Curitiba orienta trabalho remoto, mas mantém servidores presentes

Mesmo funcionários que já haviam cumprido rotinas em home office realizam atividades presenciais

A sequência recorde de casos confirmados de Covid-19 e a lotação de UTIs não foram suficientes para fazer Curitiba voltar atrás e retomar o regime de trabalho de casa para seus servidores, que beiram os 30 mil. Mesmo funcionários que já haviam cumprido rotinas em home office e, portanto, hábeis a exercerem funções à distância, continuam a desempenhar atividades presenciais. A medida contraria orientações da própria prefeitura, que em seu decreto mais recente de restrições, pediu prioridade aos modelos de trabalho remoto para reduzir a circulação de pessoas nas ruas e evitar aglomerações.

A retomada do trabalho à distância é um dos itens que entrou no novo pacote de medidas anunciado pelo governo do Paraná para conter a disseminação do coronavírus. Ao decretar nesta terça-feira (1) o inédito toque de recolher em todas as regiões, o secretário de Estado da Saúde, Beto Preto, afirmou que vai rever a resolução editada em 21 de setembro que liberou a volta do expediente presencial nas repartições estaduais.

“Nós vamos retomar o home office e vamos pedir também aos outros poderes que possam continuar agindo dessa maneira. Vamos estender o convite para que o trabalho home office seja também feito nas prefeituras. Queremos dar o exemplo a partir do poder público e transferir quem puder transferir para o domicílio”, disse o secretário em entrevista à rádio BandNews. “De nada adianta que possamos aumentar leitos se não houver também uma estratégia de conscientização da opinião pública, tomada de decisões efetivas”, afirmou em outro trecho.

Curitiba tem hoje cerca de 28,3 mil servidores ativos, mas nem a própria prefeitura diz saber de imediato quantos estão em atividades presenciais e quantos foram mantidos em teletrabalho ou afastados por causa de suas condições de saúde. Procurada, a Secretaria Municipal de Administração e Gestão de Pessoal (SMAP) informou não ter um levantamento total porque o controle – relacionado a critérios definidos em decretos – compete individualmente a cada secretaria.

No entanto, a pasta adiantou que o atual modelo, com todos os liberados de volta às repartições, passará por reavaliação após a oficialização do decreto citado por Beto Preto. “Desde o dia 19 de outubro, os servidores municipais exercem suas atividades presencialmente. Os que fazem parte do grupo de risco, gestantes e os que têm 65 anos de idade ou mais continuam trabalhando em home office. Outras medidas poderão ser tomadas tão logo novo decreto estadual seja publicado no diário oficial”, diz a nota enviada ao Plural.

Em meio ao caos

O retorno dos servidores da administração municipal aos seus locais de trabalho ocorreu em agosto, pouco menos de um mês após a Capital entrar na bandeira amarela – fase mais branda de alerta para a Covid-19, em que a cidade permaneceu até a última sexta-feira (27).

Nestes dois meses, saltou de 49.170 para 80.062 confirmações de infecção pelo coronavírus, com 341 mortes no período. Nas últimas semanas, com o agravamento da crise, Curitiba bateu recordes diários e rompeu a barreira dos 13 mil casos ativos de uma só vez; mesmo com a criação de novos leitos, as UTIs atingiram lotação como nunca antes, e os hospitais entraram em caminho de colapso.

“Bem agora que está aumentando [o número de casos] era para ser ao contrário, diminuir os contatos. Mas, no nosso caso, estamos mantendo contato direto com as famílias, que também têm risco. Para chegar até a gente, elas têm que sair de casa, pegar ônibus. É perigoso para todo mundo”, relata o servidor de uma unidade do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), da Fundação de Ação Social (FAS) de Curitiba.

Em condição de anonimato, o funcionário falou sobre a volta dos encontros presenciais com responsáveis e familiares para a formulação de planos de atendimento a adolescentes que cumprem medidas socioeducativas na Capital. O retorno foi no dia 23 de novembro, justamente na semana em que, por causa do descontrole de casos, a prefeitura reimplantou a bandeira laranja no município. As reuniões são nas unidades do Creas e envolvem, além do familiar e do representante do Centro, um servidor da Saúde.

“O que mais causa indignação é que isso descumpre as próprias orientações que eles dão, que é de manter distanciamento. A sala onde ocorrem estas reuniões é usada pelos servidores, então fica lá o pessoal da família circulando pelo mesmo espaço. O certo ainda seria manter esses atendimentos suspensos até uma melhor avaliação do que poderia ser feito, até a prefeitura ver outro local, maior, com maior distanciamento”, avalia o servidor.

Foi justamente a área da assistência social que perdeu uma funcionária, esta semana, por causa da Covid-19. A assistente social Doroti Regina Guaita chegou a ficar internada, mas não resistiu. Segundo o Conselho Regional de Serviço Social do Paraná (CRESS-PR), a profissional participava do Programa de Atendimento Domiciliar da Fundação Estatal de Saúde De Curitiba (FEAS) e tinha base na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Cajuru. Segundo colegas, ela tinha diabetes, era hipertensa e teria se infectado no ambiente de trabalho.

Conforme a presidente do CRESS-PR e coordenadora da Comissão de Orientação e Fiscalização do Conselho, Andrea Braga, mesmo com o avanço da pandemia Guaita continuava no atendimento às cerca de 400 famílias incluídas no programa. “[Doroti] Era a única assistente social trabalhadora do programa de atendimento domiciliar. O atendimento se dá de forma direta as famílias, o que pode ampliar a situação de risco”, escreveu Braga ao Plural.

Para a conselheira, a sobrecarga de trabalho, principalmente por causa do grande número de pessoas para atender, aumenta a exposição de profissionais ao coronavírus. No caso das assistentes sociais, a situação vem sendo monitorada de perto pela entidade, que já fez uma pesquisa estadual para mapear as principais dificuldades enfrentadas pelas profissionais do Paraná durante a pandemia. O levantamento mostrou que 73,8% relataram não ter tido capacitação específica voltada para o contexto da pandemia da Covid-19.

“Infelizmente a situação de Doroti nos remete ao cenário de medo a que estamos expostos, atuando como profissionais no atendimento direto a população, que por diversas vezes, encontra-se em condições precárias de atuação profissional, bem como, sujeitadas diretamente ao risco de contágio”, ressalta Braga.

Generalizado

A situação não é diferente em outros setores da prefeitura. O servidor de uma repartição de serviços de atendimento, que preferiu não se identificar, conta que, embora existam diversas possibilidades de reduzir a exposição dos funcionários da sua área, nenhuma delas foi adotada até agora pela gestão.

“Os advogados [da área], por exemplo, eles têm uma demanda, mas não precisam ficar ali direto. E tem setores, como o meu, que poderiam trabalhar tranquilamente em uma escala de revezamento dia sim e dia não e não afetaria nada; outros setores poderiam trabalhar todo mundo de casa. Mas o que a gente vê é que eles tentam empurrar ao máximo com a barriga e só tomam alguma atitude, ainda nem suficiente, quando a coisa fica muito feia”, relatou ao Plural o servidor, que já foi contaminado pelo coronavírus.

Ele conta que o resultado veio depois de um chefe testar positivo para a doença. Em casa, a mulher e o filho, um bebê de um ano, também foram infectados. Mesmo assim, diz ele, nenhum outro colega de trabalho foi orientado a fazer o teste.

“A gente percebe que, por mais difíceis que estejam as coisas, a postura da prefeitura é sempre tomar uma atitude para maquiar. A gente que atende pessoas, por mais controlado que seja esse atendimento, mas está sempre variando o contato, aumentando o risco. E mesmo os que não trabalham com atendimento ao público, eles saem de casa, se expõem. E a gente está falando de um vírus que se espalha fácil”.

Nesta semana, os sindicatos que representa os servidores municipais (Sismuc) e o os servidores do magistério municipal (Sismmac), pediram, em um ofício conjunto, que a administração municipal defina o que considera atividade essencial no âmbito do município. A intenção é cobrar, diante do agravamento da pandemia em Curitiba, um posicionamento da prefeitura em relação às atividades que não são essenciais e que continuam sendo executadas em escala presencial.

“Sabemos que tem muitos trabalhos que são essenciais para a comunidade, como a entrega dos kits [de merenda]. Mas o que vem para a gente é que estão convocando os servidores para arrumar as salas de aulas dos CMEIs para o ano que vem, para imprimir parecer. A gente não considera isso como atividade essencial”, alega a coordenadora geral do Sismuc, Christiane Schunig. “Neste momento, o que está pesando um pouco mais é na Educação, mas isso também acontece em outras áreas, na FAS e no urbanismo, por exemplo”, complementa.

Quanto mais em casa, melhor

A preferência pelo cumprimento da jornada em regime de teletrabalho foi estabelecida em nível nacional por uma portaria conjunta dos ministérios da Saúde e da Economia ainda em junho. Além de tornar obrigatórias orientações e medidas de segurança individuais e coletivas em ambientes corporativos, a medida define prioridade, quando possível, dos regimes de teletrabalho ou de trabalho remoto.

No decreto da última sexta-feira (27), que reinstituiu a bandeira laranja, a prefeitura de Curitiba também fez orientação semelhante – embora ela própria não tenha colocado a sugestão em prática.

“Os estabelecimentos deverão adequar o expediente dos seus trabalhadores aos horários de funcionamento definidos neste decreto, e priorizar a substituição do regime de trabalho presencial para o teletrabalho, trabalho remoto ou outro tipo de trabalho à distância, quando possível, de modo a reduzir o número de pessoas transitando pela cidade ao mesmo tempo, evitando-se aglomerações no sistema de transporte, nas vias públicas e em outros locais”, diz o artigo 13 do decreto 1600/2020.

Para o médico Gilberto Martin Berguio, sanitarista e professor da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Campus Londrina, medidas que reduzam exposições ao vírus são sempre válidas. Segundo ele, a remodelagem dos ambientes de trabalho, para casos possíveis, entra nesta perspectiva, uma vez que traz menos possibilidades de contatos e, consequentemente, menos chances de aglomerações.

“Tudo aquilo que a gente puder fazer à distância, sem ser presencial, nós vamos eliminar a locomoção de pessoas, o contato destas pessoas, a aglomeração. Isso ajuda a fazer o distanciamento social. Principalmente atividades administrativas, mais burocráticas e que podem ser feitas através dos instrumentos de informática, elas deveriam ser feitas de casa. Até mesmo a Medicina, na medida do possível, tem lançado mão dessa alternativa de tentar evitar ao máximo o contato presencial”, coloca o médico.

Berguio lembra ainda que circulação do vírus é proporcional à circulação de pessoas em ambientes e que a taxa de contaminação do coronavírus tem o nível de isolamento como uma das suas principais variáveis. Nestes casos, reforça, há sempre alguém que traz ou leva o vírus, motivo pelo qual o controle de exposição tem que ser sempre levado em conta.

“Olhando do ponto de vista sanitário, tudo aquilo que a gente puder fazer à distância, que puder evitar que as pessoas circulem, deve ser feito. E a gente expande isso para o resto da sociedade. Se eu tenho determinadas áreas funcionando normalmente, a mensagem que eu estou passando é que está tudo normal, que não é um problema. E esta mensagem atinge não só pessoas que estão indo para aquele local, como ainda quem está fazendo outras coisas, e que faz a leitura subjetiva disso”, aponta o médico.

O que diz a prefeitura

Sobre o caso citado na reportagem, a FAS reiterou que a assistência social é um serviço essencial e que todos os atendimentos prestados pelo órgão vêm sendo feitos em horário reduzido e cumprindo as determinações sanitárias, “não havendo nenhuma situação de aglomeração que possa colocaras pessoas em risco”.

Conforme a pasta, as reuniões presenciais são referentes à formulação do plano de atendimento individual, que é a primeira entrevista do adolescente antes de ser encaminhado a políticas públicas do município.

“A equipe cumpre todas as medidas sanitárias de segurança para atender a família, bem como encaminhar o adolescente para benefícios sociais e outros que se fazem necessários. Este trabalho é realizado com horário previamente agendado pela Vara do Adolescente Infrator”, diz a nota.

Ainda segundo a pasta, a manutenção dos trabalhos para definição de medidas socioeducativas cumpre determinação do Ministério Público ditada em ofício de 11 de novembro.

A Secretaria Municipal de Educação também foi procurada para comentar os questionamentos feitos pelo Sismuc e Sismmac e disse que mantém o mesmo posicionamento da Secretaria Municipal de Administração e Gestão de Pessoal (SMAP) e que aguarda o decreto do governo para novas decisões.

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1 comentário em “Curitiba orienta trabalho remoto, mas mantém servidores presentes”

  1. SUELI PREIDUM DE ALMEIDA COUTINHO

    Parabéns pela matéria que apresenta as contradições das medidas adotadas pelo Estado do Paraná e municípios. Essas contradições levam a população a duvidar do alto risco que vivemos nesta pandemia.
    Faço apenas uma correção nesta matéria, a Assistente Social Doroti Regina Gaita, não era da área da assistência social, mas sim atuava na área de saúde, como bem informou a Presidenta do CRESS/PR Andrea Braga, “a profissional participava do Programa de Atendimento Domiciliar da Fundação Estatal de Saúde De Curitiba (FEAS) e tinha base na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Cajuru.”
    Assistentes Sociais podem atuar em diversas áreas, sendo a “assistência social” apenas uma delas, que conta com outros profissionais como psicólogas/os, educadoras/es sociais. E na área de saúde Assistentes Sociais são reconhecidos como profissionais de saúde pela Resolução nº 287/1998 do Conselho Nacional de Saúde, juntamente com outras 13 categorias profissionais.
    (http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/1998/res0287_08_10_1998.html)

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