Joyce veio da selva

Talvez devêssemos nos manter selvagens como Stephen, alter ego de Joyce, que não se curvou ao colonizador

“Havia um longo regato na areia e, enquanto vadeava lento seu curso, pensava na infinita deriva de algas. Esmeralda e negras e carmesim e oliva, elas moviam-se sob as correntes, oscilantes e circulantes […] e o cinzento ar quente estava parado e uma nova vida lhe cantava nas veias.

Estava só. Despercebido, feliz e perto do coração selvagem da vida. Estava só e jovem e disposto e de coração selvagem, só em meio a um deserto de atmosfera selvagem […]”. Tradução de Caetano Galindo.

Essa é uma passagem do romance Um retrato do artista quando jovem, publicado em 1915, pelo escritor irlandês James Joyce, que parece representar todos nós, brasileiros, “vindos da selva”, como bem lembrou recentemente o presidente da Argentina Alberto Fernández.

Ao contrário de ser algo negativo, vir da selva (ou aproximar-se da selva), no caso de Stephen Dedalus, personagem criado por Joyce, significa libertar-se de conceitos já preestabelecidos. Quando o escritor se refere a um “deserto de atmosfera selvagem”, ele parece querer aludir a um lugar vazio, onde tudo está para ser construído, mesmo que seja através de miragens, ou principalmente através de miragens, que se materializam e desmaterializam sem que se possa fixá-las em uma só.

O conceito de selvagem, em Joyce, se aproxima, a meu ver, ao conceito de magia de Giorgio Agamben. A magia, diz o pensador italiano, está diretamente ligada à experiência com a linguagem, a um pensamento renovadamente crítico em relação à linguagem. A magia é o desvio que desvincula o sujeito da culpa da imposição de um nome.

Nesse mesmo trecho do romance citado acima, Joyce fala também do mar, que não tem forma fixa. Deserto e mar são selvagens, como o próprio Joyce o foi ao não permitir que sua escrita fosse domesticada ou enlaçada pelas convenções literárias de sua época ou exigências de editores. No Finnegans Wake, sua obra mais radical, aparece a expressão “selvagem ortodoxo”, para caracterizar o processo criativo.

Cabe lembrar que Um retrato teve uma história editorial conturbada e foi recusado inúmeras vezes. Segundo Richard Ellmann, um dos editores o teria recusado sob a alegação de que nele havia “muitas longueurs” [muitos excessos]  e que o autor deveria revisá-lo. Mas Joyce não revisou o texto e manteve sua escrita “selvagem”, que contribuiu para revolucionar a literatura.

Joyce parecia aferrado ao coração selvagem quando, em 1905, declarou: “eu gostaria de uma língua que estivesse acima de todas as línguas, uma língua que todos pudessem utilizar. Eu não me posso expressar em inglês sem me encerrar numa tradição”. Na realidade, segundo a opinião de alguns historiadores, a Irlanda nunca chegou a assimilar a cultura britânica, apesar da sua forte presença e da adoção da língua dos conquistadores. 

O escritor se manteve um selvagem aos olhos dos colonizadores. A linguagem não convencional de Finnegans Wake, que fragmenta ou mutila a língua inglesa, teria como objetivo não só representar o universo onírico dos personagens da obra, mas também protestar contra os anos de ocupação inglesa da Irlanda.

Alguns estudiosos defendem a ideia de que muitas das qualidades estilísticas revolucionárias de Joyce podem ser atribuídas à sua compreensão de expropriação ideológica, étnica e colonial e estar nela embasadas. Sustentando isso eles mostram como Joyce escrevia em oposição às pretensões culturais imperialistas britânicas do seu tempo.

Talvez devêssemos nos manter selvagens como Stephen, alter ego de Joyce, que não se curvou ao colonizador e manteve o frescor de sua linguagem e de sua obra. 

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima