Comunidades da Ilha do Mel fazem lançamento online de Protocolo de Consulta

Evento acontece nesta terça-feira (7), às 19h, nas redes sociais

Os povos tradicionais da Ilha do Mel lançam de forma online, na próxima terça-feira (7), Protocolo de Consulta das comunidades tradicionais de nativos de Nova Brasília. A atividade será transmitida às 19h pelas redes sociais da Associação dos Nativos da Ilha do Mel (Animpo)e das organizações apoiadoras Terra de Direitos e Centro de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental (Cepedis).

O lançamento contará com a participação de integrantes das comunidades tradicionais, representantes do poder público do município de Paranaguá e do Estado, do sistema de justiça e de organizações apoiadoras na elaboração do protocolo.

A iniciativa das 70 famílias das praias de Brasília, Farol, Praia Grande e Fortaleza partiu do reconhecimento do direito de participar da gestão de seus territórios e da necessidade de deixar claro como as comunidades devem ser consultadas sobre projetos de leis ou outras medidas administrativas que possam impactar os seus modos de vida. Para além da apresentação de acordos coletivos, o documento ainda reúne elementos que compõem a memória, práticas e cultura das comunidades tradicionais.

Protocolo de Consulta e Autonomia

Instrumento de autodeterminação dos povos, o Protocolo formaliza o direito das comunidades tradicionais de serem consultados antes de qualquer intervenção que afete seus territórios e modo de vida. Com o Protocolo de Consulta Prévia, Livre e Informada, as comunidades conseguem estabelecer melhor o diálogo com as instituições, informando como gostariam de ser consultadas, o tempo, o local, o idioma em que as reuniões devem acontecer, entre outros.

De acordo com a assessora jurídica da Terra de Direitos, Naiara Bittencourt, “o direito de consulta existe mesmo sem o protocolo, mas o instrumento facilita a garantia e efetivação de direitos porque significa que já há um acordo prévio interno sobre o método ou forma de consulta e requisitos que o Estado deva respeitar quando realizar um projeto que impacte aquele modo de vida tradicional”.

O documento é garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que é lei no Brasil desde 2004. Em 2017 havia 5 protocolos no país. Hoje, são mais de 60. 

“O nosso protocolo vem em boa hora. Há anos a nossa comunidade vem sendo desrespeitada”, afirma o nativo da Ilha do Mel Felipe Andrews. Ele explica que a comunidade, há décadas, sofre com as regularizações do território, com dificuldades na documentação dos terrenos e com a realocação do cemitério para um local mais acessível à comunidade. 

Pesca da tainha é uma das atividades tradicionais mantidas pela comunidade. Foto: Lizely Borges

A falta de consulta prévia a entrada de empreendimentos privados como hotéis também incomoda a população. “São hotéis gigantes que estão construindo, diversas empresas… A gente não costumava ser consultado em nada, vinha tudo de cima para baixo, goela abaixo. E também diversas leis, portarias que acabam modificando de certa forma como vivemos aqui no nosso território. Teve uma revisão do plano de uso do solo sobre a qual a gente não foi consultado e tinha diversas alterações lá que a comunidade gostaria de fazer, de estar participando, estar debatendo como seriam essas novas leis e portarias pra Ilha do Mel”, diz Felipe. 

Outros exemplos de violações aos direitos da comunidade, segundo Naiara, são a alteração do plano territorial da Ilha do Mel, sem consulta; a recente explosão das Pedras Palanganas para ampliação do canal de acesso ao porto de Paranaguá, que impactou a vida marinha, a biodiversidade e o trabalho dos pescadores artesanais; e a ausência de destinação de lotes para moradia dos nativos, já indicados há anos para tal fim, para a realização de outros empreendimentos definidos pelo Estado.

Livre, prévia e informada

A realização da consulta é uma obrigação jurídica. Caso não seja respeitado, pode haver questionamento político e jurídico. “O protocolo de consulta evidencia as violações de direitos  quando ocorrem e por isso também ajuda a comunidade a reivindica-los com mais força”, afirma a assessora jurídica. 

Vale ressaltar que a consulta deve ser livre, prévia e informada e por isso traz à tona questões sociais, ambientais e econômicas que nem sempre eram percebidas.  A comunidade deve ter acesso, previamente, aos estudos e documentos que revelem todo o impacto que pode ser sofrido. A consulta também permite abrir um canal de diálogo. Nem sempre a comunidade é contra a realização de um projeto, mas pode indicar formas de atenuar riscos, minimizar impactos e sugerir contrapartidas. 

Resgatando a si mesmos

Mais importante que o Protocolo em si, é o caminho percorrido pela comunidade para sua confecção. Durante o processo, houve um momento de resgate e partilha de histórias e memórias que trouxeram o passado comum tradicional, com referências em nativos de outras seis gerações que já viviam na Ilha.

“A realização do protocolo foi de iniciativa da comunidade, que buscou apoio técnico na assessoria jurídica popular para auxiliar na condução do processo. A metodologia baseou-se em formações e intercâmbios prévios com professores, advogadas populares, defensoria pública e outras lideranças comunitárias que já haviam realizado o processo de construção de protocolos de consulta”, diz Naiara. 

Depois de meses de formação e debate interno, durante a pandemia, a comunidade realizou um momento concentrado intenso de três dias para a discussão e redação do protocolo. A partir de métodos da educação popular baseada em Paulo Freire, com temas geradores pela própria comunidade o protocolo tomou contorno. Cada ponto foi amplamente discutido e aprovado por todo o grupo da comunidade presente na construção. Todos os elementos gráficos, imagens e cores do protocolo também foram definidos pela comunidade e trazem essa identidade e memória coletiva.

Para Felipe, o processo foi marcante, já que os encontros permitiram à comunidade conhecer diversas histórias antigas e contos da região: “Foi bem bacana a troca de experiência dos mais antigos para os mais novos, foi a parte mais importante para nós a criação do nosso protocolo. Pudemos ver ainda que a nossa comunidade está muito forte, bem unida Agora nós temos mais uma ferramenta para nos ajudar e nos fortalecer cada vez mais.”

Trecho do Protocolo de Consulta das comunidades tradicionais de nativos de Nova Brasília.

A importância das comunidades para além das fronteiras

Práticas de comunidades tradicionais não apenas conservam patrimônios culturais, mas também a natureza. Os territórios tradicionais são, assim, importantes para o equilíbrio planetário. Esses povos mantêm uma relação com a natureza que envolve desde a sobrevivência até questões culturais e religiosas, e desenvolveram um conhecimento complexo sobre esses ecossistemas. A conservação é inerente à manutenção dos seus meios de subsistência.

Um estudo publicado na revista Nature mostra que as práticas dessas comunidades com o manejo dos polinizadores são fundamentais para o meio ambiente e para o bem-estar dos seres humanos em todo o planeta.

O artigo Biocultural approaches to pollinator conservation explica como as comunidades indígenas e tradicionais protegem polinizadores em suas florestas, lavouras e campos, trazendo múltiplos benefícios culturais, ecológicos, econômicos e de qualidade de vida local e globalmente. Diversidade biocultural é o termo utilizado pelos pesquisadores para denominar a variedade de interrelações entre pessoas e natureza que se desenvolveram ao longo do tempo em locais específicos. 

O grupo de especialistas faz um alerta aos gestores públicos mundiais e recomenda sete políticas para apoiar a conservação baseada na abordagem biocultural. Entre elas, está a  recomendação de assegurar o direito à terra para as comunidades tradicionais, apoiar atividades de produção compartilhada do conhecimento entre a ciência e os saberes locais, bem como fortalecer o patrimônio mundial cultural e natural.

Vozes em risco

Na contramão dos direitos dos povos tradicionais, tramita no Congresso Nacional a Proposta de Decreto Legislativo (PDL) nº 177/2021, que autoriza o presidente da república a denunciar a Convenção 169 da OIT. Caso aprovado, o presidente Jair Bolsonaro estará autorizado a retirar Brasil da Convenção que é considerada um dos principais marcos internacionais de proteção dos direitos dos povos tradicionais, reconhecida em 23 países.  A proposição é de autoria do deputado federal Alceu Moreira (MDB/RS).

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