Os dentistas que chegam de barco

Projeto leva voluntários para atender populações de comunidades isoladas

Projeto leva profissionais voluntários para atender populações de comunidades isoladas. Viagem mais recente foi à Vila do Maciel, em parceria com o Observatório de Justiça e Conservação

Quando os filhos de dona Dalzira e seu Francisco das Neves serviram o almoço na varanda da casa de pescadores na Vila do Maciel, em Pontal do Paraná, o grupo em volta correu para a mesa. Estavam com fome e cansados, depois de terem saído da cama antes das 5 horas da manhã e viajado até ali, de van e depois de barco. A maioria é tão jovem que alguém poderia supor que se tratava de uma excursão de universitários. Mas não. O grupo é formado por cirurgiões dentistas que participam voluntariamente do Barco Sorriso, projeto que desde 2013 leva atendimento odontológico e educação em saúde para comunidades isoladas no litoral do Paraná.

Embora esteja localizada no continente, a Vila do Maciel só pode ser acessada pelo mar. São cerca de 15 minutos de barco desde a marina, no balneário de Pontal do Sul. Uma viagem bastante curta em comparação com as que os participantes do Barco Sorriso costumam fazer, de até sete horas no mar, tempo gasto até Barra do Ararapira, uma vila com cerca de 100 famílias, pertencente ao município de Guaraqueçaba. São quatro roteiros por ano, cada um envolvendo cerca de 40 voluntários, sempre em fins de semana.

A visita ao Maciel, no último sábado, dia 9, foi um roteiro extra, viabilizado em parceria com o Observatório de Justiça e Conservação (OJC), entidade com sede em Curitiba que reúne esforços de várias organizações em nome da conservação da biodiversidade. A escolha está ligada à principal causa do Observatório no momento: a campanha #SalveAIlhaDoMel, que busca chamar a atenção para o risco de graves danos ambientais à região caso se concretize o projeto de instalação de um porto privado em Pontal do Paraná e da chamada Faixa de Infraestrutura, que inclui uma estrada e um canal de macrodrenagem, a serem bancados com recursos do governo do estado.

Acesso à Vila do Maciel só é possível pelo mar. Foto: Theo Marques/Plural.

O Observatório vem denunciando pressões sobre as famílias que vivem no Maciel, uma comunidade tradicional que fica na área de influência do projeto do porto. A parceria com o Barco Sorriso foi uma forma de dar visibilidade à causa e levar um tipo de atendimento que os moradores só conseguem fora da vila, que não tem escola nem posto de saúde.

“Ficamos muito felizes com a parceria com o Barco Sorriso. Eles são extremamente preparados e conseguem promover atendimentos de grande qualidade, gerando um resultado expressivo para as comunidades que atendem”, disse o gerente de parcerias estratégicas do OJC, André Dias.

Consultório improvisado

O consultório odontológico foi improvisado na varanda da casa dos Neves. Boa parte dos 11 filhos de dona Dalzira e seu Francisco estavam por lá, conversando com os vizinhos que chegavam para receber atendimento e preparando o almoço, com peixe e mandioca fritos, arroz e macarrão.

Enquanto isso, oito dentistas e uma médica atendiam os moradores. Para receber o atendimento dentário, o paciente sentava de lado numa cadeira e então deitava com a cabeça sobre uma pequena almofada acomodada no colo do profissional, sentado em outra cadeira.

Ao longo do dia, 58 pessoas foram atendidas. Foram 118 procedimentos, incluindo nove restaurações, 10 aplicações de flúor, cinco raspagens, 11 aplicações de cariostáticos (agentes capazes de conter o avanço de cáries), sete profilaxias (limpeza dental) e 18 extrações de dentes. Todos os pacientes receberam também orientações sobre a importância do cuidado com os dentes.

Sem cadeira de dentista, o consultório precisa ser improvisado. Foto: Theo Marques/Plural.

Vera Soares Lopes, de 49 anos, foi levar Vítor, de 9 anos, filho de uma vizinha, para a consulta odontológica e, enquanto esperava, foi atendida pela médica da equipe. Saiu com uma sacola com remédios para manchas na pele. “Já fui no postinho em Pontal e não resolveu. É difícil pra gente sair daqui pra ir em médico e dentista”, disse.

Estela, de seis anos, neta de dona Ivete Cunha Pereira, precisou extrair dois dentes de leite que estavam cariados. A avó recebeu orientações sobre a importância da escovação e foi alertada de que, se não mudar os hábitos, mais tarde a menina poderá perder dentes permanentes.

Nos casos – raros – em que não havia cáries, a equipe comemorava com palmas e gritos de “cárie zero”. E o paciente ganhava um “certificado”.

Os dentistas da equipe usam todas as estratégias para lidar com os pacientes, especialmente as crianças. A primeira é sempre o carinho, a brincadeira. Levam jogos, adesivos e tinta para cabelo para distrair os pequenos. Mas às vezes não funciona e, diante da choradeira, é preciso ser enérgico.

Com as crianças, é preciso primeiro conquistar a confiança. Foto: Theo Marques/Plural.

Nada, porém, que contrarie o slogan do Barco Sorriso: “O amor une”. Thais Sedoski, de 26 anos, chora mais de uma vez enquanto conta sua experiência no Barco Sorriso. “A gente tenta melhorar o mundo um pouquinho”, diz. Ela começou no projeto ainda antes de se formar em Odontologia, atuando como auxiliar de saúde bucal. Como também é técnica em prótese dental, acabou incluindo esse serviço nos atendimentos e hoje coordena a área. O grupo leva para as comunidades um laboratório móvel e a cada viagem entrega em torno de 10 próteses, confeccionadas em menos de 24 horas (o trabalho no Maciel foi só no sábado, mas o padrão é ficar dois dias).

“São pacientes que geralmente não têm condição de pagar, que não conseguem sair das comunidades e sequer têm informação”, diz Thaís. Ganhar uma prótese, destaca, muda muita coisa: “Melhora a saúde, a deglutição e a parte estética, o que tem um efeito psicológico muito grande”.

Ela se emociona ao lembrar a primeira prótese que entregou: “A dona Leontina usava uma prótese há 45 anos. Não tinha mais dentes, não conseguia comer direito porque a prótese ficava caindo. Fazer essa prótese mudou a minha vida, me tornei realizada profissionalmente. Tenho certeza que todos os voluntários são muito mais felizes atendendo aqui do que em qualquer outro lugar”.

Voluntários

Ao todo já foram entregues cerca de 100 próteses. O projeto já atendeu 902 pessoas, algumas várias vezes, totalizando 1571 atendimentos.

A coordenadora do Barco Sorriso, a dentista Karina de Lima, conta que o projeto tem cerca de 400 voluntários cadastrados. “Cada vez que abrimos cadastro para uma viagem, as vagas acabam em poucos minutos”, diz. Segundo ela, o custo médio de cada viagem é de R$ 15 mil – valor inteiramente custeado por doações, seja de dinheiro ou de materiais. “Não temos qualquer envolvimento político ou religioso. A proposta é única e exclusivamente contribuir para melhorar a saúde dessas pessoas nas comunidades”, afirma.

Casos de pacientes sem cáries são raros. Foto: Theo Marques/Plural.

De acordo com Karina, o projeto dispõe de um consultório portátil, doado pelo Graciosa Country Club, e acaba de comprar mais dois com recursos de doações. “Nosso sonho é ampliar o projeto, indo para mais comunidades, e com mais frequência”, afirma.

Aldeia indígena

Enquanto os atendimentos aconteciam na Vila do Maciel, um grupo menor foi até a aldeia indígena Guaviraty, também em Pontal do Paraná, onde vivem cerca de 50 pessoas. “A carência na aldeia começa pela falta de abastecimento de água, o que dificulta muito, por exemplo, os cuidados de higiene pessoal”, afirma André Dias, que acompanhou o grupo.

Segundo ele, nessa primeira visita crianças e jovens indígenas receberam orientação sobre a escovação e cuidados com a saúde de forma geral, além de kits com escova, pasta e fio dental.

Cada viagem de atendimento custa R$ 15 mil, pagos com doações. Foto: Theo Marques/Plural.

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