“Ninguém sai ileso”: a saúde mental durante a pandemia

Para especialistas, ter saúde mental não significa estar bem o tempo todo, mas sim ser capaz de passar por momentos difíceis e ser capaz de voltar a ficar bem

As mortes que não cessam. A escassez de vagas em hospitais e unidades de saúde. A falta de organização e vacina. Após um ano vivendo sem uma data limite para o sofrimento causado pela pandemia, sentir-se angustiado e aflito é o esperado. Mas isso significa que as pessoas estão, necessariamente, desenvolvendo transtornos mentais? O Plural conversou com quatro especialistas na psique humana para entender os efeitos que o confinamento e a pandemia podem ter na saúde mental das pessoas. 

Segundo pesquisa do instituto Ipsos, mais da metade dos brasileiros – 53% – declararam que sua saúde mental piorou desde o início da pandemia. A porcentagem é superior à média dos 30 países e territórios abordados no estudo. Outro estudo, publicado pela Fiocruz em parceria com outras seis universidades em julho de 2020, diz que “sentimentos frequentes de tristeza e depressão afetavam 40% da população adulta brasileira, e sensação frequente de ansiedade e nervosismo foi relatada por mais de 50% das pessoas”.

“Não consigo pensar em alguém que esteja bem situado na vida e não esteja abalado de algum modo.” Quem afirma é a psicanalista e professora de Psicologia Ana Suy. Para ela, embora o medo do vírus e a incerteza gerada pela pandemia afetem cada pessoa de uma maneira diferente. “Ninguém sai ileso.”

Ana Suy afirma que nossa cultura tem como imperativo a felicidade. A saúde mental passou a ser sinônimo de bem-estar e felicidade constante, mas não é bem assim: “Saúde mental não é a capacidade de ficar continuamente feliz. É a capacidade que temos de nos entristecer e depois voltar. Ficar muito mal mas depois se situar de novo. Se angustiar mas se animar de novo”, afirma.

Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), não há uma definição oficial para a saúde mental. A expressão está relacionado à forma como as pessoas reagem aos desafios e mudanças da vida e ao modo como lidam com as emoções. Diariamente, os seres humanos vivenciam uma série de sentimentos, bons ou ruins, que fazem parte da vida. 

Entender e viver essas emoções é o que, para Ana Suy, determina a qualidade da saúde mental de um indivíduo. Nesse sentido, a psicanalista esclarece que é importante permitir sentir-se mal, principalmente em um cenário como o provocado pela pandemia, em que as pessoas podem viver experiências similares ao luto. “A gente está vivendo muitos lutos na pandemia, não só no sentido mais complicado da perda de um ente querido, mas lutos pequenos, do cotidiano. São os adolescentes perdendo a adolescência, as crianças perdendo a infância, mães perdendo a maternidade, etc”, exemplifica. 

Na visão da psicanalista, nesse momento, a saúde mental se encontra justamente na possibilidade de elaboração e vivência desses lutos. “Quando a gente pode viver o luto a gente precisa ficar triste, precisa se encontrar com a angústia, com o mal estar para depois se retirar dele. São duas coisas importantes: poder viver o mal estar e poder parar de vivê-lo. Não se trata de entrar no buraco e não sair. Mas é poder ir e voltar do buraco, e ir para outros buracos e voltar deles.”

O psicólogo, psicoterapeuta e professor de Tanatologia Cloves Amorim explica que o fenômeno do luto diz respeito a perdas, não apenas à morte. Nesse sentido, cada vez que uma pessoa perde algo – um projeto, um plano de viagem, uma evolução no negócio, por exemplo -, ela pode estar sofrendo uma experiência de luto. “Visto por esta perspectiva, sempre que se envolve perdas, inclusive de convívio, o indivíduo está tendo a probabilidade de experimentar sensações muito próximas às do luto”, afirma.

Amorim relata que o luto é uma trajetória que precisa ser elaborada. Nesse processo, as pessoas passam por diferentes fases como: “aceitar a realidade da perda, processar a dor do luto, reconectar-se com o morto de uma forma diferente etc”. O processo do luto, como aponta Amorim, quase sempre envolve recolhimento, tristeza e momentos de solidão. 

Impacto da pandemia

De acordo com Amorim, algumas pessoas podem estar propensas a tornar crônicos estados prévios de sofrimento. Isso significa que, se alguém já tinha um nível de ansiedade, com a pandemia isso pode ter piorado. “Parece que o confinamento, o distanciamento social e a incerteza sobre o futuro têm piorado estados pré mórbidos e desencadeado, em algumas pessoas, alguns tipos de sofrimento que variam desde de transtorno de ansiedade generalizada a lutos crônicos e quadros depressivos”, observa. 

No entanto, para ele, não é apenas o confinamento ou o distanciamento social que podem agravar o sofrimento. Os principais estressores geralmente estão ligados às consequências originadas pela pandemia: “Problemas financeiros, estigmas, perdas ambíguas – a morte e a falta de rituais fúnebres -, sequelas na saúde física. Parece que tudo isso, associado ao medo da infecção, à frustração e a informações inadequadas e conflitantes, pode potencializar essas dores que são similares ao sofrimento do luto”, diz.

A estudante de Direito de 20 anos Luísa Carrilho conta que tem transtorno de personalidade obsessivo-compulsiva, o que provoca diversas crises de ansiedade e episódios depressivos. Com a pandemia, as ocorrências se agravaram e passaram a ser mais frequentes. “Antes elas eram mais isoladas. Hoje eu vejo que não preciso de um fator, um gatilho, para ter uma crise. Os episódios depressivos também, agora são uma constante: a falta de motivação, dificuldade de realizar tarefas simples na vida cotidiana”, relata.

Além do medo da contaminação da família – o que deixa a estudante angustiada e frustrada – a falta de perspectiva e esperança afeta a jovem no modo que se relaciona com as pessoas, no seu comportamento e nas suas reações a sentimentos e situações cotidianas. “Ainda que meus problemas [psicológicos] não sejam novos, no sentido de não terem sido causados especificamente pela pandemia, os momentos em que eu conseguia viver a vida bem foram, de certa forma, retirados da perspectiva maior.”

Assim como Amorim, o psiquiatra e professor do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Deivisson Vianna dos Santos, também entende que o adoecimento psíquico vai além da pandemia em si. “A gente costuma achar que é o confinamento, o isolamento social, que leva ao agravamento das condições do sofrimento mental em si, mas existe um monte de coisa antes disso.”

Na visão do professor, é preciso entender o contexto social e econômico para fugir do discurso de que o isolamento social é a principal causa da piora no sofrimento mental das pessoas. “A pandemia trouxe, associada a uma desastrosa gestão da política pública de saúde e da política econômica brasileira, um contexto de sofrimento grande”, afirma.

Além disso, Deivisson destaca outro problema que, para ele, é negligenciado: “a pandemia e a não gestão da saúde pública brasileira fizeram com que as linhas de cuidado de saúde mental se quebrassem da rede de saúde. Pessoas com condições crônicas, problemas de saúde mental, que antes eram acompanhadas, agora não são adequadamente ou têm o seu acompanhamento restrito a uma questão de renovação de receita”. 

Atrelado a isso está a falta de políticas públicas específicas para as populações socialmente vulneráveis, que, de acordo com o professor da UFPR, são duplamente prejudicadas: “Além de serem as populações mais acometidas pelo vírus, são elas as mais afetadas psicologicamente”. Deivisson explica que pessoas que já tinham uma rede social comprometida são as primeiras que têm agravamento do sofrimento. “Por terem redes de apoio fragilizadas e pior acesso aos serviços de saúde que sofrem mais com o agravamento do sofrimento mental e com o possível aumento de casos de transtornos mentais”, finaliza.

O psiquiatra e secretário adjunto da Associação de Psiquiatria do Paraná (APPSIQ) Paulo Grabowski entende que existem diversas formas pela qual a pandemia pode comprometer a saúde mental de um indivíduo, por exemplo, pelo medo da contaminação, impacto das restrições e efeitos do desemprego e da dificuldade financeira. Porém, alerta que o sentimento pode não ser o mesmo para todos. “Existe uma certa divergência. Para algumas pessoas, o home office foi benéfico porque se sentiam pressionadas ou assediadas no trabalho, por exemplo.”

É o caso da empresária de 32 anos Eva Maria, que já sofria com ansiedade, insônia, angústias e insatisfação com o trabalho antes do coronavírus. Eva conta que, por conta da pandemia, foi desligada do emprego e isso acabou melhorando sua qualidade de vida.

Mesmo assim, Eva ainda sentiu o impacto da pandemia na sua saúde mental. “O sentimento de que a vida está passando e eu não estava podendo acompanhar nada acabou pesando bastante. Fiquei algumas noites sem dormir depois de receber a notícia que um conhecido faleceu e outra pessoa muito querida estava em coma na UTI”, relata.

Sofrimento ou transtorno mental?

Não há, nos estudos realizados até o momento, nenhum indício consistente de que o isolamento social ou o contexto da pandemia tenham levado a um aumento de diagnósticos de transtornos mentais. O que não quer dizer, no entanto, que esse cenário não esteja agravando o sofrimento mental dos brasileiros.

Embora a angústia, tristeza e frustração façam parte da vida, principalmente em um momento como o da pandemia, as pessoas têm a tendência de transformar esses sentimentos em patologias. Isso é o que Ana Suy chama de “psicopatologização das coisas”. A psicanalista afirma que diariamente as pessoas fazem uso de palavras como ‘depressão’ e ‘ansiedade’ mas sem que estejam necessariamente associadas ao campo da psicopatologia: “Às vezes a pessoa está mais agitada e fala ‘estou ansiosa’. Acorda triste e fala ‘acordei depressiva hoje’. A gente faz uso dessa cultura da psicopatologização da nossa vida comum.”

Para a psicanalista, é difícil mensurar qual o limite entre um mal-estar próprio da vida e um transtorno mental. Mas ele afirma que a possibilidade de encontrar alegria, em algum momento da vida, é sempre um bom balizador. “Quando você já não consegue experimentar alegria com as coisas possíveis porque a angústia está muito intensa é um sinal importante de que é preciso cuidar, investigar e tratar disso, para que isso não tome uma proporção muito maior que cause impactos negativos na vida. Viver a vida pelos contrastes é o natural. É quando não tem mais contraste que é perturbador”, diz.

Para Cloves Amorim, o principal critério é a intensidade do sofrimento. “Se esse sofrimento está te impedindo de seguir a sua vida, de conviver com seus familiares, você precisa de ajuda. Se você está conseguindo retomar a vida, fazer as suas coisas, ter projetos, planos, se dedicar a um propósito de vida, significa que você está desenvolvendo sua resiliência.” A resiliência, para o psicólogo, é a capacidade adaptativa das pessoas diante do enfrentamento de diversidades, traumas e ameaças. “Parece que a resiliência é uma capacidade de se ajustar, o que não necessariamente implica em sentir-se bem, e sim adaptar-se para ser capaz de continuar, olhar para trás e processar a experiência que está sendo vivida”, afirma.

Deivisson Vianna dos Santos considera perigosa a divisão explícita entre sofrimento e transtorno mental. Isso porque, segundo ele, quando as pessoas fazem essa separação intuitiva é como se elencassem quem merece ser ouvido e quem não. “É como se eu dissesse que apenas quem preenche certo critério para ter um transtorno mental é que merece minha atenção. Por outro lado, se a gente não tem essa linha, vamos considerar tudo como um transtorno mental? Isso também é problemático”, pondera.

O professor explica que, quanto mais fragmentado o sistema de saúde ou o sistema de acolhimento, mais o sofrimento mental será entendido apenas como um diagnóstico. “Se um serviço de saúde tem uma atenção muito fragmentada – isso é, uma atenção que não é integral, que não entende o sujeito como um indivíduo inserido na sociedade, com diversos problemas -, mais eu vou fazer uma identificação recortada e eu vou chamar muito desse sofrimento de depressão”, alerta. 

Isso, de acordo com Deivisson, é resultado da piora no acompanhamento dos transtornos mentais da população, que por sua vez, é consequência direta da pandemia. “Se a gente escuta o sofrimento a partir apenas do diagnóstico, nós teremos respostas insuficientes. Inclusive estritamente medicalizadoras apenas, sem entender que, às vezes, o que a pessoa precisa é de uma escuta, de um acolhimento.”

Por fim, o psiquiatra Paulo Grabowski afirma que os dois fatores mais importantes para diferenciar o sofrimento do transtorno psíquico são a duração e intensidade dos sintomas, e o nível de perturbação do funcionamento do indivíduo. “O que vai determinar se uma pessoa tem ou não um transtorno mental é o nível de sofrimento e de disfuncionalidade daquela pessoa – o quanto esse sofrimento está atrapalhando na funcionalidade da pessoa, seja no convívio social, no trabalho, nas atividades lúdicas”, afirma.

Fazendo o possível

Em um momento de desamparo e incertezas sobre o futuro, Ana Suy sugere algumas formas possíveis para segurar as pontas nesse momento. “Aproveitar as pessoas que a gente tem por perto, manter os contatos e conversas profundas e individuais. Essas coisas são o que salvam porque a gente precisa de fôlego.” 

Além disso, a psicanalista observa que é preciso buscar o equilíbrio: “Se a gente fica acompanhando o noticiário, rede social o dia inteiro, a gente fica preso, porque não tem o que fazer, é desesperador. É importante aprender a fazer alguns cortes”, diz.

Para Cloves Amorim, o mais importante é falar: “Parece que sempre quando nós podemos pôr em palavra, quando nós podemos conversar, ser ouvidos, a gente diminui o sofrimento e pode evitar um quadro mais profundo de uma patologia.”

Nesse momento, Luísa tenta não focar suas energias em situações e fatos que são incontroláveis para o ser humano. “O principal é tentar viver um dia de cada vez e, ainda que seja difícil, tentar pensar menos no futuro porque ele está muito incerto.”

Para a empresária Eva Maria, além dos tratamentos psicológico e psiquiátrico, o que tem a ajudado é a religião. “Ter fé e uma boa terapeuta são essenciais nesse momento.”

Espiritualidade

Assim como Eva, muitas pessoas encontraram na meditação e na religião um refúgio para lidar com as dificuldades do confinamento e do isolamento social. Uma pesquisa da Escola de Medicina de Harvard apontou diversos benefícios dessas práticas como a redução dos níveis dos hormônios do estresse – como o cortisol – e também alterações no cérebro.

Conforme explica o professor de Filosofia e mestre em Educação José Leão da Cunha Filho, diretor de Identidade, Missão e Vocação da Província Marista Brasil Centro-Sul (PMBCS), o isolamento social leva as pessoas ao limite: estressando e desgastando suas forças. “Emocionalmente cansadas, elas tendem a se tornar ansiosas, agressivas e pessimistas. A principal consequência é a perda de visão de futuro. Tornam-se vítimas fáceis do desespero”, afirma.

De acordo com o professor, as religiões, de modo geral, assim como as filosofias orientais oferecem caminhos para o desenvolvimento da espiritualidade. Entre eles estão a meditação e reza. Outros hábitos e práticas que, segundo Leão, podem ajudar a superar adversidades e desenvolver a espiritualidade são: engajar-se em ações humanitárias; saber escutar a si mesmo e aos outros; cultivar bons relacionamentos; perdoar e agradecer. 

Serviço 

  • Cartilha sobre saúde mental produzida pela Fiocruz.
  • TelePaz: serviço de acolhimento emocional destinado a quem sentir medo ou ansiedade durante a pandemia do Covid-19. O TelePaz foi implementado pela Prefeitura de Curitiba em março do ano passado.

Até o dia 19 de abril de 2021, a equipe formada por profissionais da Gerência de Psicologia e Serviço Social da Secretaria de Administração e de Gestão de Pessoal e da Secretaria da Saúde fez mais de 3,5 mil atendimentos no total, de acordo com a Secretaria de Administração e Gestão de Pessoal de Curitiba. 

O TelePaz funciona todos os dias, inclusive nos fins de semana e feriados, das 8 às 18 horas. Os telefones são 3350-8200 (para os servidores municipais) e 3350-8500 (para a população em geral). 

Colaborou: Maria Cecília Zarpelon

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