Espaços públicos em Curitiba têm nomes que vão de ditador a líder comunista

Câmara negou homenagem a Marielle Franco em CMEI, mas creches levam nomes "sem relação" com Curitiba

A rejeição da Câmara Municipal de Curitiba de conceder homenagem à vereadora carioca Marielle Franco, morta a tiros em 2018 ao lado de seu motorista em um crime ainda não elucidado, escorou-se em argumentos, na prática, improcedentes. Incomodou a figura progressista da vítima em um plenário conservador – houve quem comparasse a falta de respostas ao assassinato à teoria da conspiração que paira sobre a figura de Adélio Bispo. Mas foi a própria tentativa de sustentação legal que derrapou.

“A indicada Marielle Franco não tem no seu currículo qualquer relacionamento com a nossa cidade. A Lei Orgânica do município faz exigência, no seu artigo 20, inciso 11, que tem que conceder honraria a pessoas que conhecidamente tenham prestando serviço relevante à nossa cidade. Marielle Franco, não. Morou no Rio de Janeiro, não fez nada por Curitiba”, fez ecoar em plenário a vereadora Sargento Tânia Guerreiro (Aliança Brasil).

O posicionamento de Guerreiro foi uma espécie de prancha à deriva a qual vários de seus colegas se agarraram para mascarar um aceno ideológico e dar garantias legais à rejeição.

“Qual foi a contribuição que essa senhora deu a nossa cidade para nomear um bem público, como um CMEI [Centro Municipal de Educação Infantil]? A importância de um CMEI, que é onde começam as nossas crianças, ainda de tenra idade. Uma pessoa que defendia o abordo tendo seu nome num CMEI, a meu ver parece, no mínimo, incoerente”, questionou logo depois Ezequias Barros (PMB).

A exigência citada pela parlamentar entrou no texto da LOM em alterações referendadas em 2011. De fato, pressupõe que indicações de homenagem sejam apreciadas pelo Legislativo e tenham justificativas coesas. Mas, no dia a dia, não é seguido ao pé da letra.

A reportagem analisou o nome de todos os CMEIs e escolas da rede municipal de Curitiba. E encontrou brechas.

Apesar de o artigo que restringe homenagens a personagens influentes na capital ter sido emendado à LOM apenas em 2011, um ano depois dois CMEIS da cidade foram nomeados, respectivamente, de Mário Covas – ex-governador de São Paulo – e Ruth Cardoso – antropóloga e esposa falecida do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. A inauguração ocorreu sob o governo de Luciano Ducci.

Embora notadamente relevantes em seus respectivos nichos, não há qualquer menção biográfica que relacione os dois personagens intrinsecamente a serviços prestados em Curitiba. Nenhum deles nunca morou ou trabalhou na cidade. Covas, um dos fundadores do MDB, partido de oposição à ditadura militar, governou São Paulo por dois mandatos consecutivos, entre 1995 e 2011. Na área de Educação, aboliu a repetência de alunos e fechou centenas de escolas da rede estadual paulista.

Pelo menos outros 12 dos 230 Centros de Educação Infantil curitibanos carregam nomes não vinculados à cidade, mas cujos legados são imprescindíveis para a história brasileira. É o caso de Erico Verissimo, por exemplo, um dos mais importantes escritores do país. E de Dorothy Stang, estadunidense naturalizada brasileira apontada como dos mais pesados nomes do ativismo contra a destruição da região amazônica. Em 2005, ela foi brutalmente assassinada por fazendeiros. Miguel Arraes, três vezes governador de Pernambuco, e Olga Benário, comunista alemã que se casou com Luís Carlos Preste, também entram na lista.

Outros nomes de não curitibanos atribuídos a CMEIs da cidade, mas nem por isso menos importantes para o resgate político-cultural do país, são Bezerra de Menezes (cearense, nome da doutrina Espírita); escritor Elias José; Fúlvia Rosemberg (pedagoga); Irmã Dulce; Monteiro Lobato; Oswaldo Cruz; e Sílvia Orthof, escritora em destaque na literatura infanto-juvenil.

Entre a escolas, 22 das 185 da rede foram batizadas em homenagem a nomes “externos”, mas praticamente todo o conjunto é anterior à alteração de 2011 na Lei Orgânica.

E se na prática a imposição da matéria legal não procede, simbolicamente também é vazia, analisa Joseli Mendonça, professora do departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do projeto de extensão AfroCuritiba. Para a docente, não há como definir o tipo de relação necessária para determinar a existência ou não algum significado para a cidade e, principalmente, para a população daquela cidade.

“Se há pessoas na cidade que se reconhecem na luta de Marielle Franco, que se inspiram na vida dela, como é o caso das mulheres, das mulheres negras, então essa pessoa tem importância também para a cidade. Quem, afinal, define o que é importante e qual é essa relação necessária? Mesmo que há esse preceito legal, ele é muito questionável.”

Joseli Mendonça, professora do departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do projeto de extensão AfroCuritiba.

Mendonça, que é especialista em História Pública, observa a cidade como um espaço de inscrição da memória em suas diferentes manifestações – sejam pessoais, sejam referentes a grupos maiores e aspectos de identidade, por exemplo. E, por isso, ressalta, há um desencadear contínuo de buscas por registros, ainda que seja comum a preservação de espaços de algumas memórias em detrimento de outras.

A professora interpreta essa disparidade como uma disputa que, muitas vezes, orienta-se por projetos políticos, como é o caso da rejeição à homenagem proposta a Marielle Franco.

“Todas as disputas de narrativa de passado são uma disputa política. Ela implica na construção de identidade de de grupos sociais, sejam eles grupos raciais, étnicos, de mulheres, de pessoas com orientações sexuais que não são as preconizadas como normais pelas tendências à normalização. Digo política no sentido amplo, não só partidário, mas de envolver um projeto de sociedade, de futuro. Com o caso da Marielle isso ficou evidente. Representa uma maneira das pessoas de se posicionarem no presente e de projetarem um futuro”, analisa.

Choque

Disputa essa que entrou em choque. Há alguns anos, inúmeros movimentos eclodiram nas ruas ao redor do mundo em protesto à violência presente e ao próprio sentido dado à história. No centro do debate, criou-se a polêmica sobre a representatividade de monumentos em posição de destaque garantida pelo próprio Estado, uma espécie de processo revisionista que criou mais uma frente de reflexão e dividiu opiniões.

Em junho de 2020, na cidade de Bristol, na Inglaterra, manifestantes arrancaram a estátua de Edward Colston, um traficante de escravos do século XVII, e a lançaram no rio. O ato ocorreu em meio a acalorados debates e manifestações pela morte de George Floyd, um homem negro, morto asfixiado covardemente por um policial branco. A estátua foi resgatada e encaminhada a um museu, sob justificativa do primeiro-ministro Boris Johnson de que não se pode editar ou censurar o passado – tese defendida por muitos especialistas.

Na mesma época, a Universidade de Liverpool renomeou o prédio que antes levava o nome do ex- primeiro-ministro Willian Gladstone, devido a vínculos com o tráfico de escravos. No Canadá, manifestantes derrubaram estátuas das rainhas Vitória e Elizabeth II em protestos provocados pela descoberta de restos mortais de centenas de crianças indígenas em terrenos onde funcionavam antigos internatos.

Na América Latina, o alvo em comum foram estátuas de Cristóvão Colombo, generais e traficantes de escravos. Em São Paulo, em julho de 2021, a estátua de 13 metros de Manuel de Borba Gato, um bandeirante paulista, foi incendiada por manifestantes.

Borba Gato é nome de rua em Curitiba. Fica no Barreirinha. O município tem outras ruas nomeadas em homenagem a bandeirantes, ligados a dizimação em massa indígenas e escravização de negros. Raposo Tavares, Fernão Dias e Domingos Jorge Velho estão no catálogo de endereços curitibanos.

Os bairros Cristo Rei e Tarumã são cortados pela avenida Marechal Humberto de Alencar de Castelo Branco, militar alçado ao poder após o golpe cívico-militar de 1964. O ditador também é homenageado por um busto na Praça Nossa Senhora da Salete, espaço onde se concentram os poderes Executivos do Paraná e de Curitiba, a Assembleia Legislativa, o Tribunal de Justiça do estado e o Ministério Público.

O conjunto de bustos, hermas e estátuas que formam o mapa do patrimônio cultural de Curitiba é extenso. Entre os mais conhecidos, na região central, estão a de personagens da elite sócio-política e cultural da cidade, como Carlos Gomes (compositor); Teixeira Soares (engenheiro da estrada de ferro entre Curitiba Paranaguá) na Praça Eufrásio Correia; Leôncio Corrêa (empresário ervateiro), na Boca Maldita; e Plínio Alves Monteiro Tourinho (oficial do Exército e professor da Escola de Engenharia da então Universidade do Paraná), na Praça Santos Andrade, em frente ao prédio histórico da UFPR.

Em outro endereço da universidade, no prédio da reitoria, também na região central, encontra-se escultura dedicada a Flávio Suplicy de Lacerda, derrubada pela primeira vez em maio de 1968 e que voltou a cair em abril de 2014, quando o golpe militar completou 50 anos. A segunda retirada estabeleceu um impasse a ser resolvido diante da homenagem concedida ao engenheiro, professor e político que foi reitor da UFPR por 19 anos e ministro da Educação do governo militar do general Castelo Branco, entre abril de 1964 e janeiro de 1966. Lacerda foi um ícone paranaense de apoio à ditadura e protagonista do acordo MEC-Usaid, que queria instalar o ensino pago no país, e ainda deu nome à lei que sufocou as entidades estudantis no Brasil.

Busto de Suplicy de Lacerda, no prédio da reitoria da UFPR, teve significado recontextualizado na busca por solução de um impasse. Foto: Tami Taketani/ Plural

Em 2017 o Conselho Universitário da UFPR aprovou um parecer elaborado pela professora Vera Karam de Chueiri, do Direito, que propunha a criação do Museu do Percurso como forma de solucionar o imbróglio. Problematizada e contextualizada, a homenagem a Suplicy de Lacerda voltou a seu lugar para confrontar a história “sem ocultar, fraturar ou dissimular os fatos, mas contextualizar e elucidar o passado, os atores e o patrimônio histórico e artístico tombado” da universidade.

No ano passado, outro patrimônio de Curitiba foi submetido a uma tentativa de contextualização. Mas a sugestão não seguiu adiante na Câmara.

Era também um projeto da vereadora Carol Dartora para dar à escultura popularmente como “Maria Lata D’Água” sua denominação correta, o de Emerenciana Cardoso Neves, nome da mulher representada pelo monumento de Erbo Stenzel, inaugurado em 1996. Conhecida pelo nome artístico Anita Cardoso Neves, foi uma artista negra invisibilizada na cidade e cuja história vem sendo resgatada pela pesquisadora Eliana Brasil. O monumento de Emerenciana Cardoso das Neves é um dos poucos de figuras femininas espalhados por Curitiba. Junta-se ao de Lala Schneider (atriz e um dos nomes mais importantes da cultura curitibana) na praça Santos Andrade, em frente ao Teatro Guaíra, onde também está a homenagem à primeira professora a aceitar alunos negros em sala de aula, Julia Wanderley; e aos bustos da benzedeira e “curadora de ossos” Maria Polenta, no Jardinete Maria Polenta, no Água Verde, e de Madre Maria dos Anjos, na Praça Rui Barbosa.

Monumento conhecido como “Maria Lata D’Água” é um dos poucos femininos e teve mudança de nome barrada pela Câmara. Foto: Tami Taketani/ Plural

Mas a renomeação da fonte onde está a obra de Emerenciana não passou sequer da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Relator, o vereador Marcelo Fachinello (PSC) negou continuidade ao trâmite sob justificativa de que bem público não pode ter duas denominações. O projeto foi arquivado e, logo depois, o parlamentar elaborou proposta para proteger monumentos históricos contra “ações violentas de grupos políticos organizados”. O documento foi juntado a discussão semelhante já em trâmite, e aguarda parecer do Executivo para seguir à plenário.  

“Acreditamos que nossa sociedade é madura o suficiente para discutir todas essas questões, por mais complexas que sejam, de maneira civilizada e pacífica”, disse Fachinello, que sugere ainda a instalação de placas junto às obras para contextualizar a representação. “Entendemos que essas placas explicativas são importantes para fomentar a conscientização das pessoas sobre direitos fundamentais, liberdades, dignidade da pessoa humana, democracia e pluralismo político”.

Pelo projeto, ainda que representem “valores sociais e morais obsoletos”, os patrimônios históricos culturais devem ser protegidos por representar a memória, identidade ou ação de grupos formadores da sociedade.

Mas a disputa por memória e identidade não tem sido relativamente simples em Curitiba. Recentemente, um protesto antirracista na Igreja do Rosário, uma das mais antigas da cidade, erguida por negros ainda no século 18, virou caso de polícia. Representantes da igreja afirmaram que o protesto atrapalhou uma missa e não gostaram do fato de os manifestantes terem entrado no local depois do fim do culto. Os manifestantes, liderados pelo vereador do PT Renato Freitas, ressaltaram a escolha do local justamente pelo simbolismo identitário, uma vez que o ato foi organizado contra as mortes de negros no país.

A professora do departamento de História da UFPR relembra que, na disputa pelo espaço, quem sai ganhando pela lógica da manutenção dos valores sociais são quase sempre os grupos que historicamente tiveram mais direitos garantidos que outros. E analisa, diante da dinâmica urbana em constante questionamento, que o processo pela reconfiguração dos espaços encontra na busca por significado a sua legitimidade.

“Grupos menos privilegiados na cidade fazem o movimento de redefinir esses locais quando há o contraste entre homenagem e tragicidade”, diz. “Se pessoas negras querem retirar da cidade a memória de uma pessoa ligada ao tráfico de pessoas escravizadas, eu reconheço a legitimidade dessa ação. As pessoas têm esse direito de rever sua história. Do ponto de vista como historiadora, olho de uma forma parecida. A minha interpretação é que são pessoas entrando na disputa por essa narrativa e buscando um lugar de sujeito na produção dessa narrativa.”  

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