Pandemia escancara desamparo à população em situação de rua em Curitiba

Com lockdown, organizações reforçam ações para auxiliar moradores no enfrentamento à Covid-19

No dia 21 de abril de 2020, Tomás Melo, integrante do Instituto Nacional dos Direitos Humanos da População de Rua (InRua), calculava o tempo exato de fogão para preparar ao menos 300 porções de feijoada a serem distribuídas para a população em situação de rua de Curitiba. Enquanto isso, Vanessa Lima, coordenadora da ONG Mãos Invisíveis, separava móveis de doação que haviam acabado de chegar. Os dois são membros de diferentes organizações não governamentais que se reúnem temporariamente no mesmo espaço: a Colmeia Cultural, uma residência no bairro do Parolin, em Curitiba, que se tornou ponto central para o desenvolvimento de ações assistenciais durante a pandemia da Covid-19.

“Quando o coronavírus chegou, teve uma sexta-feira fatídica em que todo o comércio começou a fechar. As pessoas em situação de rua entraram em desespero, sem entender o motivo dos projetos assistenciais terem parado de atender. A gente viu que seria um cenário catastrófico”, diz Melo.

Desde então, organizações como o InRua, que têm foco na defesa e promoção dos direitos humanos e das garantias da política nacional da população de rua passaram a contribuir, também, com atendimentos assistenciais em meio à crise. A emergência é suprir necessidades básicas que aumentaram em meio ao isolamento social, como a sede, a fome e o uso de banheiros. Em parceria com a Mãos Invisíveis, a Casa de Acolhida São José e o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), voluntários distribuem até 700 refeições diárias nas ruas e periferias de Curitiba, um número que se torna a cada dia mais insuficiente.

Conflito com a polícia

Semanas antes, no dia 12 de abril, um conflito entre a Polícia Militar (PM) e a população em situação de rua que vive próxima à Praça Rui Barbosa, em Curitiba, dificultou ainda mais a ação dos voluntários. Policiais intervieram em uma distribuição de alimentos promovida por uma ONG, em virtude do que seria uma possível aglomeração no local. À época, a Guarda Municipal (GM) informou à imprensa que os agentes da PM dispersaram o grupo e orientaram o recebimento das marmitas. Na chegada da GM, pedras foram atiradas contra os policiais, que contiveram a situação utilizando balas de borracha. Ainda segundo a Guarda, ninguém ficou ferido na ação.

A versão da população em situação de rua que vive na praça, contudo, é diferente. Uma das pessoas presentes no dia do conflito mostra marcas de balas na pele decorrentes da ação policial. Segundo relatos, os agentes “chegaram batendo a porta” do carro dos voluntários e dispersaram o que seria um grupo organizado. Alguns guardam as cápsulas de munição antimotim que encontraram na praça, usadas na dispersão da aglomeração.

Problemas estruturais

O conflito com a polícia é o indicativo de um problema maior. Dados de abril de 2020 do Cadastro Único (Cadúnico) mostram que há, ao menos, 2.500 famílias cadastradas como “em situação de rua”, em Curitiba. Ainda, o histórico descompasso entre o elevado número de atendimentos e o número de inscritos nos programas sociais deixa pistas de subnotificação. 

De acordo com a Fundação de Ação Social de Curitiba (FAS), no período de 15 de maio a 2 de julho de 2020 foram realizadas cerca de 7 mil abordagens, com 175 encaminhamentos emergenciais de saúde e 101 encaminhamentos para isolamento social de pessoas com suspeita ou confirmação de Covid-19.

Nem todos os números dos efeitos do coronavírus na vida da população em situação de rua são claros, mas estão às vistas. O fim dos trabalhos temporários, o aumento do número de pessoas nas ruas e impossibilidade de evitar aglomerações são apenas alguns dos problemas que convergem na ampliação do problema sanitário vivido em todo o país. Na rua não se discute a cura, mas a manutenção mínima das condições de vida.

“Olhe para a praça agora”, diz Lima, em um dia de distribuição de alimentos. “Quem passa não percebe, mas todos os que estão nos bancos agora estão em situação de rua”. De acordo com a voluntária, a palavra de ordem é redução de danos. Denilson (nome fictício), que vive em situação de rua, corrobora. “Estou dormindo aqui faz duas semanas e a cada dia chega mais gente”, afirma enquanto, inquieto, coloca e tira a máscara de proteção que recebeu de uma equipe de voluntários. “Não consigo me acostumar, mas sei que é importante.”

“O que eu posso fazer eu estou fazendo, mas muitos abrem saco de lixo para comer. O álcool gel não previne isso”, diz Denilson. “A verdade é que é difícil fazer isolamento quando se está na rua.”

“No começo, as pessoas que vivem na rua nos paravam para perguntar porque estávamos usando máscaras”, lembra Tomás Melo, que percebe a emergência de demandas antigas na ordem do dia durante a Covid-19. De acordo com ele, o momento escancara um descompasso nas políticas públicas que já existe há muito tempo. “Agora a demanda é muito clara. Nós precisamos garantir minimamente o acesso à água, condições sanitárias e alimentação, em especial do público que não adere aos serviços oficiais de acolhida.”

Medidas de acolhimento não suprem demanda

Quando Vanessa, Tomás e outros profissionais perceberam o cenário de emergência, recorreram a diversas instituições pedindo providências. O Ministério Público do Paraná e a Defensoria Pública escreveram o que seria uma lista de orientações ao poder público para garantia de ações emergenciais. Em reforço, 50 organizações da sociedade civil assinaram uma carta aberta junto com o Movimento Nacional da População de Rua em 21 de março. Na lista de demandas estavam pedidos simples, como a viabilização de pontos de acesso gratuito à água potável, a implantação de pontos de higienização pessoal, o acompanhamento médico de idosos e a estruturação dos espaços de acolhimento físico.

Desde então, a FAS priorizou a qualificação dos serviços de acolhida. A prefeitura alterou parte dos serviços da política de assistência social de média para alta complexidade. Isto fez com que os “Centros Pop”, que funcionavam das 8h às 17h, se tornassem Unidades de Acolhimento Institucional 24h. Duas unidades atendem, hoje, pessoas que apresentam sintomas da Covid-19, cinco recebem as que não apresentam sintomas e outras três se destinam aos grupos de risco.

Este tipo de ação é necessária, ainda que, para Melo, crie um paradoxo estrutural diante do histórico desencontro de expectativas entre a população em situação de rua e os serviços de acolhida da FAS. Muitos já relutavam em aderir aos serviços de permanência antes da pandemia. Dados da FAS mostram que, de meados de maio até o início de julho, a Fundação registrou ao menos 3 mil recusas de encaminhamentos de diversos tipos nas abordagens realizadas. Ao mesmo tempo registrou, também, 9 mil buscas espontâneas de acolhimento temporário e 9 mil hospedagens em hotéis sociais.

Os rótulos que tentam explicar a recusa são antigos. Lima relembra que a rua nem sempre é uma escolha. “Alguns têm casa e família na periferia, mas voltam para a rua depois que os custos de materiais, como o gás, se tornam inviáveis”, diz. A síntese para a complexa decisão sobre a permanência ou não é clara: aqueles que não aderem aos serviços são os que se encontram em situação de maior vulnerabilidade.

Demandas

É este cenário que as orientações assinadas pelo MP denunciam. Após tentativas malsucedidas de resolução extrajudicial, a Defensoria Pública solicitou no começo de junho, em Ação Civil Pública (ACP), a garantia de medidas indispensáveis à sobrevivência da população em situação de rua durante a pandemia, como os ditos acesso à água, comida e banheiros, além de vagas suficientes em acolhimentos e da elaboração de um plano de contingência emergencial para o grupo vulnerável.

Crédito da foto: Instagram ONG Mãos Invisíveis

De acordo com o órgão, o acesso aos banheiros e aos restaurantes populares deveria ser liberado sem a cobrança de tarifa. Pontos de água potável e ao menos três refeições diárias deveriam ser disponibilizados. O oferecimento de equipamentos de proteção e produtos para a prevenção do contágio por coronavírus também constavam na liminar, que estipulava a multa diária de R$ 15 mil no caso de descumprimento.

À época, a Defensoria entendeu que as ações extrajudiciais não surtiram efeito. “Muito embora tenha se tentado por diversas vezes a resolução da questão em âmbito extrajudicial, as respostas apresentadas pela prefeitura se mostraram insuficientes para atender essa população com a urgência necessária. Sendo assim, não restou outra saída senão o ajuizamento da ação”, explicou a defensora pública Mariana Gonzaga Amorim, coordenadora do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos (NUCIDH).

Por outro lado, o coordenador de Acolhimento e Centros Pop da FAS, Anderson Cristian Walter, entende que tais demandas foram contempladas pela prefeitura antes mesmo das recomendações dos órgãos citados, publicadas a partir do final de março. De acordo com Walter, além da citada ampliação das unidades de acolhimento, algumas políticas foram instituídas, como o fornecimento de alimentos para pessoas que não se vincularam aos serviços de Assistência Social.

Ainda, a Praça Plínio Tourinho, recém-inaugurada no bairro Rebouças, agora carrega um nome que marca a gestão: Praça da Solidariedade. Localizada próxima ao Jardim Botânico, ela foi transformada em um complexo de atendimento às pessoas em situação de rua ou desabrigadas. “O lugar conta com duas unidades de acolhimento e com a oferta de alimentação, espaços para higiene pessoal, guarda-pertences, canil, lavanderia com tanques, máquinas de lavar e secar roupas”, diz o coordenador.

A incidência fez eco, mas as ações afirmativas dos tomadores de decisão ainda geram frustração entre as organizações da sociedade civil. Para Vanessa Lima, pouco do esperado foi realizado. Segundo a professora, a população em situação de rua que não adere aos serviços de acolhida está descentralizada, e é inviável o trajeto até lugares como a praça para atendimento das necessidades. A exigência principal é que o acesso à água chegue onde as pessoas estão. O entendimento é que o pedido da Defensoria só seria atendido se, no mínimo, a promessa de distribuição de água em pontos dispersos da cidade fosse cumprida.

Medidas para o comércio afetam a rua

Quando a Secretaria Municipal da Saúde publicou, em 13 de março, sugestões de medidas preventivas a serem adotadas por diversos setores, a população em situação de rua não imaginou o que estava por vir. O Decreto de Situação de Emergência, emitido no dia seguinte, passou despercebido. Mas em uma semana, tudo mudou.

Em decreto complementar, o prefeito Rafael Greca estabeleceu o que são atividades essenciais e determinou – ou sugeriu – o fechamento dos demais estabelecimentos, como academias, teatros, salões de beleza e casas noturnas. De uma hora para outra, boa parte do comércio fechou, deixando a população em situação de rua ainda mais vulnerável sem o acesso a banheiros, água e alimentação.

Pouco mais de um mês depois, com o relaxamento do isolamento social, parte do comércio reabriu. A partir daí, o vai e vem de decisões do Executivo municipal deixou dúvidas e os proprietários de estabelecimentos se deram conta de que, na verdade, os decretos nunca obrigaram o fechamento.

Ao longo do ano, e em meio às indefinições sobre as medidas, bares de Curitiba foram tomados por clientes, desrespeitando as regras de uso de máscaras de proteção e distanciamento. Diferentemente da situação vivida na Praça Rui Barbosa, as aglomerações da vida noturna da capital não provocaram conflitos com a polícia, apenas declarações de contrariedade da Secretaria Municipal da Saúde. Em live no dia 8 de junho, a secretária da Saúde, Márcia Huçulak, disse que a “situação estava ficando complicada”. Hoje, a decisão do governo do Paraná surte efeito, inclusive, na decisão por fechamentos de shoppings.

Pós-pandemia

Em uma ação de distribuição de alimentos, Lima recebe mais de um pedido para encaminhamento de vagas de emprego. “Meu título é de Curitiba, viu? Eu voto aqui”, diz um dos solicitantes. É enganoso pensar que a população em situação de rua não gera renda. Os impactos das medidas de isolamento nos trabalhadores informais foram estudados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). O percentual de informais na América Latina que são afetados pelas medidas de enfrentamento à pandemia é alto: 89%. Neste cenário, o medo de perder a fonte de renda concorre pelos holofotes contra o próprio medo do contágio.

Tomás Melo retoma que, por isso, é fundamental que o poder público organize o acesso das pessoas em situação de rua, inclusive, para recursos simples como a obtenção do auxílio emergencial. Para ele, o fim da pandemia não significa o fim de uma discussão maior, que atinge todo o território nacional. São exemplos os números de déficit habitacional no Brasil e a discussão sobre acesso público à água potável. 

Se a gente não quer passar por isso de novo, temos que estar preparados para este tipo de circunstância. Como sociedade temos que encarar o fato de que haverá uma multidão de pessoas que não conseguirá dar conta de sua vida econômica sozinhas”, afirma Melo. “Quando falta um projeto de moradia eficaz, é mais oneroso ao estado manter um sistema de abrigagem do que implementar outras políticas públicas”, diz Lima.

Por enquanto, as organizações da sociedade civil seguem com um trabalho complementar. Em um dia, fazem uma força tarefa para reabertura da Casa de Acolhida São José, que possibilita 150 banhos diários para a população em situação de rua. No outro, tomam cuidado para evitar multas por parte da Secretaria de Trânsito, quando precisam estacionar um carro em fila dupla para distribuir alimentos na praça.

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