“Não basta cuidar de cada caso de feminicídio; é preciso mudar a cultura”

Filósofa Marcia Tiburi fala sobre campanha contra o assassinato de mulheres

Quinta-feira, 24 de dezembro, véspera de natal. Ano de 2020. No Rio de Janeiro, Viviane Vieira do Amaral, juíza do Tribunal de Justiça do Estado Rio de Janeiro, foi assassinada a facadas na frente das três filhas pequenas no condomínio onde morava na Barra da Tijuca. Foram 16 facadas dadas pelo ex-marido.

Em Jaraguá do Sul, norte de Santa Catarina, Thalia Ferraz, foi assassinada a tiros na frente de seus familiares. O ex-companheiro entrou na casa atirando. Thalia, que tinha deficiência auditiva, tentou se esconder e foi atingida no tórax. Ela tinha dois filhos, de 3 e 6 anos. O assassino, que fugiu do local antes de ser pego, tinha enviado uma mensagem um dia antes para Thalia, com a pergunta: “Gosta de surpresa?”

Em Recife, no Alto do Mandu, Ana Paula Porfirio dos Santos, casada há 20 anos, logo após a ceia de Natal, foi assassinada pelo marido, um sargento reformado da PM. Foram dois tiros: um no rosto e outro no tórax a curta distância. A filha de 12 anos estava na casa. O assassino foi preso em flagrante mas foi encaminhado ao Centro de Reeducação da Polícia Militar.

Nos dias seguintes – e anteriores –  o feminicídio, que é o assassinato de uma mulher devido ao fato de ela ser mulher, seguiu aparecendo nos jornais pelo país. Mulheres de regiões diferentes, com histórias de vidas diferentes, mas que têm tanto em comum com outras vítimas, através dos séculos, pelas marcas da violência e do silenciamento que o machismo e a misoginia causam.

Inserida em nosso sistema capitalista, a opressão de gênero é uma realidade onde raça, gênero, classe e orientação sexual ditam os privilégios na sociedade patriarcal. E dentro desse engodo várias faces da mesma moeda coexistem. O escopos vai desde frases sutis a comportamentos explícita e implicitamente violentos que geram uma ruptura da integridade psíquica, física, sexual ou moral das mulheres que, em vários casos, chegam ao ápice – o feminicídio.

No Paraná, de acordo com dados do Ministério Público, o índice de feminicídio teve um aumento em 2020 de 3,8%. No país, durante o primeiro semestre da pandemia, o aumento foi de quase 2%, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A dificuldade em denunciar a violência, somada à omissão do Estado e à falta de políticas públicas, fez com que mulheres negras, pardas, brancas, indígenas, feministas, trans, quilombolas, periféricas, lésbicas, bissexuais, do campo, mães, parteiras tradicionais e etc, de todo o Brasil se unissem em uma campanha para exigir medidas efetivas de proteção à vida.

A campanha tem o mote baseado no samba “Corpo Meu”, de Cris Pereira e interpretado por Fabiana Cozza, “Nem Pense em Me Matar – Quem Mata Uma Mulher Mata a Humanidade!” teve início em uma conversa entre a artista, filósofa e escritora Marcia Tiburi e a socióloga, ativista e referência do movimento negro Vilma Reis.

Em entrevista concedida ao Plural, Marcia Tiburi fala sobre a campanha.

Como surgiu o movimento?

O levante feminista contra o feminicídio teve início em uma inspiração na virada do ano que aconteceu entre mim e Vilma Reis da Bahia.

Naquela virada de ano, no Natal mais precisamente, houve uma onda de feminicídios que foram bem chocantes para o Brasil todo – e nós mulheres militantes feministas estamos já, infelizmente, acostumadas – porque acompanhamos diariamente a matança de mulheres – e foi bastante chocante naquele Natal.

Houve também o assassinato de uma juíza. E na fantasia popular eu acho que as pessoas não imaginam que uma juíza que é uma mulher, que é formada, concursada, que trabalha com a lei possa ser morta diante das três filhas por um ex-marido que não aceita a separação.

Foi um momento de muita discussão, de muita análise. No dia, fiz uma postagem no Instagram logo na sequência deste acontecimento dizendo “precisamos conversar sobre o feminicídio”. A Vilma Piedade respondeu e antes do final do ano nós telefonamos. Combinamos de criar uma campanha que pudesse combater, lutar contra, esclarecer, discutir, analisar, produzir sensibilidade, mudar a mentalidade, mudar a cultura patriarcal que mata as mulheres. No dia 6 de janeiro nós nos reunimos com 15 representantes de coletivos e partidos e em poucos dias éramos 30 e logo depois éramos umas 60; e logo depois éramos 100 e hoje em dia somos centenas. E, em trabalho, eu diria até que já somos milhares.

O nosso Manifesto na forma de um abaixo-assinado está sendo veiculado constantemente. As pessoas têm manifestado o seu apoio a essa luta das mulheres por  suas próprias vidas e pela vida das mulheres no nosso país. Muitos homens têm apoiado essa iniciativa e pessoas de todos os gêneros e sexualidades. Estamos numa luta profunda.

As autoridades estão atentas a isso?

Evidentemente, não.

A nossa cultura política é patriarcal. As instituições foram tomadas pelos misóginos machistas, pelos representantes do patriarcado que são também fundamentalistas. Há um conluio entre Estado, poder econômico e poder Eclesiástico – as igrejas do mercado, nesse caso – e todos os fundamentalistas das religiões monoteístas patriarcais. E evidentemente as instituições tomadas por esses sacerdotes do machismo, do racismo, do capacitismo, de tudo aquilo que é antifeminino, que é contra a vida, em vez de se juntarem aos combates tornam-se algo que é preciso combater. Nós hoje lutamos contra um sistema de opressão que evolui para um sistema de extermínio. A população negra sabe muito bem o que é isso. E a população feminina, infelizmente, também sabe muito bem o que é. Mas estamos aqui para juntar para construir uma aliança entre aqueles que sofrem, uma aliança para mudar o mundo. E eu acredito que o feminismo é o outro mundo possível. E sei que as  companheiras pensam da mesma forma.

Como evitar o feminicidio?

Nós só poderemos evitar o feminicídio na medida que tenhamos uma cultura que respeite a vida, respeite o corpo das mulheres e respeite os significados e a autossignificação do que é ser mulher.

Hoje não temos apenas mulheres do sítio do heteronormativo nem apenas mulheres cis. Temos mulheres trans, temos mulheres lésbicas, mulheres que vivem outras formas de sexualidade. Mulheres de outras formas de gênero e, evidentemente, mulheres que têm consciência disso e que denunciam os abusos, as violências relacionadas a essas novas formas de existência que são atacadas. Nesse sentido, as feministas são também atacadas; ou seja, uma mulher é atacada simplesmente por ser feminista.

Então, a autodesignação feminista, a participação na luta com o feminismo também se transformou num foco de violência, no fator, portando, de opressão, de se tornar vítima de uma violência em potencial que é a violência dada no patriarcado.

Sobre o crescente número de violência doméstica e aumento das possibilidades de feminicídio, quais ações o movimento está pensando?

O movimento é uma grande campanha. É uma campanha pela reflexão, pelo pensamento lúcido, uma campanha de sensibilização, uma campanha que visa uma atuação simbólica e prática. A gente acredita que mudando as condições simbólicas e imaginárias da cultura, pode também mudar as condições práticas da cultura e vice-versa. Ou seja, é preciso atuar criando consciência de um lado e isso se faz através de debates, pesquisas, análises ensaios, congressos, em lives – ou seja, é preciso criar um ambiente coletivo e público de conversa e de diálogo em torno dessa questão. E é preciso também trazer toda a discussão em torno do direito das mulheres como o direito humano e estimular a criação de redes de apoio para as mulheres; e, nessa medida, também, fazer pressão sobre os órgãos do poder, sobre o STF, sobre o Judiciário de uma maneira geral, e o Legislativo para que sejam construídas leis e medidas capazes de equilibrar a relação entre os Poderes e a vida cotidiana e de trazer proteção para as mulheres que são vítimas de uma cultura patriarcal.

A gente só vai ter uma mudança dos poderes estabelecidos se tivermos também uma mudança na cultura da vida cotidiana, se tivermos uma mudança na mentalidade da população na vida diária e na família. A gente entende que a violência doméstica está absolutamente ligada à violência simbólica produzida em nível institucional. A violência contra as mulheres é uma violência generalizada. Uma violência que todas as instituições têm com relação aos seres hétero denominados mulheres, que foram nomeados pelo patriarcado como sendo mulheres. Sobre essas pessoas pesa uma cultura que visa as mulheres apenas como seres serviçais. Seres que servem para os homens e que servem para as instituições organizadas e construídas à maneira do patriarcado, ou seja, como sistema, como parte da instauração do privilégio patriarcal.

Então é importante que a gente tenha noção disso. Não se combate a violência doméstica sem uma luta também contra as violências públicas, contra a violência simbólica, contra as violências institucionais. Agora, é certo que precisamos de políticas públicas voltadas para as mulheres, que envolvam educação, cultura, arte e espaço para que haja conscientização, produção de conhecimento, pesquisa, mas também melhoria das condições da vida das pessoas, da vida mental e psíquica. Tudo isso faz parte da possibilidade de alterar essa cultura.

Nossa campanha busca atuar em toda essa constelação de fatores que implicam mudanças institucionais e fatores que implicam mudanças, vamos dizer assim, na subjetividade.

A campanha vai incentivar quais tipos de comportamento?

A nossa campanha tem foco no feminicídio. O feminicídio é o apice da violência contra a mulher. Ele cancela. A morte de uma mulher, o assassinato de uma mulher, cancela todos os outros direitos. Nesse sentido, é evidente que queremos chamar atenção para todos os circuitos dos preconceitos, todos os circuitos da maldade que há contra as mulheres, colocando foco justamente no feminicídio como limiar a partir do qual não há justiça que possa ser feita. Não há como voltar atrás no tempo quando uma coisa dessas acontece. Então, nós visamos certamente, toda a discussão, todos os direitos, todas as pausas das feministas relacionadas à raça, gênero e sexualidade, capacitismo e questões associadas, porém, com esse foco no feminicídio. Justamente porque a gente acredita que tudo isso faz parte do mesmo jogo de violência que conduzem justamente no seu ápice, ao feminicídio.

Dentro da diversidade, todas as pautas de mulheres estão sendo consideradas?

A campanha visa uma conscientização. Então a campanha não pressupõe que as pessoas sejam robôs que vão agir conforme regras pré-estabelecidas. A gente pressupõe que é preciso criar uma cultura de diálogo entre as pessoas, sobretudo, de diálogo entre as próprias mulheres e de um diálogo entre os homens e com os homens, para alterar esse cenário porque a violência exercida contra as mulheres nos mais diversos níveis e contextos é produzida pelos homens. Mas ela precisa ser modificada não apenas a partir da consciência dos homens é também preciso conscientizar as mulheres de que elas não devem e não precisam ter medo de denunciar.

Mas isso também não pode ser feito de maneira abstrata. Não basta uma mulher que vive sob violência ir para a delegacia. E. nesse sentido, as leis existentes, a própria Lei Maria da Penha, precisam ser inscritas num outro tipo de debate que possa esclarecer a cultura, as pessoas de uma maneira geral, acerca da função da Justiça e acerca também da cultura que dá base a esse tipo de comportamento. Então, evidente que esperamos que a matança cesse, mas a gente sabe que não adianta falar disso em sentido abstrato, é um processo complexo.

É um processo de falar bastante, publicizar essas questões e fazer com que a sociedade deseje uma transformação nessa direção. E para isso, evidentemente, a gente quer trazer as mulheres para o diálogo. A gente sabe que é muito importante conversar com os homens, mas quer sobretudo trazer as mulheres para esse diálogo e trazer as mulheres para essa consciência.

Quais as formas de acolhimento e denúncias que o movimento está propondo?

Marcia Tiburi – Sobre acolhimento e denúncia, a própria campanha já se organiza como a produção de uma grande rede. Nós esperamos que todas as mulheres possam fazer parte dessa campanha e dessa rede. Nesse sentido, esperamos reproduzir esse modelo de rede de encontro de mulheres conversando entre elas para construção de uma democracia com as mais próximas, como gosto de dizer. E que as mulheres nas cidades, nos Estados, possam ir organizando suas redes de proteção e contando também com as mulheres que são agentes da Justiça, sejam delegadas, promotoras, juízas, enfim, as mulheres que estão nos processos de defesa e proteção de direitos de outras mulheres; e, nesse caso, a gente precisa também proteger as mulheres que lutam pelos direitos das mulheres.

Esse é um novo direito e é preciso ter consciência dele. Porque as pessoas que defendem os direitos humanos são muitas vezes vítimas da grande violência patriarcal. O que aconteceu com a Marielle faz parte disso. O assassinato de Marielle Franco é também uma agressão contra uma lutadora pelos Direitos Humanos, além de todas as outras lutas que ela levava adiante na sua vida.

O que dizer sobre gênero e feminicídio?

A sociedade que demoniza a própria palavra “gênero” é a sociedade patriarcal comandada pelos fundamentalistas. São fundamentalistas cristãos, fundamentalistas da economia, fundamentalistas do patriarcado, e essas figuras precisam realmente ser superadas.

Por que essa ação acontece agora na pandemia?

De fato a pandemia aumentou o número de feminicídios, toda violência doméstica aumentou porque o evidente aconteceu. As mulheres e as crianças, que antes podiam sair de casa e podiam ir para escola, podiam ficar um tempo longe dos seus algozes, acabaram sendo trancadas dentro de casa com essas pessoas. Então é muito importante que a gente tenha consciência disso. Mas acho que as pessoas estão percebendo esse fator, e é catastrófico! Quer dizer, quantas crianças abusadas, quantos casos de meninas muito jovens engravidadas, estupradas por seus próprios familiares dentro de casa e é evidente que isso nos choca – o aumento estatístico nos choca, porque nesse caso, os números realmente são frios, mas os números mostram que o problema é imenso e que não se trata de casos isolados. Já seria trágico demais se fossem casos isolados, mas são muitos casos, é um padrão cultural. Justamente por isso, por ser um padrão cultural, é que podemos atuar e devemos atuar na cultura e não basta portanto atuar em cima dos casos isolados. Uma campanha visa trabalhar na cultura justamente para que os sujeitos individuais, mudando sua forma de ser, sua mentalidade, sua maneira de pensar e de sentir, sejam estimulados. Assim como são estimulados pelo governo fascista, machista e racista a produzir violência, assim como existe de fato esse estímulo, podemos estimular o contrário e é isso que estamos fazendo. Evidentemente é um combate que implica uma contraposição radical ao governo atual.

Sobre o/a autor/a

3 comentários em ““Não basta cuidar de cada caso de feminicídio; é preciso mudar a cultura””

  1. No âmbito de ação afirmativa, lendo essa matéria, fiquei pensando que o processo de investigação e criminalização do agressor no feminicidio também precisa de alguma mudança.
    A polícia civil levar mais de seis meses pra fechar um caso de feminicidio me parece descaso. A família sofre com isso.
    Aí vc vai ver, o delegado responsável tem uma postura totalmente machista a respeito. Então é preciso que essa parte possa ser acompanhada de perto por agentes que lutem no combate à violência contra mulher.
    Por que sim, infelizmente, a violência também está nesses jogos de poder.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima