“As pessoas não têm ideia do que é estupro e do que é assédio sexual” diz autora de livro sobre mulheres estupradas na infância

Jornalista realiza campanha de financiamento coletivo para viabilizar a publicação da obra

“A mãe de Isis trabalhava durante a tarde e, por isso, a menina ficava nas mãos do padrasto durante a maior parte do dia. Quando estava com a enteada em casa, o homem colocava a criança na cama, tapava a cabeça dela com um travesseiro e esfregava o pênis pelo corpo dela. Isis chorava enquanto era estuprada. Berrava sozinha, enquanto não tinha a quem recorrer. A genitora não dava abertura para que ela pudesse contar o que a aterrorizava dentro da própria casa. Ela não sabia o que estava acontecendo, ao mesmo tempo em que sofria com as agressões do marido da mãe, que a ameaçava e a deixava dura de medo enquanto fazia coisas esquisitas usando o seu corpo. Volta e meia, a pequena escutava a mãe e o padrasto discutindo, mas nunca tinha a ver com o que estava acontecendo com ela. Foi assim por dois anos, até que Isis resolveu contar à mãe o que o padrasto fazia. Ela imaginava que, quando a mulher soubesse, iria protegê-la e livrá-la daquele homem que prejudicava, todos os dias um pouquinho mais, a sua vida”.

O trecho acima integra o livro “O Clube Secreto da Dor”, da jornalista Ágatha Santos. Ele traz histórias reais de quatro mulheres que foram estupradas durante a infância. Escrito em 2016, como trabalho de conclusão de curso (TCC), hoje a autora organiza um financiamento coletivo para viabilizar a publicação da obra.

O interesse pelo tema veio, primeiro, pelo lado pessoal. “Tive pessoas muito próximas a mim que foram vítimas de estupro, vi as consequências psicológicas – as tentativas de suicídio, a depressão. Acompanhei esse sofrimento muito de perto”, relata.

Livro foi escrito em 2016, como trabalho de conclusão de curso. Foto: Davi Carvalho

O foco nos crimes que aconteceram na infância vieram, justamente, da realidade brasileira. Dados do Atlas da Violência 2018 indicam que, dos casos de estupro registrados pelo sistema de saúde em 2016, 50,9% foram cometidos contra crianças de até 13 anos. Pesquisadores estimam que nem 10% das vítimas dessa violência cheguem a denunciar. Das 98 entrevistadas por Ágatha ao longo do trabalho, apenas duas tiveram apoio da família contra os agressores. Em um único caso houve condenação do estuprador.

Como jornalista e feminista, também ficou clara – e incômoda – a falta de informação sobre a questão do estupro. Na mídia, os episódios são, para ela, tratados com sensacionalismo: muito se fala sobre a condenação dos agressores, mas há pouca preocupação com as vítimas, com o que acontece após o crime. “As pessoas não têm ideia do que é estupro e do que é assédio sexual”, comenta a autora.

Na legislação brasileira, o crime é tipificado no Artigo 213 do Código Penal, e se define como o constrangimento de alguém, “mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Ou seja, o crime não se restringe unicamente ao ato da penetração, ou do uso do órgão sexual do agressor. É o caso, por exemplo, de uma das vítimas ouvidas por Ágatha – embora a história não tenha sido contada no livro*. A menina, de dois anos de idade, teve um batom inserido no ânus pela avó paterna. O caso está na Justiça.

“Dar voz a essas mulheres é essencial”, diz Ágatha ao relembrar que há uma série de motivos por trás da falta de denúncias. Do descrédito, às ameaças dos criminosos, passando pela falta de informação: “Eles fazem uma outra fala com as crianças, que sem educação sexual, sem educação da família, não se dão conta [de que foram estupradas]. Elas se sentem mal, se sentem sujas, mas não se dão conta”, salienta.

Além de mostrar as consequências psicológicas a curto e longo prazo desse tipo de violência, o livro também quer revelar quem são esses criminosos: homens comuns, que encontramos em todos os lugares, todos os dias. “Não são monstros, não são doentes como a sociedade sempre fala”, ressalta Ágatha.

O objetivo também é estimular a denúncia por meio da coletividade. “Quando você sabe que muitas outras pessoas passaram por isso, isso te fortalece”, diz. Dos relatos, nasce um espécie de manual informativo, que demonstra algumas das mudanças comportamentais de uma criança vítima de violência sexual, e faz um alerta quanto às consequências mais duradouras.

Pra quem fica na dúvida sobre ler trabalhos como esse, Ágatha dá uma dica preciosa: “Fazer esse trabalho também não foi fácil, mas o que vai ser maior: o meu incômodo ou a dor delas? Daí você sabe se deve ler”, declara. 

*Outros relatos e mais informações sobre o tema estão publicados no blog Vamos Fazer um Escândalo.

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