Não foi só o filho do porteiro. Uma geração de jovens pobres chegou à universidade

Políticas educacionais inclusivas abriram as portas das universidades para pessoas de baixa renda; mesmo assim, há quem insista na ideia de que as iniciativas são ineficientes

Colaboraram Mayala Fernandes e Jully Mendes

“Sim, sou filha do porteiro e da operadora de caixa e me orgulho disso”, diz Daniela Dutra de Lima, fazendo a seguir a pergunta fundamental: “Eu não poderia pensar em estudar e sair do lugar em que estou?” Questionamentos como esse fazem parte do cotidiano de uma geração de jovens que buscam constantemente romper os muros erguidos em torno do ensino privado no Brasil. A implantação das políticas educacionais inclusivas vem atuando como principal meio de entrada dos brasileiros de origem pobre na graduação, sendo, muitas vezes, os primeiros membros da família a completar o ensino superior.

Mas a desigualdade enfrentada pelo país ainda é profunda e excludente. Em 27 de abril, o ministro da Economia, Paulo Guedes, deu mais um exemplo de preconceito e elitismo. Numa reunião do Conselho de Saúde Complementar, o ministro criticou o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).

“Uma vez o porteiro do meu prédio virou pra mim e falou assim: ‘Paulo, eu estou muito preocupado, meu filho passou na universidade privada’. Ué, mas você está triste por quê? ‘Ele tirou zero na prova. Eu recebi um negócio dizendo: parabéns, seu filho tirou zero e acaba de ingressar na nossa escola.’ Deram bolsa para quem não tinha a menor capacidade de ler, saber escrever nada… exageraram, foi de um extremo ao outro “, disse Guedes, enfatizando que o programa foi “um desastre que enriqueceu meia dúzia de empresários”.

O Fies, criado pelo Governo Federal em 1999, surgiu com o intuito de possibilitar o acesso de pessoas que não têm condições de pagar a mensalidade às universidades privadas. Enquanto está matriculado, o estudante não arca com nenhum custo. A quitação só ocorre depois que o beneficiado estiver formado e podendo atuar no mercado de trabalho. As taxas de juros variam de acordo com a situação financeira de cada beneficiado, sendo nulas para quem tem renda familiar entre um e três salários mínimos. 

A fala do ministro explicita o descaso que o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) vem demonstrando com as políticas afirmativas. Comentários como esse, vindo de uma autoridade pública, contribuem significativamente para a precarização dos programas sociais e demérito daqueles que os utilizam para o ingresso na graduação. “É deprimente ver a insensibilidade, com relação às causas sociais, desses grupos que assumiram o poder. Falas como essa têm o efeito de descaracterizar as políticas públicas e caminhar no sentido de eliminar mais essa base social”, afirma Nelson Cardoso Amaral, conselheiro-titular da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca).

Orgulho e preconceito

“Meu pai chega para as pessoas e fala ‘essa daqui é minha filha, ela é psicóloga’. Vejo isso como uma forma de felicidade, de estar conseguindo”

Daniela Dutra de Lima. Foto: Arquivo Pessoal.

Daniela Dutra de Lima, estudante de Psicologia pela Universidade Tuiuti, descreve emocionada o dia em que contou ao pai, Airton Dutra de Lima, porteiro há dois anos, que iria ingressar no curso que tanto sonhou. “Meu pai chega para as pessoas e fala ‘essa daqui é minha filha, ela é psicóloga’. Vejo isso como uma forma de felicidade, de estar conseguindo”, afirma.

Filha de porteiro e de operadora de caixa, a futura psicóloga de 27 anos, é uma entre os milhares de estudantes que já foram beneficiados pelo Fies. A jovem, que teve uma infância de privações, decidiu no nascimento de sua irmã, Lia, que iria estudar para proporcionar outra realidade para ela. “Sempre me lembro da minha avó que dizia que ‘a única coisa que você leva para o resto da vida é o conhecimento, isso ninguém tira de você’. Isso me incentivou ainda mais a estudar e a correr atrás do meu sonho de cursar Psicologia”, relata Daniela.

O caminho rumo ao curso desejado não foi fácil: Daniela chegou a cursar Comunicação Organizacional, na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), mas não se adaptou e ingressou no curso de Letras, em que permanece atualmente.

Mas o sonho de ser psicóloga não foi abandonado. A estudante procurou diversas políticas sociais e descobriu a possibilidade de ganhar uma bolsa de financiamento através da Universidade Tuiuti. Decidiu se inscrever. Com sua nota do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, foi aprovada no curso de Psicologia com financiamento de 80% da graduação.

“Os primeiros seis meses foram difíceis, um desespero. Eu estava realizando um sonho, mas ainda precisava pagar os 20% do valor da mensalidade. Consegui um estágio dentro da UTFPR e foi isso que me ajudou a pagar as parcelas”, conta Daniela.

Para ela, a fala do ministro foi algo doloroso de se ouvir  “É algo que impacta profundamente. Você olha para trás e vê todo o sufoco que foi conseguir cada conquista, e agora está aqui pagando a mensalidade do Fies tudo certinho para não ter nenhum problema. Fiquei muito brava e cheguei a chorar de raiva. Sem o Fies eu não teria conseguido cursar Psicologia”, relata.

“O filho do porteiro, da operadora do caixa, de qualquer pessoa pode sim fazer uso de qualquer programa do tipo. Não dá pra levar essas falas como verdadeiras, elas não fazem sentido”, rebate a estudante que declara ter muito orgulho de seus pais e de suas respectivas profissões.

É importante ressaltar que o Fies não é a única política pública que está permitindo o acesso aos que vêm de baixo ao ensino superior. Assim como ele, o Programa Universidade Para Todos (Prouni) também abriu as portas das universidades para milhares de estudantes. Porém, sua dinâmica é um pouco diferente, o programa oferece bolsas parciais ou integrais para estudantes que se encaixam nos critérios estabelecidos. O Prouni abre inscrição duas vezes ao ano e a seleção é feita com base nas notas do Enem.

Odisseia

“Há uma certa ordem social de classe que se mantém. O Prouni e as cotas, de certa forma, é uma ameaça ao privilégio deles”

Felipe Bispo.Foto: Arquivo pessoal

Weliton Fedalto, 24 anos, é um dos chamados “prounistas”. Nasceu e cresceu em Campo Largo, região metropolitana de Curitiba, a 30 minutos do centro da cidade. O rapaz, hoje graduado em História, conseguiu acessar a universidade por meio de uma bolsa de 100% na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

Para ele, o diploma era um plano desde a infância “Desde pequeno, sempre fui estimulado a estudar, meus pais sendo analfabetos funcionais sempre me apoiaram, acreditando que dentro da área da educação, a gente encontra melhores empregos e melhores salários”, afirma o historiador, um dos primeiros da família a cursar o ensino superior. 

Weliton acredita que o programa foi além da formação acadêmica “O Prouni me possibilitou ter contato com pessoas e compreender coisas que eu não compreendia antes; eram vivências diferentes e a gente tinha que aprender a lidar com isso”, afirma.

Weliton está longe de ser o único beneficiado pelo programa. Segundo dados da PUCPR, atualmente existem 3.983 bolsistas do Prouni com matrícula ativa na universidade. Um deles é Felipe Bispo, 28 anos, nascido em Belo Horizonte, estudante do 8º período de Medicina.

Filho de mecânico, Felipe estudou a vida toda em escola pública e, apesar do desejo de prestar vestibular para Medicina, achava aquilo algo fora da sua realidade. “Eu queria, mas na minha cabeça era algo surreal, porque eu não conhecia ninguém do meu convívio familiar que tivesse acesso ao ensino superior.”, afirma.

Por isso, antes de ingressar na Medicina, Felipe se aventurou em outras duas carreiras, cursou períodos de Engenharia Química e Biomedicina, na Universidade Federal de Uberlândia. Quando decidiu de uma vez por todas pela carreira de médico, procurou formas alternativas de ingresso. Foi quando conheceu o Prouni e viu que, diferente do que pensava, se encaixava nos requisitos necessários. 

Felipe acha que comentários como os proferidos pelo ministro da economia, são infelizes e  refletem não só o que o governo pensa, como também o pensamento de determinados grupos da sociedade. “Há uma certa ordem social de classe que se mantém. Quando você coloca programas como o Prouni e as cotas, isso, de certa forma, é uma ameaça ao privilégio deles”, ressalta o estudante.

O sol é para todos

“No dia da minha formatura a minha mãe não cabia em si de tanta alegria”

Verediane com a mãe Dalva. Foto: Arquivo Pessoal

Verediane Cíntia de Souza Oliveira, 37 anos, foi a primeira da família a ter acesso à universidade. Filha de Dalva, diarista e órfã de pai desde os sete anos, viu nos estudos a oportunidade para enfrentar as dificuldades presentes na sua trajetória. “Sempre estudei e trabalhei bastante, passei em Pedagogia e ingressei na universidade. Foram quatro anos, não vou dizer que era um tempo fácil, era muito cansativo trabalhar o dia todo, ir para a faculdade e ainda dar conta dos trabalhos”, conta Verediane. 

“As cotas fizeram muita diferença na minha vida. Até então a universidade não parecia uma realidade para mim, foi o pontapé inicial para eu me tornar quem sou hoje”, relembra. Veridiane Cíntia se formou pedagoga e, logo em seguida, ingressou no programa de pós-graduação, sendo a primeira mulher negra mestre pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente, é professora em uma instituição privada.

A UFPR esteve entre as quatro primeiras universidades federais a adotarem a política de cotas no Brasil. A implantação se deu no processo seletivo de 2004 e passou a valer em 2005. De acordo com dados da instituição, na época, o porcentual de negros cursando o ensino superior na UFPR era de 3 a 4%, enquanto a população negra chegava a 21%. Atualmente, 50% dos ingressos na universidade são cotistas; 28% dessas vagas deveriam ser ocupadas por pretos, pardos ou indígenas, mas o número costuma ser inferior devido à ausência de candidaturas.

Verediane fez parte das primeiras turmas compostas com a presença de cotistas raciais da UFPR. “Eu nunca tinha visto tanta gente preta reunida dentro da academia, fiquei muito encantada em saber que ali era um espaço em que eu também poderia estar”, relata a pedagoga. Mas as críticas também estiveram presentes ao longo da graduação. “Teve uma situação de uma colega de turma que falou assim: ‘Eu não entrei na primeira chamada por culpa sua, você roubou minha vaga’. Infelizmente muitos diziam que nós entramos pela porta dos fundos”, completa.

O Superintendente de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade (Sipad), professor Paulo Vinicius Baptista, explica que a avaliação sobre a política de cotas, realizada em 2008, contraria a afirmação de que o índice de  qualidade seria prejudicado. “Os resultados do primeiro monitoramento mostram que o rendimento dos cotistas de escolas públicas é superior ao rendimento dos alunos da classificação geral. Já o aproveitamento dos cotistas negros era igual ao dos alunos de classificação geral”, ressalta o docente.

“Se a gente comparar a universidade de hoje com a de 15 anos atrás, a composição racial salta aos olhos. Ao mesmo tempo, ela ainda está muito aquém do que deveria”, destaca Paulo.

Os Sertões

“A nossa presença é importante para romper o latifúndio da educação”

Jaqueline discursa em sua formatura. Foto: Wellington Lennon/MST.

“Venho do interior da Bahia, de um município chamado Monte Santo, região de Canudos. Sou filha de pequenos agricultores, meus pais produzem mandioca, milho, feijão e criam cabras e ovelhas”, conta a advogada Jaqueline Pereira de Andrade, falando sobre a região onde aconteceu o massacre dos sertanejos reunidos por Antônio Conselheiro no fim do século 19.

A mãe é semianalfabeta, o pai estudou até a quarta série. “A educação a que tive acesso na infância foi complicada e difícil pelas condições estruturais da nossa sociedade. Ter a oportunidade de ingressar em uma universidade pública em um curso de Direito que é tão elitizado, foi um ato de ‘romper o latifúndio da educação’”, afirma.

Jaqueline é um dos 47 alunos que construíram a primeira turma do curso de Direito para assentados da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A turma Nilce de Souza Magalhães foi uma parceira do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) com a UFPR, a iniciativa reuniu estudantes vindos de 15 estados do Brasil, todos com um aspecto em comum: possuir vínculos com as comunidades tradicionais do campo.

O Pronera foi criado em 1998, no governo Fernando Henrique Cardoso, com o objetivo de reduzir o déficit educacional dos jovens e adultos inseridos em assentamentos, a política foi resultado da luta dos movimentos sociais do campo pelo direito à educação pública de qualidade. Ainda em 2015, segundo Pesquisa Nacional sobre Educação na Reforma Agrária (PNERA), o programa foi responsável pela alfabetização, escolarização fundamental, médio e superior de 192 mil camponeses nos 27 estados brasileiros.

A parceria com a UFPR se deu entre 2015 a 2019: os alunos foram classificados de acordo com as pontuações obtidas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e mantidos na instituição mediante financiamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A universidade não teve nenhum custo adicional no orçamento para receber os estudantes.

“No dia 23 de fevereiro de 2015 eu estava chegando em Curitiba, no começo foi muito difícil porque eu saí da roça, no sertão da Bahia, para morar em uma capital do Sul”, comenta Jaqueline. “Viver aqui foi um ato de coragem, resistência e enfrentamento. Não foi fácil, mas eu cresci muito”, completa.

Além das dificuldades culturais e a saudade da família, a advogada também precisou enfrentar o preconceito presente no discurso de alguns colegas de turma. “Nos corredores da universidade a gente sentia esse olhar diferente, os julgamentos existiam nas entrelinhas. Muitos acreditavam que íamos baixar o conceito da universidade”, revela a advogada.

Mas a realidade mostrou o oposto, mais de 90% dos alunos se formaram e a maioria já exerce a profissão, alguns, inclusive, ingressaram na pós-graduação. “Fizemos uma avaliação final para encaminhar ao Ministério da Educação e concluímos que os resultados foram alcançados. Houve uma grande contribuição para a formação da educação superior no campo” afirma o coordenador do Pronera na UFPR, professor Manoel Caetano.

“O Pronera mudou a minha vida, a nossa turma abriu caminhos e oportunidades, construiu profissionais e sujeitos políticos que irão perpetuar a luta pelo direito dos povos camponeses”, declara Jaqueline Andrade. “Me formei como advogada popular, hoje atuo em uma organização de assessoria jurídica popular e sigo com o sonho de ser professora universitária”, conclui, ressaltando ainda que, apesar de não ter retornado para a Bahia, segue com o objetivo de contribuir para a luta pelos direitos das comunidades tradicionais.

A turma Nilce de Souza Magalhães era a mais negra da UFPR. “A presença deles enriqueceu muito o nosso ambiente”, afirma o coordenador do programa, Manoel Caetano. “São programas como esse que ajudam a diminuir as desigualdades sociais da nossa sociedade. No momento atual, é difícil pensar em investimentos do governo em áreas como essa”.

Em decreto publicado no Diário Oficial em 20 de fevereiro de 2020, o governo extinguiu a coordenação responsável pela educação no campo. A reorganização da estrutura do Incra enfraqueceu programas importantes e inviabilizou a continuidade do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Não foi só o filho do porteiro. Uma geração de jovens pobres chegou à universidade”

  1. Elda Lopes Lira

    Maravilhoso! Eu sou bibliotecária e trabalhei na Faculdade de Direito da UFPR e adorei. Mas, como eu e meu companheiro também somos nordestinos, voltamos para o Nordeste e fomos redistribuídos para o IFCE em Fortaleza.

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