Mais um ano de racismo em Curitiba

Curitiba teve 44 casos de racismo e mais de 200 de injúria racial em 2022

Na última semana o segurança Marcelo Melo, de 47 anos, foi vítima de injúria racial enquanto trabalhava na Câmara Municipal de Curitiba. A autora do crime, Anoema Lopes Santana, 69, membro do Conselho Municipal de Saúde, acabou presa.

O caso de Marcelo está longe de ser o único na capital. De acordo com a Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp) foram registrados 224 boletins de ocorrências pelo crime de injúria racial entre janeiro e outubro deste ano. Outros 44 foram registrados como casos de racismo, crime mais grave conforme o código penal.

Racismo ou injúria racial?

O crime de injúria racial, previsto no parágrafo terceiro do artigo 140 do código, prevê pena de até três anos e multa. O advogado Valnei França, que atua em casos de violação de Direitos Humanos, explica que este delito ocorre quando a ofensa é feita diretamente ao indivíduo. “Quando ocorre [o crime] fazendo uso palavras depreciativas referentes a raça ou a cor com a intenção de ofender a honra da vítima, que são aqueles xingamentos, por exemplo, no estádio de futebol quando é a torcida fica chamando o jogador de macaco”, explica o advogado.

Mais grave é o crime de racismo, previsto na Lei 7716. Essa prática ocorre quando existe a conduta discriminatória dirigida a um grupo ou coletividade. “Quando você obsta a entrada de pessoas negras num local ou acesso delas ao emprego na iniciativa privada”, exemplifica França.

A advogada Mariana Lopes não foi impedida de entrar no prédio do INSS, mas por ser negra foi vítima de ofensas gravíssimas e teve o atendimento prejudicado enquanto representava um cliente. A servidora que teve a conduta racista, Cátia Yoshida, foi levada para a delegacia, mas saiu sob fiança.

Violência

Os casos de Mariana Lopes e de Marcelo Melo não estão contabilizados no levantamento fornecido pela Sesp porque aconteceram depois de outubro; mas independente disso os dados não refletem necessariamente o número real de casos envolvendo questões raciais em Curitiba.

O segurança Paulo Cézar Bezerra da Silva, que responde por tentativas de homicídio, foi autor das agressões contra o músico negro Odivaldo Carlos da Silva, o Neno, na rua dr. Fraive. Testemunhas indicaram que a prática era recorrente contra pessoas em situação de rua – a maioria negras. Todavia, por medo ou por falta de instrução, as vítimas não formalizaram as queixas.

O Atlas da Violência 2021 aponta que 77% dos homens assassinados no Brasil e 66% das mulheres são negros. Os números — muito superiores à representatividade dessa população, que alcança 56% dos brasileiros. Em Curitiba a Sesp não tem levantamento que separe o gênero das vítimas de racismo e injúria racial.

Embranquecimento

Para entender as questões raciais é importante primeiro compreender o que é racismo, que é uma prática discriminatória baseada no conceito de que existem diferentes raças humanas e que uma é superior às demais.

Partindo deste pressuposto, também surge o conceito de “embraquecimento”, que é uma sistematização de apagamento de contribuições de grupos ditos “minoritários”. Coautora do livro “Paraná Preto”, a jornalista Maria Carolina Scherner, explica que Curitiba tem uma história de embranquecimento do passado.

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“Sempre se tentou embranquecer o Paraná ao longo da sua história. Até hoje há pouquíssimos registros sobre a história dos escravizados e da população negra no Estado, o pouco que se tem são relatos dos movimentos sociais, muitos ainda atrelados a oralidade dos ascendentes”, diz.

“Curitiba tem orgulho de ressaltar em sua história a imigração europeia, mas pouco retrata as etnias africanas. Essa ideia de uma cidade com ares de Europa vende, dá retorno financeiro, reforça o turismo por exemplo. E o turismo está na região central, onde temos as praças e bosques em homenagem aos imigrantes europeus. O memorial africano está no Pinheirinho, fora da rota turística. Ainda estamos às margens”, complementa.

Nesta seara, há uma normatização de lugares para pessoas brancas e pessoas negras na sociedade. No caso de Melo, segurança da Câmara, uma idosa branca entendeu que ele deveria estar ali como um serviçal.

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O mesmo ocorreu com a cantora Luísa Sonza que estava em um resort e “confundiu” a turista Isabel Macedo de Jesus, uma mulher negra, com uma garçonete em 2020. “Ela reproduziu uma conduta que está enraizada na cultura da branquitude”, salienta o advogado Valnei França.

No Paraná

Ana Paula Medeiros, pessoa preta formada em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), afirma que essa tentativa de branqueamento ocorre também em âmbito estadual.

“A violência do apagamento gera outras violências e não é recente na história do Paraná. Houve uma tentativa de esconder as contribuições culturais, tecnológicas, artísticas e religiosas de afrodescendentes pelo movimento paranista e isso reverbera até hoje”, explica.

A negação à existência de pessoas negras e indígenas no Paraná culmina em no racismo estrutural e institucional. “Nasci no norte do Paraná, mas sempre me perguntavam se eu era de outro estado e conheço muitas pretas e pretos que nasceram em Curitiba e têm que responder a mesma pergunta, adicionada ao espanto da branquitude curitibana de que, sim, pessoas pretas existem em Curitiba”, critica.

Educação

Neste ano o Paraná teve uma única mulher negra concorrendo ao cargo de vice-governadora nas eleições: a advogada Eliza Ferreira, do PDT. Mesmo em espaços progressistas há resistência de pessoas brancas com o avanço das pautas raciais e o processo de evolução, de acordo com Eliza, perpassa pela educação.

“Primeiro é preciso ter letramento racial. Somente quando tive letramento racial compreendi que a sociedade reproduz o comportamento opressor”, explica.

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No Brasil está previsto o ensino de Cultura Africana e Afro-brasileira nas escolas, conforme a Lei 10.639. O problema é que isso não é feito de maneira interseccional entre as disciplinas e, pior, passa pela falta de letramento racial de professoras e professores.

No mês da consciência negra, em uma escola de Almirante Tamandaré, região metropolitana de Curitiba, o trabalho escolar proposto ao alunos resultou em um ato de racismo: imagens de mulheres negras com cabelo feito de palha de aço, ou “Bombril”. “É importante que a escola faça que haja convivência entre crianças brancas e negras e que não demonstre que somos descendentes de escravizados, mas sim de reis e rainhas”, critica a advogada.

Para o professor doutor Sérgio Luis Nascimento, membro no Núcleo de Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica (PUC), há uma resistência da sociedade brasileira em discutir dores como o período de escravização ou ditadura militar. “Por aqui negamos a escravização e negamos inclusive o racismo. Há uma preocupação em manter a ideia de que estamos vivendo numa democracia racial. Não queremos enfrentar o problema”.

homem negro de terno
Melo agradeceu ao apoio recebido após o episódio racista | Foto: Tami Taketani/Plural

O conceito de democracia racial foi enraizado por meio do escrito “Casa-grande & Senzala”, de Gilberto Freyre. O escritor construiu uma visão totalmente discrepante e romântico do período mais brutal da história do Brasil. A ideia de que brancos e negros conviviam de forma harmoniosa e respeitosa, quando, na realidade, africanos, indígenas e afro-brasileiros eram tratados como animais.

Este imaginário – reforçado propositalmente – faz com que sempre que haja um caso de racismo ocorram desculpas genéricas de negação como “tenho amigos negros”, “minha avó era negra” etc. No caso do segurança Melo a criminosa disse que se tratava de “brincadeira”. Na situação envolvendo o músico Neno, o agressor negou veementemente que fosse racista.


Relembre alguns casos de racismo ou injúria racial que ocorreram em Curitiba em 2022

Mulheres negras

Em fevereiro deste ano a vereadora de Curitiba Carol Dartora (PT) foi algo de ofensas racistas por meio das redes sociais após participar de um ato antirracista em memória de Moïse Kabagambe, jovem congolês assassinado ao cobrar salário atrasado, e Durval Teófilo Filho, morto pelo vizinho.

Foram encaminhadas denúncias para a promotoria de Direitos Humanos do Ministério Público do Paraná.

Em novembro deste ano a advogada Mariana Lopes, ao representar um cliente junto ao INSS, foi impedida de trabalhar pela servidora Cátia Yoshida, também na capital.

Não sabia que preto podia ser advogado”, disse a servidora, ao se negar a atender o pedido de Mariana. O caso foi parar na delegacia.

Crianças

Em abril deste ano uma criança de 4 anos foi vítima de racismo na escola Sesc Educação Infantil, em Curitiba. A criança chegou a quebrar o braço após ser empurrada por uma aluna branca e foi sistematicamente vítima de ofensas na escola. A promotoria de Justiça foi comunicada, e o pai da menina, o poeta Rei Seely, trocou a filha de escola.

Em outubro um adolescente de 11 anos, filho de Patrícia Marluce, foi abordado por um segurança na farmácia Panvel, no Portão. O menino passeava entre as gôndolas da loja enquanto a mãe fazia compras e foi tratado como “suspeito” pelo segurança.

Em maio deste ano o músico Luis Fernando Diogo descobriu que a filha sofria racismo ao conferir a atividade escolar da menina de apenas sete anos, na escola Little Kids Bilíngue, em Curitiba.

Ao responder uma pergunta na tarefa de casa a criança escreveu que era bom fazer amigos na escola e que era ruim uma colega dizia que o cabelo dela era feio e bagunçado. A criança é negra e tem cabelo crespo.

Indígenas

Em abril deste ano a professora Dayane Padilha, que tem traços indígenas, foi agredida e expulsa do carro por um motorista de aplicativo. O caso foi julgado e o acusado absolvido da acusação de injúria racial, mas os advogados da vítima estão recorrendo do caso, que aconteceu em Piraquara, região metropolitana de Curitiba.

Em setembro, Kretã Kaingang, candidato a deputado estadual do Paraná pela Rede Sustentabilidade, foi alvo de ataques racistas durante uma live. O autor do crime, entre outros, disse que “indígenas não gostam de trabalhar”. O caso está sendo investigado.

Homens negros

O segurança Marcelo Melo, da Câmara Municipal, após ser vítima de racismo por parte Anoema Lopes Santana, foi homenageado pelos colegas. Ele disse, no dia da ofensa, que é preciso ter mais empatia. O caso está sendo investigado pela Polícia Civil.

A mesma Câmara que homenageou o segurança cassou o mandato de Renato Freitas (PT), vereador negro que participou do mesmo protesto antirracista da colega Carol Dartora.

Diferente da colega, Freitas entrou na Igreja e fez uma fala. À época a Arquidiocese de Curitiba disse que o parlamentar havia invadido o templo, mas depois recuou e até enviou uma carta para a Câmara se posicionando contra a cassação. O caso tomou grandes proporções por expor o racismo institucional na Câmara.

O músico Odivaldo Carlos da Silva, conhecido como Neno, de 55 anos, foi agredido enquanto andava pela rua dr. Faivre, em novembro. O autor Paulo Cezar Bezerra da Silva foi indiciado por tentativa de homicídio qualificado.

No Cristo Rei, também em novembro, um homem não identificado foi agredido no meio da rua por um segurança da empresa Guardian. Não foi registrado boletim de ocorrência, mas as imagens repercutiram nas redes sociais.

No início do ano, em fevereiro, Quintino Correia, que era de Guiné-Bissau foi baleado duas vezes na Alameda Doutor Carlos de Carvalho.

Como a investigação demorou demais, o trabalho de apuração foi prejudicado e não foi possível recuperar imagens das câmeras de segurança das imediações. O corpo de Correia foi sepultado em seu país natal.

Como denunciar

É possível acionar a Polícia Militar (190) ou Guarda Municipal (153). Também por meio do telefone 0800-642-0345. Neste caso o atendimento é de segunda à sexta, das 9h às 17h.

Também há um canal online: [email protected]

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