Descompasso de dados deixa no limbo 2,3 mil doses de vacina em Curitiba

Número é resultado da divergência entre o que diz o Ministério da Saúde e a Prefeitura

O vácuo de informações detalhadas sobre a campanha de vacinação contra a Covid-19 em Curitiba deixa no escuro o paradeiro de milhares de doses do imunizante. No descompasso entre o que o Ministério da Saúde informa ter enviado e o que a Prefeitura diz ter recebido, faltam 2.396 para fechar a conta. A ausência do Município na lista de capitais com um “vacinômetro” detalhado – mecanismo que também não foi posto em prática pelo governo do Paraná – reforça as incógnitas ao redor do paradeiro.

Segundo o Localiza SUS, base do Ministério da Saúde que concentra dados referentes à pandemia do coronavírus, foram enviadas a Curitiba até agora 90.806 doses. Por outro lado, a administração municipal comunica ter recebido 65.250. Parte da discrepância ocorre porque, embora já tenha em estoque, Curitiba ainda não somou ao cálculo publicado 23.160 doses destinadas às aplicações de reforço, que começam na próxima segunda (15).

Mesmo assim, ainda não há explicação sobre as cerca de 2,4 mil frações que faltam para equiparar os dados apresentados pelo Governo Federal e pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS).

O montante com destino ignorado seria suficiente para vacinar quase na totalidade, em primeira dose, grupos prioritários – como os trabalhadores de Saúde dos laboratórios de análises clínicas ou os trabalhadores de serviços ambulatoriais e hospitalares, públicos e privados, que se encontram afastados ou em teletrabalho por fatores de risco à Covid-19.

Tanto o Ministério da Saúde quanto a Prefeitura foram procurados para confirmar os números divulgados. A pasta federal respondeu, após o conteúdo ter sido publicado, que o quantitativo apontado na plataforma se refere às doses já encaminhadas aos estados e que o processo de repasse das vacinas aos municípios cabe aos gestores estaduais, de acordo com as demandas prioritárias de cada local. A SMS não respondeu até a publicação desta reportagem.*

Na plataforma, o quantitativo enviado ao Paraná como um todo converge com o que vem sendo divulgado pelo Estado: 538.900.

Este não é o primeiro desacordo de informações que ronda dados sobre o coronavírus em Curitiba. Em dezembro, o Plural mostrou que 51,4 mil casos e 186 mortes ocorridas desde o início da pandemia na Capital não constavam no balanço estadual, apesar de terem sido registrados pela Prefeitura. O caso foi parar no Ministério Público do Paraná (MPPR).

Total de doses enviadas a Curitiba segundo o Localiza SUS

Dados limitados

Exatamente três semanas depois de iniciar sua campanha de vacinação, Curitiba ainda não tem uma base de dados que detalhe o andamento do esquema. De acordo com levantamento feito pelo Plural, o Município integra uma lista de nove capitais sem um sistema de acesso e pesquisa de dados específico sobre a execução do processo.

Para a seleção, a reportagem considerou como “vacinômetro” não apenas a publicação diária do total de imunizados, mas páginas ou plataformas com dados complementares que auxiliam o acompanhamento da campanha por parte de qualquer cidadão. Foram encontradas, por exemplo, divulgações de listas nominais de vacinados; percentual e abrangência de cobertura; valores das remessas; imunização por categorias de profissionais da Saúde; sexo, gênero e faixa etária; e doses recebidas, aplicadas e em estoque, abastecidas pelos próprios Municípios ou de maneira integrada com o governo Estadual.

Curitiba, Rio Branco (AC), Boa Vista (RR), Palmas (TO) Fortaleza (CE), Maceió (AL), Cuiabá (MT), Goiânia (GO) e Brasília (DF) são as capitais que ainda não compartilham um conjunto de dados mais robustos sobre suas respectivas campanhas. Na Capital paranaense, como na maioria das demais desta lista, o modelo adotado tem sido a divulgação de boletins diários, sem mecanismos aglutinadores e detalhes de doses e aplicação. Por ora, a gestão de Rafael Greca (DEM) não divulga mais do que o total de vacinados; o conjunto de vacinados por grupo prioritário; e o total de doses recebidas (em quantidade por laboratório responsável).

Também não há detalhes da aplicação no Localiza SUS, o que praticamente isola o Município em termos de publicação de dados sobre a execução do Plano Municipal de Vacinação. Isso porque as demais capitais citadas, conforme comparou a reportagem, repassam informações à rede do Ministério da Saúde, que afirmou depender dos dados enviados por Estados e Municípios para atualizar a plataforma.

“O sistema é atualizado diariamente, sendo que os dados disponibilizados dependem dos Estados e Municípios repassarem as informações”, explicou, em nota, o Ministério da Saúde. “Dessa forma, a pasta depende do envio desses dados para completar a divulgação nacional, conforme orienta a Portaria GM/MS Nº69, de 14 de janeiro de 2021.”

No sistema do SUS, as informações referentes ao Paraná se encontram atualizadas, apesar de o Estado também não ter um canal próprio de detalhes da campanha.

Até a tarde desta quinta-feira, quando foi procurada pela reportagem para explicar o limite de transparência de dados, ainda era possível acompanhar no vacinômetro da Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) a relação de doses aplicadas por grupo prioritário em recortes de Regionais ou Municípios.

Mas o arquivo – que não concentrava informações básicas, como, por exemplo, a distribuição de doses por Município e o status da vacinação por Cidade ou Região, como fazem outros Estados – não está mais do ar. Desde então, o que se tem é a mensagem “os municípios são os responsáveis pela aplicação das doses na população de acordo com o plano de imunização estadual. Cabe a eles também enviar essas informações para a Secretaria de Estado da Saúde”.

Mais publicidade, menos questionamentos

Em tempos de vacina escassa, a lacuna de dados públicos não apenas limita análises mais criteriosas do cenário da vacinação, mas também abre espaço para questionamentos. Na avaliação de Rodrigo Botelho-Francisco, professor do departamento de Ciência e Gestão da Informação da UFPR, represamentos e discrepâncias tendem a enfraquecer a consistência da execução da campanha.

“De forma direta, o detalhamento e a integridade dos dados poderiam implicar em maior transparência, em maior confiabilidade nos dados e na consistência do próprio Plano de Vacinação pelos governos federal, estaduais e municipais, de forma conjunta. Mas, para isso, haveria que assumir uma política de gestão de dados interoperável. Ou seja, os sistemas precisam conversar entre si. Do contrário, é como se não falassem a mesma língua”, analisa o especialista.

Conforme o professor, para quem o aperfeiçoamento das práticas de transparência tem relação direta com a democracia, o processo de vacinação, de modo geral, tem evidenciado despreparo e ao mesmo tempo a falta de políticas públicas consistentes e integradoras que permitam uma gestão cuidadosa de dados sensíveis.

No caso de Curitiba, ele não avalia de forma positiva o modelo de divulgação adotado até agora, mas ressalta que não se trata de uma característica peculiar do Município.

“[O que Curitiba tem publicado] não é suficiente. E não é suficiente porque Curitiba está fazendo um trabalho ruim, mas porque não há uma coordenação nacional coerente e um plano consistente para estruturação destes dados, algo que oriente e obrigue Curitiba e outras Cidades a adotar um mesmo padrão para a disponibilidade dos dados”, pondera. “Infelizmente não temos sinalização de que o Governo Federal está preocupado com isso. Ao contrário, recentemente a própria LAI (Lei de Acesso à Informação) sofreu um ataque, quando Bolsonaro tentou flexibilizar a Lei, que é uma conquista no sentido de construir um cenário de dados governamentais abertos e uma democracia participativa”.

Manter transparência na execução do Plano de Vacinação foi, inclusive, um dos pedidos listados na recomendação conjunta emitida às secretarias municipal e Estadual de Saúde no fim de janeiro.

Trecho do documento – assinado pelos Ministérios Públicos do Paraná, do Trabalho do Paraná (MPTPR) e Federal (MPF), e pelas Defensoria Pública do Estado (DFPR) e da União (DFU) –  fala em “assegurar a publicidade e transparência a todas as etapas do processo de vacinação contra a Covid-19, valendo-se principalmente de seus canais oficiais para informar, educar, orientar, mobilizar, prevenir e/ou alertar as pessoas (…)”.

No âmbito da discussão, o esquema de imunização da Capital paranaense já sofreu seu primeiro revés, com a suspensão da distribuição generalizada de doses aos profissionais da Saúde autônomos do Município, na última sexta-feira (5). A pausa ordenada pela Prefeitura veio logo depois de o MPPR questionar a falta de filtros de seleção mais criteriosos para definir quais destes trabalhadores realmente exercem atividades na área da Saúde – e, portanto, estão mais expostos ao vírus.

A exigência de registro ativo em conselho de classe como imposição única levou a uma enxurrada de acusações de pessoas com ocupação paralela, sem atuar na área da Saúde, mas que receberam a dose. Em Curitiba, o número total de denúncias de desvio da ordem da fila da vacina já chega a 43, de acordo com dados do portal ‘Paraná sem fura-fila’, lançado nesta quarta-feira (10) pela Controladoria-Geral do Estado (CGE) para compilar os casos que precisam ser investigados.  

Transparência e controle

Na relação entre transparência e controle, o professor de Imunologia do curso de Farmácia da PUCPR, Sergio Siqueira, defende que, quanto maior o acesso dos cidadãos ao passo a passo adotado pelos gestores, mais segura a população se sente em relação à campanha.

“Qualquer informação pública, como o nome diz, deve ser pública. Em especial no caso da vacina e da pandemia, é de fundamental importância a divulgação de mais informações, até para que a pessoas possam ter uma ideia de quando é que elas vão ser vacinadas”, avalia o especialista, que também é membro do Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). “A vacina sempre foi um bem público, mas hoje, talvez, seja um dos bens públicos mais valiosos e necessários. Se tem muito dado que não está sendo compartilhado, faz sentido pensar que há erros”, afirma.

No entendimento de Botelho-Francisco, a disponibilidade dos dados, por si só, não é um fator de impedimento de desvios que abrem vez aos fura-filas. No entanto, o compartilhamento de dados abertos pode ser usado como um mecanismo eficaz para rastrear práticas equivocadas. “Não tenho a ilusão que a disponibilidade dos dados, por si só, impeça a corrupção. Porque o fura-fila é exemplo de situações corrompidas que acontecem todo dia, em vários setores. Mas os dados abertos, de certa forma, permitem encontrar os rastros daquilo que foi feito de forma equivocada.”

Por isso, diz ele, “além da transparência, é preciso que a imprensa, ONGs e os outros órgãos públicos de controle estejam preparados tecnicamente para localizar, ler, interpretar os dados e dar visibilidade para situações como esta que estamos vendo, sobre gente que não é prioridade ocupando lugar de profissionais da Saúde e idosos, de quem precisa mais neste momento”.

A Prefeitura também não deu retorno aos questionamentos do Plural sobre outros pontos citados nesta reportagem, como a razão de não abastecer os dados do Localiza SUS e se considera suficiente o que publica hoje em relação à campanha.

A Sesa também não se manifestou a respeito e não respondeu se pensa em ampliar a divulgação de sua base de dados sobre a campanha da vacinação contra a Covid-19 no Paraná.

*No dia 15 de janeiro, três dias após a publicação do texto, a prefeitura se manifestou, após nova cobrança da reportagem. O Plural entendeu que, diante da distribuição limitada de doses, a explicação do paradeiro das frações seria imprescindível. Segundo a SMS, o município recebeu, até o momento 88.410, sendo 23.160 destinadas à segunda aplicação. “Além disso, outras 2.380 doses, lançadas para Curitiba, são doses da vacina que a Secretaria de Saúde do Estado do Paraná utilizou para aplicação nos trabalhadores do hospitais da administração estadual sediados na capital, Hospital do Trabalhados, Hospital Oswaldo Cruz e Hospital de Reabilitação. Tendo sido o montante lançado na cota do município, porém utilizada pela Sesa”, diz texto enviado. Mesmo assim, ainda sobram na conta 16 doses, que não tiveram o paradeiro informado.

Sobre a garantia de transparência nos dados, a pasta não respondeu se considera suficiente o que vem publicando. Em nota, colocou que está em fase de finalização a ferramente que vai permitir a migração direta dos dados para o Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunização, por meio da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS). “Além disso, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) envia diariamente um relatório para Secretaria de Saúde do Estado do Paraná (Sesa) para alimentação dos dados abertos do Estado. Os dados diários da vacinação são comunicados amplamente para a população e para a imprensa, por meio de balanço e por vacinômetro. São informados ainda, números de vacinados por grupos prioritários, total de primeiras e segundas doses. O balanço traz ainda as quantidades de doses recebidas e os públicos que estão sendo vacinados no momento, não havendo, portanto, falta de transparência para com a sociedade”, disse a pasta, que também não se pronunciou sobre o porquê de outros detalhes não serem divulgados. Quanto ao Localiza SUS, a prefeitura afirmou que a plataforma não é de preenchimento obrigatório, sendo “um instrumento para apoiar a divulgação de estados e municípios que não possuam sistemas informatizados próprios”.

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