Fraudes e osso em vez de carne: merenda terceirizada já foi investigada em pelo menos 14 estados

Governo estuda implantar o modelo nas escolas do Paraná

A terceirização da merenda escolar já foi alvo de investigações em pelo menos 14 estados brasileiros. Denúncias e auditorias indicam que a entrega da gestão da alimentação escolar a empresas do setor privado também vem sendo usada como pano de fundo para fraudes e desvios de verbas – o que já foi o caso de contratos com a prefeitura de Curitiba, à época da reeleição de Cassio Taniguchi, no início dos anos 2000. Não raras vezes, irregularidades impactaram na qualidade do serviço, e estudantes tiveram porções servidas em quantidade menor do que o estipulado. Também já foram constatadas manipulação e conservação dos alimentos fora dos padrões de higiene e, em casos mais extremos, a substituição de carne por ossos.

Registros revelam que a Justiça também já precisou intervir para garantir a aplicação correta das verbas do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Uma das premissas da política – fonte da manutenção das merendas em escolas públicas de todo o país – prevê que ao menos 30% dos recursos sejam usados para a compra direta de produtos de pequenos agricultores, o que nem sempre é levado à risca.

A problemática foi uma das levantadas em audiência pública realizada na manhã desta quinta-feira (25) na Assembleia Legislativa (Alep), na esteira do anúncio do governo Ratinho Jr. (PSD) de estudar a possibilidade de terceirizar a merenda da rede estadual.

Audiência Pública remota realizada na Alep sobre a terceirização da merenda. Foto: Thais Faccio/Alep

A discussão no Palácio 19 de Dezembro reuniu representantes de diferentes entidades sociais e levantou questionamentos baseados na importância da alimentação de qualidade para alunos, muitos dos quais são dependentes do valor nutricional das refeições feitas nas escolas, e do benefício mútuo que se obtém em aplicar parte dos recursos do PNAE na agricultura familiar. Hoje, de acordo com o próprio governo do Paraná, a medida beneficia cerca de 20 mil famílias.

A escassez de informações envolvendo o planejamento do Executivo de tirar a produção e distribuição das merendas do escopo do estado também foi atacado. Na quarta-feira passada (17), a Fundepar, fundação a quem compete a gestão de programas nas escolas da rede estadual, confirmou estar conduzindo um estudo para terceirizar o serviço, mas não deu mais detalhes. A Secretaria de Estado da Educação e do Esporte (Seed) também se mantém em silêncio. O estudo da autarquia teria sido determinação do secretário Renato Feder.   

“Como se faz um estudo de viabilização de terceirização sem envolver os principiais interessados, que é a participação social, que é o CAE [Conselho de Alimentação Escolar], o Consea [Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional]? Como se inicia um estudo desse sem trazer à tona a discussão para a sociedade civil?”, criticou Alessandro Wosniak, conselheiro do Conselho Federal de Nutricionistas. “Um segundo ponto que tem se colocar aí é o quão isso será prejudicial para as organizações da agricultura familiar que já contam com a participação [no sistema de merendas do Paraná]”.          

Parte da audiência desta quinta, o CAE também aguarda mais informações. A entidade disse ter encaminhado um pedido de esclarecimento ao governo sobre a proposta. O documento foi formulado durante reunião do órgão nesta quarta, em que ficou decidido que o conselho não apoiará o novo esquema.

Retomada

A discussão sobre terceirizar a merenda nas escolas do Paraná não é de agora. Um dos investigados pela operação Quadro Negro, que apurou desvios milionários de verbas destinadas a obras nas escolas do estado, chegou a mencionar em delação premiada que a gestão Beto Richa (PSDB) tinha intenção de usar a privatização da alimentação escolar para desviar dinheiro. A informação estruturou um dos depoimentos do ex-diretor de Engenharia, Projetos e Orçamentos da Seed à época, Maurício Fanini.

Contratos de serviço de alimentação para estudantes, aliás, têm sido alvo de auditorias, operações e inquéritos Brasil afora. Em levantamento extraoficial, a reportagem constatou casos em pelo menos 14 estados brasileiros na última década.

São Paulo protagonizou um dos mais emblemáticos. Em 2009, o Ministério Público estadual desarticulou um conluio entre empresas costurado para fraudar licitação da prefeitura de São Paulo e em outros municípios do interior paulista. As denúncias vieram acompanhadas de críticas à qualidade das refeições servidas aos estudantes.

Em 2018, uma das empresas envolvidas na trama paulista venceu certame da prefeitura de Salvador, na Bahia, para preparar e distribuir a merenda nas escolas da rede municipal. Inicialmente de R$ 25,3 milhões, o contrato foi renovado e o serviço segue até hoje.

Em junho deste ano, a Justiça Federal anunciou ter em investigação a contratação pela Secretaria de Educação do Acre de empresas para fornecimento de merenda escolar. O processo foi aberto após denúncias de fraude no certame e problemas como a não entrega dos produtos ou a entrega em qualidade e porção inferiores ao que havia sido adquirido pela pasta.

Um mês depois, em Rondônia, a Controladoria-Geral da União (CGU) e a Polícia Federal (PF) fizeram uma operação contra um esquema irregular também em contratos do estado. Além de falhas graves na licitação, como falta de pesquisas de preço, foi verificado que produtos entregues nem sempre eram os mesmos determinados e que muitos alimentos tinham os preços superfaturados. O feijão era comprado por um preço 99,74% acima do valor do custo de mercado, e o arroz, 55,49%  mais caro.

Na mesma região, Roraima também já havia sido investigada pela PF. Em 2018, um dos secretários adjuntos de estado, Shiská Palamitshchece Pereira, de Gabinete Institucional, chegou a ser preso por desvio de recursos dos contratos entre as terceirizadas e a Secretaria de Educação de 2016 a 2018. Nas investigações, foram encontrados alimentos vencidos e até ossos sendo servidos em vez de carne aos estudantes da rede pública. Sete anos antes, o Ministério Público já tinha instaurado ação civil pública originada a partir de produtos estragados e fora da validade usados para a merenda dos alunos.

Licitações fraudadas e desvios de recursos também foram alvos de investigação em municípios de Tocantins, Ceará e Sergipe. Em João Pessoa, na Paraíba, o processo de contratação de empresas de merenda foi suspenso por indícios de superfaturamento. Na cidade do Rio de Janeiro, em 2020, a Polícia Civil e o MP prenderam um empresário suspeito de fraudar a compra de merenda para as escolas da rede estadual. Diretores de escolas também foram ouvidos no âmbito do esquema que teria movimentado R$ 50 milhões em concorrências dissimuladas para aumentar os preços de contratos do estado. Na mesma época, a Secretaria de Educação do Distrito Federal cancelou a licitação para a contratação de produção e distribuição de merenda escolar após operação conduzida também pela Polícia e pelo MP, ancorada em denúncias fraude e direcionamento de edital.

No Espírito Santo, o governo, em 2017, foi comunicado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) de que uma auditoria do órgão se deparou com falta de higiene, má conservação das cozinhas e refeitórios e divergência na quantidade de refeições servidas – menores do que o lançado no sistema. Alimentos de baixa qualidade fornecidos pelas empresas contratadas também constaram no relatório, que exigiu do estado adequação à norma do PNAE de empregar pelo menos 30% dos recursos federais com produtos da agricultura familiar.

O Espírito Santo foi o primeiro a terceirizar a gestão da merenda na rede estadual. Em Curitiba, a merenda foi terceirizada em 1997, mas apenas para a rede municipal. Em 2001, na gestão de Cassio Taniguchi, a Risotolândia – que presta serviço até hoje – foi alvo de investigação do Tribunal de Contas da União por suposto superfaturamento. A empresa também já foi investigada pelo Ministério Público pela qualidade duvidosa de refeições servidas a detentos do sistema prisional do Paraná.

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