FAS triplica abordagens a crianças em situação de trabalho infantil em Curitiba

Servidores dizem que ações são "higienistas", pois não oferecem solução real para o problema

“Curitiba está cheia de crianças esmolando”, comenta Arnaldo*, que é servidor da Fundação de Ação Social (FAS). “As famílias levam crianças e adolescentes diariamente para vender bala e pedir dinheiro nas ruas da cidade. Tem alguns pontos críticos: rua Comendador Araújo, Palácio Avenida, Praça Osório, rua Padre Anchieta…”

Esta é a área de atenção do programa Anjos da Guarda, inaugurado pela FAS durante a pandemia, em setembro de 2020, com o objetivo de enfrentar a crescente violação de direitos de crianças e adolescentes em Curitiba. “Ano passado, houve um aumento expressivo desse público no anel central, identificado por duas equipes do CREAS Matriz”, explica a diretora de Proteção Social Especial da FAS, Tatiana Possa Schafachek. Após também crescer o número de ligações relacionadas ao tema para o 156, a gestão resolveu implantar o serviço de urgência.

De acordo com a gestora, a equipe foi capacitada para fazer atendimentos especializados. “Como se trata de um serviço exclusivo para crianças e adolescentes, a forma de abordagem muda, porque se o adulto está em situação de rua e não quer sair dali, ele tem o direito de permanecer, mas a criança e o adolescente não têm”, pontua. 

Hoje, a FAS não tem nenhum levantamento que estime o público-alvo das ações. O que se sabe é que em 2020 foram realizadas 1.168 abordagens, número que praticamente triplicou em 2021: foram 4.419 abordagens até outubro. Porém, o dado não fornece um indicativo real de quantas são as crianças e os adolescentes vulneráveis que trabalham na cidade porque muitas vezes a mesma pessoa é abordada em pontos diferentes ou não se identifica.

O Plural ouviu dois educadores e ambos disseram que o problema é que o programa é pouco efetivo. “Nosso trabalho é descobrir quem são as crianças e as famílias, porém, nunca chegamos a um caso de sucesso. Apenas afastamos as crianças do local, algumas vezes com risco de serem atingidas por um carro”, descreve Arnaldo. “Elas veem o jaleco azul e saem correndo. E essa é a ideia principal, passada indiretamente pela gestão, pois não temos absolutamente nada a oferecer.”

Plano de ação

Na prática, são duas equipes de manhã, uma no almoço e duas à noite. Elas circulam com as kombis da FAS. “A gente conseguiu mapear grande parte das crianças e percebeu que se tratava de famílias da região metropolitana que durante a pandemia vieram para cá para pedir no sinaleiro”, ressalta Tatiana. “Mas também identificamos adultos que exploram crianças diferentes ou que usam essas crianças para o tráfico.”

Foto: Fundação de Ação Social de Curitiba (FAS)

No dia a dia, a equipe precisa se aproximar a fim de “sensibilizar” essas pessoas. Depois, verifica se os abordados têm Cadastro Único e se precisam de trabalho ou subsídio alimentar. “Se necessário, a família deverá procurar um CREAS ou um CRAS para ter acesso aos serviços de proteção básica e especial. Quando a pessoa é da região metropolitana, a gente comunica o Conselho Tutelar da região.”

Caso seja identificada uma violação de direitos, a FAS também aciona o Conselho Tutelar e/ou a Delegacia da Criança e do Adolescente.

“Ano passado eu estive numa abordagem na região central e a pessoa nos disse que não tinha trabalho e as crianças estavam fora do CMEI por conta da pandemia. Ela tinha experiência como caixa de mercado. Na mesma hora a gente se articulou com o Condor, que é nosso parceiro”, relembra Tatiana. “Essa articulação intersetorial e essa abordagem mostrando os serviços da prefeitura são os principais focos.”

“Política higienista”

“Cada segmento da sociedade vê a situação de uma forma. Tem comerciante que não gosta de ver gente esmolando na frente do comércio dele e liga para a prefeitura. Tem comerciante que tenta dar trabalho ao menino, porque trabalhar é melhor do que pedir na rua”, exemplifica Arlete*, que também é servidora da FAS. “A gente também encontra crianças bem cuidadas catando latinha, acompanhadas por mães que trabalham como carrinheiras e não têm onde deixar os filhos.”

Os casos são distintos, mas na maioria das vezes a educadora se vê sem ferramenta. Além de ter o desafio de desconstruir crenças bem consolidadas, ela tem medo do que o próprio sistema pode fazer com essas pessoas. “A gente tem receio de passar os casos para o Conselho Tutelar, porque essa coisa de tirar a criança da família é complicada. Quando o caso é de envolvimento com tráfico é uma coisa, mas se a questão da família é a pobreza, a gente precisa suprir essa família.”

Para ela, o trabalho infantil é um sintoma da desigualdade social e precisa ser trabalhado de maneira estrutural. “A gente até fala de programas como o Adolescente Aprendiz nas abordagens, mas a grande maioria dos meninos é da região metropolitana ou de bairros como Osternack e Sítio Cercado, que têm bolsões de pobreza”, relata. “Perto do Pátio Batel, eles ganham gorjetas muito grandes. Em outros pontos, são aliciados pelo tráfico. E nós oferecemos o quê?”

O Plural perguntou à FAS de que forma é mensurada a efetividade do Anjos da Guarda. De antemão, Tatiana sinalizou que o crescimento do número de abordagens não é o melhor indicador, já que o dado também reflete o esforço de divulgação dos canais da prefeitura. Com a implantação do Anjos da Guarda, foi incluído um ícone para denúncias na tela inicial do aplicativo Curitiba 156.

“Eu acho que a efetividade do programa se deu logo depois da implantação. Hoje nós temos várias kombis circulando no Centro, com várias equipes de abordagem. Eles [os usuários do serviço] reconhecem a equipe e se aproximam”, afirma a diretora, na contramão do que disseram os servidores entrevistados pela reportagem. 

“Até então, as pessoas passavam pelo Centro e achavam que todo aquele público residia em Curitiba. Com as abordagens nós vimos que entre 70% e 80% dessas pessoas eram da região metropolitana”, reforça a gestora. “É isso que se tornou efetivo. O problema deixou de ser, digamos, nulo aos olhos da população.”

Os servidores pintam um retrato menos romântico do serviço. Para eles, trata-se de mais uma política higienista da prefeitura. “A gestão quer limpar a rua para alimentar essa imagem fantasiosa da Curitiba modelo”, fala Arlete. “É um trabalho constante, repetitivo e nada é feito especificamente com as famílias identificadas, exceto advertência, em raros casos, do Conselho Tutelar”, diz Arnaldo. 

“As famílias, em sua maioria, já são atendidas pelos CRAS e recebem o Bolsa Família. Se essa população já é atendida pela FAS e permanece nas ruas esmolando, onde está a falha?”, questiona o servidor.

*Nomes fictícios usados para preservar a identidade dos funcionários.

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1 comentário em “FAS triplica abordagens a crianças em situação de trabalho infantil em Curitiba”

  1. Que decadência! Que falta de gestão do atual alcaide. Enquanto isto altas verbas estão destinadas para purpurizar Curitiba e engordar os empresários do transporte público., enquanto seus cidadãos estão cada vez mais miseráveis e com inadequada assistência social. Os funcionários públicos que servem a cidade estão cada dia mais desvalorizados e desmotivados, inclusive com seus fundos de previdência usurpados, pelo prefeito e vereadores que retiraram 700 milhões contra a vontade deles. Triste Curitiba, nas mãos de um fanfarrão.

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