de vôlei de Nova Trento, Carolina viajou pouco até a cidade natal, Curitiba. E a razão tem a ver com a infraestrutura (ou falta de) em terminais rodoviários. É a atleta que explica: “Não tem linha de Nova Trento a Curitiba, então eu tinha de pegar um ônibus primeiro até Tijucas. Só que o horário em que eu chegava lá e passava esperando [o embarque para a capital do Paraná] era ruim, porque a rodoviária não tinha estrutura, tudo fechado, era inseguro”.

Ainda é a realidade em muitos terminais rodoviários. Mas é verdade também que, principalmente depois dos investimentos para a Copa do Mundo sediada no Brasil em 2014, rodoviárias importantes receberam obras de modernização. Foi assim com a de Curitiba e Rio de Janeiro, por exemplo. Antes desse período, destaque para Campinas. E, mais recentemente (2020), a rodoviária de Santos onde Carolina tem embarcado e desembarcado foi reformulada (é uma das três mais antigas em operação no país). “É confortável e segura”, constata a jogadora viajante.

Por sua vez, a Abrati destaca tanto investimentos feitos pelas concessionárias da administração dos terminais como aqueles realizados pelas viações. “Empresas de ônibus têm implementado serviços diferenciados, como ‘agências conceito’, ‘salas vips’ e totens de autoatendimento”, enumera a consultora e porta-voz da entidade, Letícia Pineschi. “Há muito tempo esses espaços [rodoviárias] não são apenas pontos de embarque e desembarque; se transformaram em modernos, confortáveis e seguros centros de serviços, com lojas e restaurantes”, frisa a entidade, em texto em sua revista de comunicação institucional.


NO PRÓXIMO CAPÍTULO:

  • Licitações não saem; tentativas de regular transporte interestadual vêm de longe

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