Jovem morto no Largo da Ordem foi registrado no B.O. como autor de crime

Na versão contada pelos guardas, ele estaria envolvido em “injusta agressão” contra a Guarda Municipal

O relógio marcava 01:57 da madrugada de domingo (12) quando a 2ª Central de Flagrantes da Polícia Civil (PC) registrou o primeiro Boletim de Ocorrência do tiroteio ocorrido mais cedo no Largo da Ordem, em Curitiba. O documento foi lavrado a partir de depoimentos dos guardas municipais envolvidos no caso. 

Informações contidas nos autos:

Nome completo: Mateus Silva Noga

Situação do envolvido: autor

Cor da cútis: parda

Noticiado por: Estado do Paraná

O documento assinado pelo delegado Eduardo Kruger Costa contém o seguinte relato: “Compareceu nessa central de flagrantes a equipe da VTR 1.4 alegando que nesta data por volta das 22 horas e 45 minutos estava em deslocamento para efetuar saturação quando deparou-se com uma situação de confusão generalizada ocorrendo na frente da Igreja do Rosário.”

Os oficiais disseram que desembarcaram da viatura quando viram “várias” pessoas se agredindo. “Várias pessoas que estavam na multidão passaram a agredir a equipe arremessando diversas garrafas de vidro. Nesse momento o GM Toso entrou na viatura, fez o procedimento de troca de munição para menos letal, saiu da viatura e efetuou dois disparos com o intuito de repelir essa injusta agressão, a uma distância de cerca de 20 metros.”

Com os disparos, a “multidão” de cerca de “400 pessoas” acabou por se dispersar. Passados alguns minutos, os guardas foram abordados por uma senhora cuja filha estava ferida. “A equipe foi até o local onde se encontrava a jovem e efetuou os primeiros atendimentos sendo acionado o SIATE. Após cerca de dois minutos a equipe foi informada que havia outro cidadão ferido de nome Mateus Silva Noga, sendo que este era um dos envolvidos na agressão contra a equipe. Este recebeu atendimento médico pela equipe do SAMU.”

De acordo com a narrativa apresentada pelos GMs, passaram-se outros cinco minutos até aparecer a terceira vítima, que também foi atendida pelo Siate. Com todos os três encaminhados para o serviço médico, a equipe se dirigiu até a delegacia. O BO pontua que não foi possível colher as declarações das demais pessoas envolvidas na ocorrência porque estavam hospitalizadas, mas os guardas “confirmaram a versão do boletim de ocorrência”. 

Porém, as provas produzidas não estabeleciam a materialidade e autoria de uma eventual ação criminosa, motivo que levou à apreensão do armamento utilizado pela GM. O BO menciona apenas três disparos realizados por dois guardas distintos. Alessandro Neves Toso teria atirado duas vezes. Robson Guilherme Silveira de Souza, uma vez. Foi apreendida uma espingarda de uso permitido. Calibre: 012,00. Marca: CBC. Capacidade de tiros: 7.

Além do BO registrado pela PC, consta nos autos do inquérito policial a ocorrência atendida pela Polícia Militar (PM), às 00:06. A viatura foi acionada via COPOM para prestar atendimento numa chamada de “lesão corporal acionada por arma de fogo”. Quando os PMs chegaram, Mateus ainda estava aguardando atendimento médico junto de seu amigo, ouvido posteriormente pelo Plural. Naquele momento, os PMs documentaram que a testemunha não reunia condições de oferecer informações adicionais “devido ao nervosismo”. 

Estiveram no local o Comandante de Policiamento de Unidade (CPU) do 12º Batalhão, Tenente Gutierrez, além de viaturas da Rotam e da Rone. “Natureza constatada: apoio a outros órgãos; sem ilicitude; ocorrências não delituosas. Solicitante: anônimo.”

BO retificado

Dois dias depois, Laura Graziele Zanini emitiu um certificado retificando o primeiro BO da PC. “A fim de regularizar os pólos ativo e passivo do inquérito, uma vez que constava ‘MATEUS’ como autor dos fatos em que é vítima, e ‘O ESTADO’ como vítima dos fatos”, justificou a escrivã do 3.º Distrito Policial da Capital. A essa altura, o caso já tinha ido parar nas mãos da delegada Daniela Correa Antunes Andrade. 

No momento, há sete testemunhas registradas nos autos, além das três vítimas. Na terça (14), a delegada solicitou que sejam colhidos depoimentos, requereu os exames realizados pelo Instituto Médico Legal (IML) e pediu acesso às imagens das câmeras de segurança do local.

Nesta quinta (16), ela chamou uma coletiva de imprensa, onde informou que fez uma análise preliminar de imagens de uma câmera pública da região, que registraram a aglomeração “de cerca de 300 pessoas, não dá pra se precisar”. A câmera é rotativa (se move) e controlada pela própria GM, então só teria filmado alguns momentos da ação, como a chegada da viatura e o primeiro disparo. A delegada reiterou que ouviria as demais testemunhas antes de entrar em detalhes adicionais sobre as investigações.

A reportagem perguntou por que Mateus foi inicialmente identificado como autor e a resposta da PC foi que as informações contidas no primeiro boletim foram fornecidas pelos guardas ouvidos. “No primeiro momento, quando você procura a delegacia, tudo que você disser a gente vai registrar no BO. Não é uma apuração da Polícia Civil ainda”, esclareceu o órgão. A retificação foi realizada logo no início das investigações, mas a assessoria não entrou em detalhes sobre os motivos. Apenas assinalou que caso fique provado, no fim do inquérito, que os relatos são caluniosos, os GMs serão responsabilizados.

Sobre o/a autor/a

4 comentários em “Jovem morto no Largo da Ordem foi registrado no B.O. como autor de crime”

  1. A sociedade brasileira optou pela truculência, e sempre irá fazer essa opção. Não vai acontecer nada com esses guardinhas. A violência contra o trabalhador sempre será justificada. Esse país acabou.

  2. Todos os tiros da cintura pra cima. Mesmo que fosse munição não letal… será que eles aprendem a mirar no peito dos cidadãos pra controlar distúrbio? No caso do vereador Renato, correram pra divulgar imagens. Se tivesse essa grande confusão, agressão contra a GM, essas imagens já estariam circulando. E são esses os beneficiados no novo e ilegal programa do governo federal.

  3. Mery Hellen Manoel Gutierres de Lima

    Não posso nem explicar a dor que sinto em ver que tudo está sendo manipulado, meu primo não merece ter sua memória manchada! #justiçapelomateusnoga . Que o culpado pague pelo seu assassinato. Que a verdade apareça e que a Polícia Civil não proteja esse assassino.

  4. Sérgio Beno Malschitzky

    A Guarda Municipal não deveria em hipótese alguma usar arma letal, uma vez que os fatos provam o total despreparo técnico e psicológico para o uso desta.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima