O cartório das feiticeiras

Pesquisadora vasculha arquivos e descobre casos de mulheres acusadas de feitiçaria em Curitiba, no século 18. Em alguns casos, não se sabe o destino das acusadas.

Na segunda metade do século 18, Curitiba era uma vila de menos de dois mil habitantes, margeada por sertões e cravada nos confins da América Portuguesa. Ali, no dia 7 de março de 1763, o juiz ordinário Manoel Gonçalves Sampaio acatou a denúncia de um morador da região, Manuel Cunha Reis, que dizia que cinco mulheres de sua família – a esposa e mais quatro irmãs, todas “brancas e católicas” – haviam sido “enfeitiçadas”.

No relato de Manuel, os “malefícios diabólicos” eram certos: as vítimas estavam esmorecidas, com o sono intermitente, sofriam de calorões, engatinhavam e berravam. Ainda “soltavam por cima e por baixo” coisas estranhas à natureza humana, como penas de aves, cascos e dentes de animais, cabelos, pedaços de sapos, baratas, gafanhotos e até mesmo um camaleão.

Um padre exorcista jesuíta fora chamado de Santa Catarina para tentar a cura, e esse foi o gatilho para mais denúncias. Outros 30 testemunhos (o mínimo necessário na época para que o juiz instaurasse uma “devassa”, ou inquérito) seguiram o mesmo padrão.

As culpadas de bruxaria, segundo todos eles, seriam oito mulheres nativas e “administradas” (um termo usado na época para designar a escravidão indígena) que formavam um “cartório de feiticeiras”.

No processo, um dos delatores enfatizou já ter visto Elena, uma das denunciadas, usando “uma cinta com um livrinho com penas de aves, cabelos e algumas raízes”. Outras pessoas diziam ter visto a mulher ensinando uma das filhas a apanhar “com uma agulha um bicho na água”. Inquirida, outra feiticeira confessou que “de longe via várias coisas em diversas figuras, mas nunca chegara a falar com o Diabo ou fazer pacto”.

Ao juiz, a acusação garantia que à época a Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinheirais de Curitiba era dominada por feiticeiras, e havia o temor de que aquilo se alastrasse como uma epidemia.

A bruxa linguaruda

Esse relato, junto com outro caso, fez parte da pesquisa para a tese de doutorado “Um cartório de feiticeiras: direito e feitiçaria na Vila de Curitiba”, defendida em 2016 pela pesquisadora da UFPR Danielle Wobeto de Araújo. Ela esmiuçou o Arquivo Público do Estado do Paraná e tirou dali as narrativas que compõem o estudo.

As oito indígenas acusadas no “cartório de feiticeiras” foram enviadas à Ouvidoria de Paranaguá, e não se tem notícias do que aconteceu a elas. Mas uma nona bruxa, incluída posteriormente no mesmo processo – sem nenhuma justificativa plausível para isso –, não teve a mesma sorte.

Cipriana foi denunciada como feiticeira por uma motivação distinta: foi considerada muito “bulhenta, raivosa e tiradora de crédito a pessoas honradas”, além de “linguaruda”. Danielle de Araújo também acha que ela tinha contra si o nome: São Cipriano de Antioquia, antes de se converter ao cristianismo, foi um profundo estudioso do ocultismo, e escreveu o Livro Negro de São Cipriano, uma espécie de caderno mágico da feitiçaria.

“Parece claro que ela foi denunciada por ter um comportamento social inadequado à ética católica”, avalia a pesquisadora.

Cipriana acabou presa por dez anos sem julgamento. Depois disso, não se sabe o que aconteceu – justamente essa parte do processo se deteriorou com o tempo.

“As feiticeiras portuguesas imploravam para não ser degredadas para o Brasil. Ela sabiam que na travessia seriam rotineiramente estupradas e muitas vezes não chegariam vivas.”

Danielle Wobeto de Araújo , pesquisadora da UFPR.

As penas previstas para casos de feitiçaria, de acordo com as Ordenações Filipinas (espécie de código penal da época no Império Português) eram a morte, o degredo, o açoite e a prisão. Tanto na colônia quanto na metrópole portuguesa, porém, as penas capitais eram raras. Na metrópole, era costume degredar bruxas para a colônia. O que, na verdade, podia ser até mais cruel do que a morte. “As feiticeiras portuguesas imploravam para não ser degredadas para o Brasil”, explica Danielle. “Ela sabiam que na travessia seriam rotineiramente estupradas e muitas vezes não chegariam vivas.”

É provável que Cipriana tenha morrido esquecida na prisão ou sido obrigada a viver por algum tempo em outra parte da colônia.

Uma perseguição pragmática

Um sabá, reza a lenda, é uma reunião de bruxas presidida pelo Demônio, repleta de elementos fantasiosos como voos noturnos, oferendas e orgias com entidades diabólicas. Há fartos relatos dessas reuniões na Europa dos séculos 16 ou 17 – mas não no Império Português. “Se você parar para pensar, Portugal foi pragmático até quando se tratava de feitiçaria”, ri Danielle.

Na metrópole portuguesa, explica a pesquisadora, a visão mágica proposta pelos neoplatônicos, que apagava as fronteiras entre o mundo material e o além, e aceitava espíritos demoníacos e angelicais, foi filtrada pela escolástica, que deu maior importância ao livre-arbítrio, limitou os poderes do Diabo e, por consequência, da feitiçaria. “É como se eles dissessem: ‘Olha, você está enfeitiçado, mas se você quiser, se rezar muito, você vai se livrar disso’”, explica.

Os portugueses, segundo ela, estavam mais interessados em perseguir mouros e judeus, que no contexto da Península Ibérica ameaçavam muito mais a unidade da fé cristã do que alguns feitiços. Prova disso é que eventuais sabás em Portugal eram chamados de conventículos, assembleias ou sinagogas, o que deixa à mostra o caráter antissemita do império.

Goya: O Sabá das Bruxas.

Essa visão objetiva modificou inclusive temporalmente a caça às bruxas na metrópole e na colônia. O ápice da caça às bruxas aconteceu nos séculos 16 e 17, em países como Alemanha e França. Ali, a perseguição foi sangrenta. Entre os germânicos, calcula-se que 40 mil mulheres tenham sido condenadas à morte por bruxaria.

No Império Português, o auge da perseguição acontece no século 18 – curiosamente, o mesmo período em que o Marquês de Pombal, considerado um reformista liberal e déspota esclarecido, assume a Secretaria de Estado do Reino. “Na Europa, nessa época havia uma competição entre médicos e curandeiros, que eram considerados feiticeiros, e talvez o aumento desses casos em Portugal venha daí”, pondera Danielle.

Na colônia, porém, havia outro elemento: “A única maneira que a Igreja tinha aqui de explicar os rituais indígenas era tratá-los como feitiçaria”. Negros, índios e mulheres teriam, de acordo com esse raciocínio, predisposição para serem dominados pelo Demônio. Principalmente as mulheres.

No século 18, as fontes da Inquisição de Coimbra indicam que a maioria das acusações de feitiçaria, 67% do total dos processos, incidia sobre mulheres. “As mulheres estavam predestinadas à feitiçaria por critérios hereditários, de aprendizagem e comportamentais”, escreve Danielle em sua tese. “Podemos ainda inferir dos autos que a feitiçaria por malefícios recaiu sobre mulheres, indígenas e administradas, mas também sobre mulheres livres que tinham comportamento ‘inadequado’.”

Curandeirismo, uma forma de feitiçaria

Em 3 de janeiro de 1775, o ouvidor-geral de Paranaguá, Antonio Barbosa de Matos Coutinho, instaurou uma devassa geral na Vila de Curitiba, a fim de verificar a presença de benzedeiras, feiticeiras e pessoas com pacto com o Diabo.

Cinco habitantes do povoado denunciaram duas mulheres por feitiçaria. Segundo eles, era “público, notório e de fama” que elas usavam “inventos diabólicos prejudicando muita gente”, incluindo o uso de remédios que causavam mortes, deficiências físicas e doenças.

As duas mulheres, Francisca Rodrigues da Cunha e sua filha, Luiza, eram indígenas e “administradas”.

Segundo um dos denunciantes, a vizinha da casa onde à época mãe e filha trabalhavam estava doente havia cinco anos, sem apresentar melhora. “O curandeirismo tinha esse caráter dúbio”, observa Danielle. “Quando não dava certo, você acusava a curandeira de feitiçaria.”

“Na Europa, nessa época havia uma competição entre médicos e curandeiros, que eram considerados feiticeiros, e talvez o aumento desses casos em Portugal venha daí”

Danielle Wobeto de Araújo , pesquisadora da UFPR.

A defesa de Francisca e Luiza, por sua vez, alegava que elas trabalhavam para uma senhora “tão católica que havia ganhado de Deus 102 anos de vida”. O advogado também alegou que um dos acusadores acabara apaixonado por Luiza e, rejeitado, quis vingança.

Outra testemunha de defesa foi o “dizimeiro”, fortemente ligado à Igreja, e que por isso tinha a palavra em alta conta.

As duas acabaram absolvidas. “Acredito que muito por sua função social”, diz Danielle. “Elas eram muito conhecidas, e não havia médicos na cidade”, pondera a pesquisadora.

Um caso muito parecido com o de Francisca e Luiza aconteceu com um casal de Paranaguá. Naquele processo, a mulher acabou condenada ao degredo. O homem desapareceu dos relatos sem deixar vestígios.

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