Derrubada de 204 mil árvores no PR pode ser suspensa

Ministério Público diz que projeto foi manipulado para obter licenças ambientais, que preveem o corte de 14 mil araucárias

O Ministério Público do Paraná (MPPR) e o Ministério Público Federal (MPF) pediram liminarmente à Justiça a suspensão completa das polêmicas obras do complexo de transmissão de energia que vêm sendo executadas pela francesa Engie em um trecho de mil quilômetros no Paraná. Na ação, os órgãos alegam que a empresa manipulou o projeto para conseguir as licenças ambientais necessárias, que envolvem a derrubada de 204 mil árvores nativas, entre elas, 14 mil araucárias. O Instituto Água e Terra (IAT) nega.

Por essa lógica, os impactos na fauna e na flora da região podem ser ainda maiores dos que os já apontados nos estudos de viabilidade apresentados pela companhia que – assim como o IAT e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) – foi requerida a pagar R$ 2,017 bilhões em multas pelas supostas ilegalidades.

Parte de um plano de potencialização da infraestrutura energética do país formalizado em leilão pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) em 2017, as obras no Paraná preveem a distribuição de duas mil torres de transmissão de energia por um trecho entre Campo Largo, na Região Metropolitana de Curitiba (RMC), e Ivaiporã, no Noroeste do Estado. A licença de instalação das torres em dois trechos já foi suspensa pela Justiça Federal do Paraná (JFPR).

No total, o sistema terá dez subestações – das quais cinco serão erguidas do zero – interligadas por 15 trechos de linhas de transmissão, a um investimento final de R$ 2 bilhões. Em troca, a Engie poderá explorar a operação do conjunto e receber receita anual até 2048 – mas não sem antes protagonizar uma devastação ímpar no Estado.

Iniciadas no ano passado, as obras não só cruzam a Área de Proteção Ambiental (APA) da Escarpa Devoniana, uma das formações geológicas mais importantes do país, como investem contra uma área total de 218 hectares, equivalente a mais de 312 campos de futebol. A partir dos inventários florestais apresentados pela própria concessionária e autorizações já emitidas pelo IAT, procuradores e promotores estimam a derrubada de 204 mil árvores nativas, incluindo 14 mil araucárias e outras 23,3 mil árvores ameaçadas de extinção.

Quadro de devastações organizado pelo MPF e MPPR, com base em levantamentos da Engie e documentos de autorização do IAT

O tamanho do impacto do projeto – paradoxalmente batizado de Gralha Azul, em alusão à ave disseminadora da araucária – ajudou com que parte das implementações fosse suspensa sob força de uma liminar expedida no início de outubro a pedido de ONGs. E agora, a ação conjunta dos Ministérios requer a nulidade completa de autorizações e a paralisação total dos trabalhos. No documento de 139 páginas enviado na última sexta-feira (16) à 11ª Vara da Justiça Federal do Paraná, o MPPR e o MPF questionam a validade do projeto apresentado pela Engie.

A empresa – parcialmente controlada pelo governo francês – dividiu o empreendimento em sete lotes menores que, segundo a ação, embora sejam complementares entre si, tiveram seus impactos avaliados e apresentados de maneira individual. Na prática, ao fracionar e isolar a área total afetada, a manobra teria conseguido cumprir com os requisitos exigidos pela legislação ambiental.

“Não há como se ignorar que todas as novas instalações estão sendo edificadas em empreitada única, ou seja, de forma concertada e concentrada, por uma mesma empresa, conforme obrigações e responsabilidades voluntariamente assumidas em instrumento contratual único. Porém, claro está também que, posteriormente, para fins de licenciamento ambiental, esse empreendimento foi deliberado e artificialmente fracionado em um arranjo de diversos ‘grupos’ de instalações, que foram separadamente encaminhados junto ao órgão ambiental paranaense (o requerido Instituto Água e Terra-IAT) – como se, na realidade, se tratassem de vários empreendimentos absolutamente distintos […]”, diz trecho da ação.

Três em um

Na avaliação dos autores, não há argumentos ambientalmente relevantes que justifiquem o desmembramento da obra tal como apresentado pela concessionária francesa. Tampouco os argumentos técnicos usados pela companhia se sustentariam, de acordo com a avaliação da equipe.  

Em manifestações no curso do processo, a Engie justificou que cada linha de transmissão e cada subestação teria características técnicas próprias, com funções diferentes dentro do sistema, o que, portanto, legitimaria a divisão do empreendimento. Mas o raciocínio não foi respaldado nem pela própria Aneel, responsável pelo contrato de concessão. Conforme informado pela agência às instâncias judiciais, a desagregação do projeto seria compatível “especificamente para fins de remuneração da concessionária”, mas, se assim fosse, “com uma divisão completamente diferente da usada pela Engie”.

O desenho da companhia francesa reuniu exclamações na ação enviada à Justiça Federal. Em mais de uma situação, o esquema chegou a tratar frentes de trabalho reunidas em uma mesma área como distintas.

É o caso da a obra da subestação Ponta Grossa, onde estão sendo erguidos dois sistemas de linhas de transmissão: um de alta tensão – entre Ponta Grossa e Ivaiporã – e outro entre Ponta Grossa e Bateias, em Campo Largo. Apesar de se interligarem, tanto a subestação quanto as linhas foram apresentadas isoladamente, garante o MP, e o que deveria ser apenas um conjunto virou três. De acordo com o documento, “a mesma problemática é observada nas demais áreas de implantação do empreendimento em que estão sendo construídas instalações contínuas que foram ficticiamente divididas em ‘grupos’ diferentes”.

Apesar de estar numa mesma área, sistema de Ponta Grossa foi dividido em três grupos. Imagem do MPPR e MPF, com base em levantamentos da Engie e documentos do IAT

Para os Ministérios Públicos Estadual e Federal, a cisão do projeto é suficiente para questionar a credibilidade dos estudos e relatórios individualmente apresentados pela empresa. Sem tratar do empreendimento na sua totalidade, os promotores acreditam que a empresa teria jogado para o escuro o real impacto dos trabalhos e até mesmo colocado em xeque os pontos de locação escolhidos para abrigar as bases do complexo, também avaliados a partir dos grupos, e não do conjunto total.

Ainda pesa sobre a Engie e sobre o IAT o fato de o órgão ambiental não ter cobrado Estudo de Impacto Ambiental (EIA) para as linhas de transmissão de menor tensão, mesmo sendo elas parte de um projeto de grande impacto. A falta ou a inconsistência de outros estudos de viabilidade também foram ponderados.

No âmbito do Ibama, o mecanismo – classificado de “burla” na ação – já havia chamado a atenção da Justiça para deferir a liminar que mantém parte das obras da francesa suspensa. Embora as obras se concentrem apenas em território paranaense, o Ibama precisa autorizar projetos que demandem a supressão, de forma isolada ou cumulativa, de 50 ou mais hectares de vegetação primária ou secundária, em estágio médio ou avançado de regeneração. Com a divisão do lote em grupos menores, a concessionária também conseguiu concentrar hectares menores e, segundo a ação, se encaixar nos critérios para anuência do Instituto.

Quadro elaborado pelo MPPR e MPF mostram divisão de projeto de acordo com áreas permitidas pelo Ibama

IAT nega manobra

Em nome do Sistema de Transmissão Gralha Azul, a Engie disse se pronunciará quando for citada da ação. O Ibama não respondeu à reportagem.

Já o IAT contestou os argumentos da ação conjunta e afirmou que “não houve desdobramento do licenciamento ambiental para obras das linhas de transmissão da Engie no Paraná”. Em nota, o instituto segue as explicações dadas pela empresa francesa no decorrer das apurações do MPPR e MPF e diz que, assim como o Ibama, entende que houve “licenciamento de empreendimentos distintos, visto que cada instalação de transmissão tem por objetivo específico a interligação e escoamento de energia entre subestações específicas e distintas, o que reforça a sua autonomia e individualidade”.

O texto diz ainda que os impactos do projeto, incluindo a supressão vegetal, são objeto de compensações ambientais, conforme a legislação ambiental e que “o empreendedor apresentou ao IAT propostas para cada uma das compensações, que estão sendo avaliadas, e deverão cumprir estritamente o que está previsto em lei”.

Por fim, o IAT afirma que aguardará manifestação da Justiça a respeito da ação e que se coloca à disposição para demonstrar, com base em critérios técnicos e legais, a regularidade do licenciamento.

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