Curitiba foi pega de surpresa? Não é bem assim

Desde o fim de setembro dados da própria Secretaria Municipal de Saúde apontavam para aumento de casos

Nesta sexta, dia 11 de dezembro, a secretária municipal de Saúde de Curitiba, Márcia Huçulak, declarou ter sido surpreendida pelo pico atual de Covid-19 na cidade. “É um momento crítico, difícil e inesperado. Não é uma época em que teríamos preocupação com a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) por conta do período de primavera indo para o verão. Esse é o resultado da decisão da sociedade, já disse isso várias vezes. O tamanho da pandemia é o tamanho do comprometimento de cada um”, declarou ao jornal Tribuna do Paraná.

Não foi a primeira vez que a secretária afirmou não ter percebido que a cidade seria atingida por uma nova onda de casos da doença. Muito menos que dessa vez o sistema de saúde pública e privada da região entraria em colapso, como registrado nos últimos dias.

O Plural voltou aos dados da pandemia na cidade, que são divulgados pela própria Secretaria Municipal de Saúde (SMS), para verificar se havia sinais de que as infecções pelo coronavírus voltariam a colocar a cidade no limite. E se havia como prever a situação que estamos no momento.

Previsão de casos

A pandemia de Covid-19 é um acontecimento certamente novo, mas a ocorrência de surtos de doenças causadas por vírus, não. A medicina tem uma área inteira dedicada a estudar o comportamento da propagação de doenças, a epidemiologia (que, inclusive, é uma das áreas em que a secretária se especializou).

Entre inúmeros indicadores analisados pelos especialistas para se antecipar ao comportamento da doença está o Número de Reprodução (Rt), que estipula quantas pessoas são infectadas a partir de uma única pessoa contaminada. Na teoria, um Rt abaixo de 1 significa uma futura redução na velocidade do contágio. Acima de 1 há uma aceleração no contágio.

Em Curitiba, a SMS passou a divulgar o resultado do cálculo do Rt local (sem detalhamento) nos painéis semanais de dados em 28 de agosto (relativo a 20 de agosto, pois o índice é calculado em relação ao período anterior).

Desde então, depois de um crescimento pontual com pico em 1o de setembro, a cidade registrou um período de 35 dias, segundo os dados da SMS, de Rt abaixo de 1, o que implicaria na redução de casos. Isso de fato aconteceu.

Porém, os mesmos dados da SMS mostram também que durante esses 35 dias houve uma clara inversão de tendência a partir de 21 de setembro. A partir dali o Rt passou a registrar valores cada vez mais próximos de 1, até ultrapassar esse limiar em 23 de outubro, quando a secretária lamentou este fato em sua última live semanal (confira o trecho no vídeo).

A médica Marion Burger, que acompanhava a secretária na live, reforçou: “Se a gente quiser controlar essa pandemia, a gente precisa manter esse R abaixo de 1”. Os comentários de ambas naquele momento, no entanto, não citavam que o aumento do R era parte de uma tendência de alta. E que isso refletiria num constante aumento de casos pelo menos nas próximas duas semanas.

Na live da semana anterior ambas haviam comemorado o R ainda abaixo de zero, também sem citar a tendência que os dados que tinham em mãos mostravam e a atribuíam a uma “mudança de hábito” que, na opinião da secretária naquele momento, a população tinha incorporado (confira o trecho abaixo).

Mais importante, no dia 23 de outubro apesar da tendência de aumento no Rt e a expectativa de aumento de casos nas semanas seguintes, a prefeitura renovou os decretos que regulamentavam a bandeira amarela. Dali duas semanas dois eventos previsíveis estavam para acontecer: o feriado de Finados (2 de novembro) e o início da reta final da eleição municipal.

Ou seja, naquele 23 de outubro a SMS tinha em mãos dados que indicavam tendência de aumento de casos nas duas semanas seguintes. Esse período crítico se encerraria num feriado prolongado em meio a uma previsão de calor.

Em 6 de novembro a prefeitura autorizou a reabertura de cinemas, teatros e casas de festa para até 50% da capacidade de público dos estabelecimentos. O painel de dados da pandemia na cidade, elaborado pela SMS aponta que em 30/11 o Rt estava em 1,11 (variando entre 1,07 e 1,16).

Também havia um novo indicador importante aparecendo. A média móvel de novos casos confirmados registrou em 6 de novembro um aumento de 22% em relação a semana anterior, foi de 334 para 408. Já era um reflexo do taxa de transmissão de 1,13 de 19 de outubro?

Dados dos boletins da prefeitura mostram a curva de ocupação em UTIs aumentando com duas semanas de diferença para o aumento do Rt.

Ainda em 6 de novembro a prefeitura voltou a aumentar o número de leitos de UTI Covid-19, algo que não acontecia há 81 dias. A cidade vinha desativando leitos. Foram 81 leitos fechados. Dez dias antes, em 21 de outubro, a cidade voltou a atingir 80% de ocupação de UTIs pela primeira vez em 17 dias. No dia 6 foram reabertos 9.

Entre os dias 21 de outubro e 5 de novembro o índice de ocupação de leitos de UTI Covid ficou, em média, em 78%, chegando a 81% no dia 5. Entre os dias 6 e 13 de novembro a ocupação ficou, em média, em 77%.

Em 15 de novembro mais uma aglomeração previsível: 940 mil eleitores curitibanos registraram seus votos para prefeito e vereador.

Média móvel de 7 dias de novos casos confirmados começa a subir duas semanas depois do Rt ultrapassar o índice 1.

A partir do dia 14 de novembro os próprios indicadores da prefeitura já apontavam para mudança do alerta e a imposição de novas restrições a mobilidade da população e a redução da circulação de pessoas para conter a transmissão da doença. A expectativa era que esta decisão fosse anunciada na sexta-feira, quando a prefeitura divulga o cálculo dos indicadores de alerta.

Na sexta, dia 20 de novembro de manhã, uma semana depois de ser reeleito no primeiro turno, o prefeito Rafael Greca, a secretária da Saúde, Marcia Huçulak participaram de uma coletiva de imprensa.

A média móvel de novos casos havia crescido 60% em relação a semana anterior. A taxa de ocupação de UTIs estava em 86%. E a de enfermarias em 80%. O número de óbitos pela doença havia aumentado 33%.

Prefeito e secretária aproveitaram a imprensa para culpar a população pelo aumento dos casos. “As pessoas perderam o medo do vírus”, afirmou Huçulak. Apontou também um novo culpado: “E os nossos jovens, nada contra. Aliás a juventude é o futuro. Também as baladas, pedi apoio a polícia militar”.

Segundo a secretária, o número que justificaria essa acusação é que haveria um maior número de casos entre jovens, pessoas de 15 a 40 anos, que teriam casos leves da doença, mas seriam “uma cadeia de transmissão importante que atinge dentro da família”.

Nesta ocasião, o Plural questionou a secretária por que a alteração da tendência do R não havia chamado a atenção dela já em outubro. “O R é sempre da semana anterior. Nós passamos aí 21 dias com nosso R 0,86, 0,90, 0,82. Na quinta passada ele foi para 1,1, que ele subiu. Então não sei da onde você tirou a informação do R tava alterado. Nunca passou tanto tempo com R abaixo de 1 que mostrava a quebra da cadeia de transmissão”, respondeu.

O dado, no caso, está no boletim semanal de dados da prefeitura. Na semana anterior o R, ao contrário do que afirmou Huçulak, era 1,25.

Tela do Boletim Covid-19 da Prefeitura de Curitiba de 13/11/2020.

No boletim anterior a esse, de 6 de novembro, o Rt informado, relativo ao dia 30 de outubro, foi de 1,11. E o boletim do dia 29 de outubro, o Rt do dia 26 de outubro é 1. No dia 23 foi informado o Rt do dia 19 de outubro: 1,13.

Na mesma sexta, a prefeitura anunciou o fechamento da UPA Fazendinha, transformada em leito clínico e a manutenção da bandeira amarela. O “truque” de aumentar leitos na sexta-feira manteve o cálculo da bandeira abaixo de dois, justificando a manutenção do alerta no amarelo. Mas só durou um dia. O crescimento de casos estava em plena aceleração.

Daí para frente a situação só piorou. A prefeitura abriu centenas de leitos, mas não conseguiu baixar de 90% a ocupação de UTIs. Uma segunda UPA foi fechada. Mas o caos no sistema já estava formado.

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7 comentários em “Curitiba foi pega de surpresa? Não é bem assim”

  1. Tem uma informação que nunca consigo entender, como a cidade fica sem leitos, precisando encaminhar pacientes para o interior, e o indice de ocupacao de leitos nunca chega a 100%?
    Excelente reportagem, a senhora secretaria poderia esclarecer.

  2. ANTONIO CARLOS TORRENS

    Greca é inconsequente e irresponsável. A secretária de Saúde parece uma tia advertindo a população: ai, ai, ai, tomem cuidado, vocês são os responsáveis. Nenhuma autoridade. Nenhuma ação firme, de poder público que quer diminuir os casos. Falta de pessoal, falta de Guarda Municipal, ausência de autoridade. Uma lástima. Ninguém respeita.

  3. Ficou no ar, mas vamos lá: com eleições logo na sequência o prefeito simplesmente jogou com a vida de todos os curitibanos. Alguns já estão pagando o preço e infelizmente isso parece-me ser só o começo da imensa tragédia em que este verão terá sido transformado. Mas, tudo bem: está reeleito.

    1. Rosiane Correia de Freitas

      Oi Emerson, a razão para a irresponsabilidade a gente pode inferir. Pode ser a vontade de manter a economia funcionando, a despeito da pandemia. Pode ser falta de vontade de se indispor com setores da sociedade. Mas o efeito disso aí tá bem claro: mais de 120 mortos por semana só de Covid-19. Não temos aí na conta outras pessoas que morrem por falta de atendimento por outros motivos.

  4. Maria Alice Pedotti

    Excelente análise, Josiane. Quando autoridades irresponsáveis não tomam as decisões políticas cabíveis, colocam a culpa na população ou no paciente!!! Comercio nao é mais importante que vidas

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