Curitiba está entre as cidades com piores dados raciais de vacinação. Isso não é um detalhe

Sem indicadores, fica difícil saber se há partes da população que estão sendo deixadas para trás na vacinação

Mais de um ano após o início da pandemia no Brasil, a divulgação de dados raciais sobre a imunização ainda é precária. Essa falta de informações dificulta um olhar mais amplo não só sobre a pandemia como também sobre a real eficácia das políticas públicas do país. Nenhum dos 5.570 municípios brasileiros têm todos os registros com o preenchimento integral do quesito cor/raça. Curitiba está entre os 27 que têm mais da metade dos formulários incompletos.

As informações são do último monitor de transparência da vacinação, lançado pela organização Open Knowledge Brasil (OKBR), no dia 17 de junho. A ferramenta, que apresenta um panorama sobre a qualidade dos microdados da imunização publicados pelo Ministério da Saúde via Open DataSUS, atualiza os indicadores semanalmente. 

De acordo com a coordenadora de pesquisa da OKBR, Danielle Bello, é preciso analisar não apenas a disponibilidade dos indicadores demográficos, como é o caso do quesito raça/cor, mas também a qualidade do preenchimento daquela informação. Esses dados são importantes para entender como a pandemia afeta os diferentes grupos da sociedade de formas distintas. “O acesso das pessoas a serviços e políticas públicas é desigual e isso passa pela condição social, mas também pela racial, que está diretamente ligada. É preciso levar isso em conta para podermos pensar em formas de resposta à pandemia que sejam justas e que de fato atendam aqueles que mais precisam.”

Conforme o estudo, o Paraná é o 11º Estado com mais registros sem informação de raça/cor no país, apesar de a obrigatoriedade do preenchimento do campo estar previsto na Portaria 344, do Ministério da Saúde, de fevereiro de 2017. São quase 22% dos formulários sem esse dado. Em Curitiba, a situação é ainda pior: das cerca de 890 mil pessoas vacinadas (contando primeira e segunda dose) até o dia 22 de junho, metade não tem essa indicação, isso corresponde a 445 mil registros sem preenchimento “Sem essa informação, a gente não consegue compreender se essa política de vacinação está atingindo todas as parcelas da população de forma equitativa, pensando que a pandemia afeta os grupos da sociedade de formas diferentes”, pontua Danielle.

Foto: Divulgação/ Open Knowledge Brasil

Para a pesquisadora, essa omissão de dados cria uma barreira no monitoramento da efetividade da estratégia de vacinação à medida em que se definem quem são os grupos vulneráveis – aqueles que devem tomar a vacina primeiro -, mas não se consegue detalhar de forma ampla como essas populações estão sendo atendidas. 

Nesse sentido, Danielle questiona se as definições vigentes dos grupos prioritários são suficientes, uma vez que não abarcam questões de classe e raça/cor, por exemplo. “Se a gente sabe que a doença atinge mais as pessoas em condições de maior vulnerabilidade social e a gente não tem esse dado no centro do planejamento da política de vacinação, isso é um problema”, afirma.

Território

“A pandemia segue um padrão no Brasil inteiro: começa, em geral, pela região central, que comporta os principais postos de trabalho, mas consequentemente, no decorrer da pandemia, os bairros periféricos vão ser os que vão ter o maior índice de mortalidade e de casos”, diz o pós-doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) Marcelo Nogueira de Souza. 

Desde abril de 2020, Marcelo pesquisa os impactos da desigualdade social, racial e territorial na evolução da Covid-19 em Curitiba e em suas regiões periféricas, mais especificamente os bairros Sítio Cercado, Campo de Santana, Umbará, Tatuquara e Caximba.

O estudo “Políticas públicas de combate à pandemia do coronavírus na Região Metropolitana de Curitiba”, vinculado ao Observatório das Metrópoles, mostrou que, atualmente, a regional com o maior número de casos e óbitos é o Pinheirinho. “São os bairros periféricos que têm esses indicadores mais elevados, e isso é em razão da desigualdade. Esses são também os bairros que comportam a maior parte da população negra de Curitiba”, afirma Marcelo.

De acordo com os últimos dados do IBGE, de 2019, 34,3% da população paranaense era formada por pessoas pretas e pardas. Em Curitiba, mesmo com 23,2% da população formada por pessoas negras, entre janeiro e 15 de junho de 2021, apenas 4% havia sido vacinada na cidade. Os dados do DataSUS mostram que, no período analisado, um total de 843.503 pessoas foram vacinadas no município, sendo apenas 32.185 pessoas pretas e pardas. Do total de registros, 433.849 não contém o dado raça/cor.

Segundo a pesquisa de Marcelo, as pessoas que vivem nas periferias são as que mais sofrem com a pandemia e as que mais morrem em decorrência do coronavírus. O pesquisador afirma que alguns complicadores desse cenário são o menor acesso que essas pessoas têm à saúde, as condições precárias de moradia e a maior exposição ao vírus – visto que elas têm menores condições de aderir ao isolamento e estão mais desassistidas em relação ao acesso a unidades de saúde preparadas para receber casos graves da doença, que se concentram, em sua maioria, nas regiões centrais de Curitiba.

“A novidade é o vírus, a desigualdade sempre acompanhou essas periferias. Tudo o que já afetava esses bairros periféricos se torna ainda mais grave durante a pandemia. A questão do território é muito importante agora, é um dos fatores que atesta a desigualdade”, aponta.

É justamente por isso que o pesquisador defende uma abordagem conjunta dos aspectos territoriais e raciais, aliados com os de faixa etária, para compor uma política de vacinação que auxilie essas áreas mais afetadas pela pandemia. Segundo Marcelo, vacinar a população da periferia poderia, além de diminuir a desigualdade vacinal, reduzir a disseminação do vírus pela cidade.

De acordo com o pesquisador, a maior parte das pessoas que moram nas margens da cidade trabalha na região central de Curitiba, tendo que se deslocar constantemente, e assim, se expondo mais ao vírus. Outro agravante da situação é a questão da densidade populacional nessas regiões. “São pessoas que dividem a casa com muitas outras, no caso de um contágio elas não têm como se isolar”, observa Marcelo, que exemplifica com o caso de uma residência abordada na pesquisa com dois cômodos para 11 pessoas. 

Os riscos de contaminação aumentam ainda mais à medida em que esses bairros, muitas vezes, não possuem rede de esgoto. De acordo com o último censo do IBGE de 2010, o Rebouças tinha 99,54% das casas ligadas a rede de esgoto, enquanto no Umbará a porcentagem caia para 49%. “Isso também é um complicador no que diz respeito à transmissão do vírus”, aponta Marcelo. 

A pesquisa de Marcelo ainda está em andamento e tem previsão de ser finalizada em novembro deste ano. “É importantíssimo ter esses dados regionais e das prefeituras justamente para analisar o impacto e a efetividade dessas políticas públicas. A população precisa saber o que está sendo feito”, conclui. 

Procurada pela reportagem, a Secretaria da Saúde do Paraná (Sesa) informou, por meio de nota, que “o Plano Estadual de Vacinação contra a Covid-19, por simetria ao Programa Nacional de Imunização, considera os grupos prioritários e o desenho da população geral a ser imunizada. Não há previsão de um recorte por etnia, uma vez que as diretrizes são estabelecidas pelo Ministério da Saúde, conforme a dinâmica da política de vacinação.”

Ao Plural, a Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba (SMS) esclareceu que a informação sobre raça/cor não é levantada pelo órgão uma vez que “não é um dado exigido pelo Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (SIPNI), do Ministério da Saúde”.

Falta de transparência e consistência

Desde o início da pandemia, a falta de transparência dos indicadores sobre a Covid-19 – principalmente sobre como a doença afeta populações mais vulneráveis – tem sido um empecilho para que pesquisadores, a imprensa e até mesmo a população acompanhem o real cenário da pandemia no país.

Sobre o quesito raça/cor, por exemplo, foi apenas depois de manifestações de diversas entidades do movimento negro que, em abril de 2020, o Ministério da Saúde passou a divulgar esses dados.

A falta de transparência dificulta também a obtenção de informações precisas a respeito do cenário da pandemia no país, mas especialmente nos Estados e municípios.

O Governo do Paraná vem apresentando inconsistências nos dados referentes aos 399 municípios há algum tempo. Questionada pelo Plural, a Sesa afirmou que o vacinômetro do Estado está em processo de migração da fonte de dados e que, por isso, alguns municípios apresentariam incoerência nas informações. 

No site, algumas cidades mostram ter recebido menos doses do que o valor que consta nos dados do Ministério da Saúde, como é o caso de Curitiba. Outros mostram ter recebido um número de doses menor do que o valor aplicado – o que corresponde, erroneamente, a mais de 100% de doses aplicadas. Sobre essa questão, a Secretaria explicou que o processo de colocar as doses aplicadas no sistema ainda é manual e deve ser conferido uma por uma, por isso aconteceriam atrasos e inconsistências. 

Imagem do vacinômetro da Sesa no dia 24 de junho. Foto: Divulgação/Secretaria da Saúde do Paraná

De acordo com a professora do do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPR e uma das pesquisadoras do estudo que apontou que o Paraná é o estado que mais precisa acelerar ritmo de vacinação, Maria Carolina Maziviero, o Estado “já tem um histórico de não lançar ou não divulgar os dados com tanta clareza”. Maria conta que, no ano passado, quando produzia uma pesquisa sobre a pandemia em Curitiba, ela precisou recorrer à Lei de Acesso à Informação e, mesmo assim, o processo de obtenção de dados foi complicado. “Quando a gente conseguia os dados já eram todos do passado.” 

A Secretaria afirmou que está verificando se será possível deixar o sistema estável até o fim desta semana ou se o retirarão do ar. 

Reportagem sob orientação de João Frey

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