Paraná perde protagonismo da vacina russa no Brasil

Farmacêutica de São Paulo assume responsabilidade por testes e registro do imunizante na Anvisa

De início protagonista, o Paraná perdeu espaço no projeto brasileiro para a aprovação da Sputnik V, candidata russa na corrida pelas vacinas contra a Covid-19. O Estado foi o primeiro do Brasil a fechar um acordo de intenção de compra e produção interna do imunizante, o que incluía a condução de estudos clínicos no país. Mas quase cinco meses após o comunicado – que agitou autoridades e instituições locais –, os trâmites continuam sem avançar, indicando uma mudança de rumo dos planos paranaenses que orbitavam a Sputnik V. Em São Paulo, uma farmacêutica já assumiu a responsabilidade pela produção no Brasil e na América Latina.

Em coletiva de imprensa nesta sexta-feira (11), para falar sobre a estratégia de vacinação do Paraná, o governador Ratinho Jr. (PSD) afirmou que o acordo com o Instituto Gamaleya, responsável pelo desenvolvimento da vacina em Moscou, ainda está de pé. A abordagem, no entanto, não teve destaque, e o próprio chefe do Executivo afirmou já ter dado andamento a conversas paralelas com outros laboratórios, como a Pfizer e os conjuntos Oxford-AstraZeneca e Sinovac-Instituto Butantan, que estão em estágio mais avançado.

Além disso, a Anvisa, órgão brasileiro responsável por apreciar pedidos de ensaios e registros de vacinas, já passou a vincular a responsabilidade pela vacina russa no Brasil ao laboratório União Química, sediado em São Paulo.

Em outubro, a agência comunicou que a farmacêutica paulista é quem apresentaria os resultados dos testes clínicos da Sputnik V, conduzidos fora do Brasil, para solicitar o registro do imunizante. Cerca de um mês depois, ainda sem qualquer pedido formal recebido, o órgão voltou a noticiar uma reunião com representantes da Rússia e da União Química para tratar de aspectos técnicos e específicos da vacina. Em nenhum dos encontros há menção de participação do Paraná que – via o Instituto de Tecnologia do Estado (Tecpar) – manifestou publicamente o compromisso de submeter o pedido de controle dos estudos da fase 3 no país e o registro da substância em teste.

O acordo foi firmado com o Fundo de Investimento Direto da Rússia (RFDI, sigla em inglês), catalisador de investimentos do país europeu, no dia 12 de agosto – um dia após a Rússia se tornar o primeiro país do mundo a registrar o imunizante contra o Sars-CoV-2. Feito pelo presidente Vladmir Putin, o anúncio foi recebido em meio a polêmicas, pois, até então, nenhum resultado das duas primeiras fases dos ensaios clínicos da Sputnik V havia sido compartilhado com cientistas.

As primeiras respostas só vieram no dia 4 de setembro, quando pesquisadores do Instituto Gamaleya publicaram na revista britânica The Lancet as conclusões iniciais dos testes prévios. No mesmo dia, o Tecpar veio à público reiterar a capacidade do imunizante de produzir anticorpos sem provocar reações graves e reafirmar o compromisso do Paraná com o desenvolvimento da substância no Brasil. A previsão era submeter à Anvisa e à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) o pedido de autorização para os ensaios até o fim de setembro e dar início aos testes – com dez mil paranaenses, em vários hospitais geridos pelo estado – ainda em outubro. Uma possível vacinação da população do Estado, se confirmadas as previsões, poderia começar em janeiro de 2021. Não mais.

Sem definição

Na entrevista desta sexta, o governador do Paraná falou na possibilidade de começar a imunização de paranaenses em março, mas sem relacionar a força-tarefa especificamente à Sputnik V. Em suas poucas declarações sobre o atraso no cronograma, o Tecpar se resumiu a falar sobre a complexidade da elaboração do protocolo para submeter o pedido aos órgãos regulatórios.

Por meio de nota, e sem passar mais detalhes, o próprio Tecpar afirmou não ter mais um papel definido diante do acordo assinado com o RFDI. “Diante de revisões no projeto pelo Fundo de Investimento Direto da Rússia, o Tecpar aguarda a definição do parceiro russo sobre quais serão as ações de cooperação do instituto paranaense no projeto”, diz o texto.

O instituto também não deu informações sobre o estágio dos trabalhos do Comitê Técnico Interinstitucional de Cooperação para Pesquisa, Desenvolvimento, Testagem, Fabricação e Distribuição de Vacina contra Sars-CoV-2, coordenado pela Casa Civil e instituído especificamente para comandar o andamento dos estudos e do registro da vacina russa no Brasil.

Desta forma, o governo do Paraná continua sem declarar oficialmente se avançou ou não na elaboração da documentação exigida pela Conep e pela Anvisa, embora Ratinho Jr. tenha dito, também na coletiva desta sexta, que depende de documentação para ativar o protocolo de fase 3 na Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Inicialmente, os testes haviam sido previstos para começar em outubro.

A Conep não respondeu se chegou a receber pedidos de análise do Tecpar. Mas, extraoficialmente, o Plural apurou que não houve entradas do instituto paranaense em relação à vacina russa.

Procurada, a Anvisa apenas indicou um conteúdo que não relaciona o imunizante do Instituto Gamaleya entre as vacinas em estudo no Brasil. O último conteúdo da agência que cita o envolvimento do governo do Paraná com a vacina russa é do dia 27 de agosto. Depois desta data, o órgão regulador passou a se referir também à União Química como responsável pelo processo.

O Plural procurou a União Química para saber se o laboratório está coordenando o trâmite com colaboração do Tecpar, mas não houve respostas.

Em outubro, o presidente do grupo, Fernando de Castro Marques, disse à Agência Brasil que o registro da Sputnik V poderia ser submetido sem os ensaios no Brasil. Segundo ele, a avaliação da Anvisa determinaria se seriam necessários mais testes clínicos da vacina no país ou se os resultados obtidos na Rússia já seriam suficientes. Caso fossem necessários mais testes, a farmacêutica é que iria conduzi-los.

“Nós temos o contrato para sermos o produtor para o Brasil e para toda a América Latina. É evidente que, para isso acontecer, vai depender da Anvisa autorizar e validar todo o processo e conceder o registro da vacina”, declarou, na época, à Agência Brasil.

Para um segundo momento

Apesar de ainda nem ter deixado a linha de largada no Brasil, a Sputnik V não é vista como uma carta fora do baralho por aqui, avaliam pesquisadoras.

No último sábado (5), a Rússia começou a inocular parte da população com o imunizante que, segundo estudos preliminares, teria uma eficácia de 95%. Se confirmada, a taxa será semelhante à da Pfizer-BioNTech, com testes em andamento no Brasil e que deve ter, muito em breve, o uso emergencial autorizado pela agência reguladora de medicamento dos Estados Unidos, o FDA.

Nesta sexta (11), a Rússia e o laboratório britânico AstraZeneca comunicaram ainda ensaios clínicos combinados entre suas duas vacinas contra a Covid-19 para avaliar a segurança de cada uma delas. Isso porque as duas tecnologias são semelhantes, baseadas em adenovírus inofensivos usados como vetores virais para o RNA do coronavírus.

No entanto, como nas primeiras duas fases de ensaios, a Rússia não validou até agora nenhum dos indicadores em publicações científicas de renome, como é esperado pela comunidade científica.

“O problema que a gente tem em relação à vacina russa é um estudo mal desenhado, dados poucos transparentes. Então, a gente acaba não tendo noção, em tempo real, do que está acontecendo de verdade, porque das outras vacinas a gente viu transparência em todas as etapas do processo. É claro que eu acredito que não deva ser uma vacina pouco segura, mas a gente não tem certeza ainda se ela é realmente muito eficiente”, observa Laura de Freitas, microbiologista e pesquisadora vinculada ao Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP).

“A gente não tem os dados da fase três para saber exatamente o que foi encontrado. A gente tem as notícias de eficácia, algumas notícias de segurança, mas falta entender o perfil dos participantes, falta entender vários detalhamentos para podermos entender melhor o quanto realmente é seguro e eficaz”, acrescenta Mellanie Dutra, doutora em neurociências pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e uma das fundadoras da Rede Análise Covid-19.

As duas especialistas acreditam que, com outras vacinas já em análises adiantadas no Brasil, será difícil que a Sputnik V se torne uma concorrente de peso nesta primeira e mais urgente etapa de vacinação em massa – mesmo que o Governo Federal ainda não tenha um cronograma já definido.

“Eu acredito que, num primeiro momento, ela não vai ser uma concorrente de peso por conta disso. A gente ainda não tem certeza dos dados, a gente tem poucas informações. Enquanto não tiver as coisas bem publicadas, vai ser difícil colocar os ovos nesta cesta. Mas eu não descartaria. Não digo que ela vai ser ruim, mas, para um primeiro momento, de urgência, acho que vai ser secundário”, analisa a microbiologista.

Vacinação no Paraná

O governador Ratinho Jr. colocou como março um possível começo de vacinação no Paraná. Aos jornalistas, ele disse que pretende atender toda a população, embora, em um primeiro momento, as substâncias devam ser exclusivas para grupos considerados mais vulneráveis.

Hoje, o Paraná já tem empenhado R$ 200 milhões para compra de vacinas contra a Covid-19, sendo que metade do valor é um repasse da Assembleia Legislativa (Alep). No entanto, a aquisição dos imunizantes, segundo o governador, está atrelada às liberações da Anvisa e das negociações em andamento.

Na coletiva, foram citadas conversas com a Pfizer e também os laboratórios de Oxford e AstraZeneca; e da farmacêutica chinesa Sinovac e do Instituto Butantan, de São Paulo, que produzem a Coronav, em teste no Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Além da Coronavac, também está sendo testado no Paraná o imunizante da Janssen-Cilag, braço farmacêutico da Johnson & Johnson.

Apesar da data anunciada, o governador disse que o Paraná seguirá o calendário nacional, ainda nem anunciado pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido).

“O sistema de imunização do País é conduzido pelo governo federal. Não é um laboratório que vai resolver a questão, mas vários laboratórios fornecendo as vacinas para os países. Não vamos fazer o paranaense ser cobaia, vamos aplicar as vacinas cientificamente eficazes. Não serão vacinas políticas, mas com segurança para trazer a imunização necessária”, disse Ratinho Junior na coletiva desta sexta.

A declaração foi uma indireta a estados que já estão programando seus próprios calendários de campanha de vacinação, como é o caso de São Paulo, frente a uma desorganização do Ministério da Saúde. Até agora, o pasta do Governo Federal ainda não divulgou a íntegra do plano nacional.

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1 comentário em “Paraná perde protagonismo da vacina russa no Brasil”

  1. Ótima matéria! Todo o estardalhaço inicial do anúncio da parceria entre governo paranaense e russo sumiu, evaporou e por aqui pouco e quase nada se noticiou sobre o andamento do processo. Transparência ZERO.

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