Como as cotas raciais nas universidades impactaram as artes no Brasil

Plural publica reportagem de fôlego do Nonada Jornalismo enquanto o Legislativo Federal se prepara para revisar a chamada lei de cotas para o ensino superior

Antes de encontrar pessoalmente Zélia Amador de Deus, vi seu rosto algumas vezes pelos corredores da Universidade Federal do Pará (UFPA). Em lambes e pinturas, a imagem da professora, uma das principais agentes da luta pelas políticas afirmativas no país, está espalhada pelo campus. Desde 1978, Zélia leciona na UFPA, onde chegou à vice-reitoria da universidade e lutou pela criação de cotas raciais para o ingresso de estudantes negros. Na sua trajetória de militância estão a fundação do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará, o Grupo de Estudos Afro-Amazônico e do primeiro Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros do norte do país.

Sua história é um cruzamento de educação, arte e luta por justiça social. Desde jovem, a hoje professora emérita da maior universidade da região norte lutou junto ao movimento negro. Ela conta que “luta desde sempre”, que sempre foi “um ser em coletivo”. Primeira reitora negra de uma universidade brasileira e recentemente homenageada pela BrazilFoundation, em Nova York, como uma das líderes sociais mais relevantes do país, Zélia não está estampada nas paredes à toa. Milhares de estudantes que hoje circulam nesses mesmos corredores estão lá graças a conquistas das quais a professora tem participação ativa.

Cotas raciais

Diferente de quando Zélia entrou na universidade, em plena ditadura militar, 40 anos atrás, as salas de aulas de hoje têm, cada vez mais, estudantes negros e indígenas. Desde lá, a professora luta para que a academia mude de cara. A conquista é fruto direto da Lei n. 12.711, aprovada em 2012, que instituiu ações afirmativas para ingresso no ensino superior público federal.

No ano em que a lei completa uma década, o Legislativo Federal deverá se reunir para debater a continuidade dessa importante ferramenta de inclusão no ensino superior e de redução de desigualdades históricas. “O programa de cotas é pedagógico. A sociedade vai sendo educada, porque vê que pessoas negras podem ocupar qualquer profissão, não só as que as foram pré-determinadas”, avalia a professora.

O Nonada ouviu artistas, especialistas e profissionais que tiveram suas trajetórias impactadas pelo sistema de cotas raciais nas universidades públicas, seja pelo ingresso na graduação ou na pós-graduação, seja pela possibilidade de se ver reconhecido nos espaços da academia e no circuito de artes. Eles contam dos desafios, dentro e fora da universidade, dos processos para entenderem-se artistas e do impacto que essas políticas tiveram em suas vidas. Projetam também futuros.

Caminhos em coletivo

“Qual a diferença entre o charme e o funk?”. O verso é do “Rap da diferença”, que em uma conversa entre amigos, durante uma festa na Praça da Matriz, em Porto Alegre, viria a ser o nome do primeiro espetáculo do grupo Pretagô. Entre passinhos de charme e brincadeiras, um grupo de então estudantes do Departamento de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) começava a sonhar, em 2014, com o que hoje é um dos principais grupos teatrais do estado. Desde essa época o Pretagô pesquisa e promove a representatividade e o protagonismo negro nas artes da cena.

Silvana Rodrigues é cofundadora do grupo, diretora teatral e atriz. Ela conta que o encontro dos atores é a partilha, não só de vivências e semelhanças, de dor, mas também de alegrias, de frustrações e também de sonhos. “Todos nós havíamos sofrido experiências diversas de ser preteridos em algum trabalho ou não sermos imaginados em algum papel”, conta Silvana, relembrando o período em que ainda era aluna da graduação. “Montar ‘Qual a diferença…’ foi fazer teatro com T maiúsculo, olhando para nossas histórias, para nossa ludicidade, sem freios, sem almejar uma desenvoltura teatral calcada nos moldes europeus”. O impacto foi visível: filas se formavam na temporada de estreia, e os alunos lotaram os espaços culturais da universidade para assistir ao espetáculo.

“Ali de fato começa, eu gosto de dizer, a minha grande escola teatral. Isso só acontece na UFRGS, apesar da UFRGS, porque as cotas raciais abriram portas para esse encontro de gente vinda de várias periferias de Porto Alegre e região e metropolitana. Gente preta cheia de vontade e qualidades, que só precisavam de oportunidade de nos desenvolvermos como artistas”, aponta a atriz. Hoje, o Pretagô é formado por Silvana, Manuela Miranda, Camila Falcão, Thiago Pirajira, Laura Lima, Mari Falcão, Bruno Fernandes e Kyky Rodrigues. No repertório do grupo, estão os premiados espetáculos “Qual a Diferença entre o Charme e o Funk?” (2014), “AfroMe” (2015), “Noite Pretagô” (2017) e “Mesa Farta” (2020).

Os jovens atores de 2014 inspiraram outros jovens atores, que, em 2019, criaram a Espiralar Encruza, formada por estudantes negros do DAD, vários também cotistas. No final de 2020, Pretagô e Espiralar foram contemplados com um edital e realizaram uma programação que se estendeu de janeiro a fevereiro de 2021, o “Verafro”. Apresentaram de forma on-line uma série de espetáculos, oficinas, debates e intervenções urbanas. Um intercâmbio entre grupos, que de diferentes gerações do Departamento de Artes, cruzam suas poéticas e propósitos artísticos.

“No Verafro, pudemos pôr em prática muitos desejos, modos de ver arte e mundo, que trocamos há muito tempo. E só foi possível graças aos editais públicos, que viabilizam projetos como os nossos, de um coletivo jovem, com poucos anos de estrada e outro mais jovem ainda”, reforça Silvana. O Projeto foi financiado com recursos da Lei Aldir Blanc, que amparou o setor cultural durante a pandemia.

“Penso no poder que essas oportunidades têm de transformar nossa trajetória, nem sempre nos tirando da margem, mas fazendo olharmos para nós mesmo com o valor que temos. De novo, entendo que não é por falta de capacidade que muitas vezes não estamos no lugar de dignidade que deveríamos estar. O racismo nos toma demais, nos toma tempo, nos toma ânimo, nos toma vida, mas tenho feito um trabalho comigo mesma, e tento fazer através da arte, uma retomada para que que o racismo não tome os meus miolos, não me defina, que eu não seja só uma resposta ao que ele me toma”, diz.

Para Silvana, estar em coletivo é um instrumento de se manter viva e entender que os fracassos e sucessos não são somente frutos de uma caminhada individual. “A rede existe e está sempre atenta a formas de nos desenvolvermos e nos apoiarmos, seja destrinchando um edital – que pode ser bicho de sete cabeças para alguns –, seja compartilhando um evento. Enfim, encontrando maneiras de sermos do tamanho que somos.” A artista chama atenção para a importância de coletivizar, mas também de respeitar as trajetórias individuais. Movimentar-se em rede faz parte da trajetória de Silvana, que também é uma “Trovoa”.

Levante

Em 2017, nasce o Nacional Trovoa. Quatro jovens artistas – Ana Almeida, Ana Clara Tito, Carla Santana e Lais Amaral – começam a se encontrar na casa que dividiam em Niterói, no Rio de Janeiro. O que eram encontros para partilhar processos artísticos começa a expandir-se, na medida em que uma artista vai convidando outra para participar. O grupo cresce, até que, hoje, segundo o último levantamento realizado pelos Trabalhadores Del Arte, passa de cem “trovoas” – como se chamam as integrantes do coletivo, espalhadas nas cinco regiões do Brasil. O coletivo é um movimento e articulação nacional de artistas, curadores e artes educadoras racializadas não brancas.

Nesses cinco anos de atuação, o grupo vem conquistando os espaços que reivindica desde sua formação inicial. As artistas olham para o mercado artístico e entendem que ele é, ainda, assimétrico. Apesar de existirem incontáveis artistas negras e indígenas atuando, suas produções enfrentam dificuldades para circularem em feiras de arte, em exposições. A força das Trovoas é, justamente, esta: unir-se para estarem presente, mostrarem a diversidade de suas produções não hegemônicas, discutirem temas importantes para a sobrevivência no mercado e serem um espaço de acolhimento para novas artistas.

“O Trovoa é um coletivo com artistas bastante jovens e artistas mais experientes, com muita formação. Essa diversidade também cria uma situação de ensino-aprendizado fluido, não formal. Vamos trocando algumas coisas desse contexto da produção profissional, do mercado, como fazer um certificado, como escrever um edital”, explica Bárbara Milano, artista visual e integrante do coletivo desde 2020. “E não é à toa que em vários editais importantes, sempre tem mais de uma Trovoa selecionada. Porque somos um polo de compartilhamento de conhecimentos dentro desse assunto que é a produção nas artes.”

A articulação rompe com os caminhos silenciosos da arte que sempre privilegiam os mesmos trabalhos e artistas brancos ao longo da história. A própria lógica dos editais, principal fomento para as produções, é tirada do lugar apenas de competição, característica do universo das artes, para ser uma oportunidade de troca entre as integrantes.

Em 2020, o Trovoa participou da SP-Arte, uma das maiores feiras de comercialização de arte do país, pela primeira vez. Em 2022, já na edição presencial, o coletivo teve seu próprio estande no evento. “A participação do Trovoa em feiras, como a SP-Arte e Arpa, que são espaços do mercado, diz respeito à tentativa de rasgar aquilo que não permitia que estivéssemos ali. Cada vez mais, ocupar esses lugares institucionais,  mostrando as especificidades que a gente traz, enquanto indivíduos, dentro de uma coletividade”. Bárbara entende que a própria existência do Trovoa atua de forma semelhante a uma política afirmativa, no sentido de “não há a possibilidade de acontecer sem nós, sem nossas presenças.”

A arte como um futuro possível

Ser artista é uma escolha de risco. E, nem sempre, uma opção óbvia. Nascido em Belém, no Pará, Maurício Igor foi conhecer o circuito cultural da cidade só depois que entrou no curso de artes visuais da UFPA. Antes disso, estudava administração, um curso com o qual não se identificava e que resolveu deixar dois anos depois.

“Foi um período bem difícil na minha família, porque não recebi apoio de ninguém. Não venho de uma família de artistas. Quando entrei na faculdade de artes visuais, nem sabia o que era um artista visual. E  não tenho vergonha de falar isso porque, na minha cidade, fui entender que existia um circuito de museus artísticos quando já estava na faculdade. Antes disso, era distante de mim. Minha família não me levava, ou mesmo minha escola. Eu realmente não sabia que existia”, diz.

No segundo semestre em artes, Maurício começou seu primeiro estágio remunerado, que mudou o rumo de todos os caminhos. Foi selecionado para ser assistente artístico e mediador da exposição Não-Dito, da artista pernambucana Ana Lira. Nesse momento, ele percebeu que poderia ser artista. “Foi uma experiência muito forte. Foi quando parei para pensar que podia ser um artista. Mesmo já na faculdade, eu não me via enquanto artista. Pensava que eu seria um educador, que trabalharia com mediação, mas não me via enquanto artista visual – ainda que já fizesse minhas coisas”, lembra.

Mudou tudo porque Maurício viu, a partir do trabalho de Ana Lira, que a “Arte” – essa maiúscula – não era um lugar distante. Percebeu que a arte poderia ser próxima da vida e que ele, por sua vez, poderia produzir trabalhos que falassem sobre sua experiência no mundo. “A Ana é uma artista que trabalha muito com questões sociais. Para mim, vivendo uma construção, vendo ela ali, propondo tudo, foi importante também. Me ajudou até a construir minha própria autoestima enquanto artista.”

Durante o estágio, Maurício e os outros estudantes tiveram autonomia para propor ações educativas. Ele propôs a construção de novas bandeiras do Brasil para as crianças que visitavam o espaço. “Elas colocaram açaí, rio, barco na bandeira do Brasil delas. Nessas pequenas coisas, vi que a arte é vida, que não são coisas separadas.”

Maurício e Ana Lira voltaram a se encontrar dois anos depois. Em 2018, compartilharam a mesma exposição, durante o “Diário Contemporâneo de Fotografia”. Dessa vez, Maurício era artista selecionado, assim como a artista que tanto lhe inspirou. Ele exibia pela primeira vez seu trabalho “Ô lugarzinho pra ter viado”, uma série de fotografias realizada em banheiros masculino, refletindo sobre a homoafetividade. Hoje, ele já exibiu seu trabalho em festivais de Minas Gerais, Goiás e também de Portugal. 

A ideia de que apenas alguns podem ser artistas era perpetuada pelas próprias universidades – e, para algumas, continua sendo. Maurício, quando trocou de curso, precisou fazer a prova específica de habilidades, em que era necessário dominar técnicas do desenho e da pintura para poder ingressar no curso.

Zélia Amador também protagonizou esta luta na UFPA: a queda da prova específica. O ingresso deveria ser democrático em todas as vias, não só nos concursos gerais. “Lutei durante anos. Eu e uma outra professora, Ana Delgado, passamos anos lutando para tirar a prova específica. Aos poucos, a gente foi ganhando parceiros e parceiras.” Em 2019, conseguiram acabar com a prova para o curso de artes visuais. Aos poucos, todos os cursos foram deixando e, somente neste ano, a dança deixou de ter. Universidades como a UFRGS, a USP e Unicamp seguem esse processo de seleção, mesmo após as políticas de cotas raciais, para cursos de artes (visuais, cênicas, música, dança, audiovisual etc.). 

“A prova específica é uma forma de elitizar, por isso sempre fui contra ela”, explica Zélia. “Hoje você tem outros recursos importantíssimos. Eu não posso pensar em artes visuais só em desenho e pintura. Isso era lá atrás, no passado. Hoje é um leque amplo, em que você pode até nem saber desenhar, e dar conta, através da tecnologia, de fazer projetos de artes visuais fantásticos.”

“Isso dizia quem poderia ser artista. Era antinatural, elitista e, inclusive demonstrava que a universidade era incapaz de receber qualquer pessoa e despertar nela um interesse para esta ou para aquela arte. Que bom que acabou de vez esse empecilho a mais para as pessoas entrarem na universidade”, celebra.

Lento avanço quantitativo

A permanência da prova específica na maioria das universidades pode ser uma pista para explicar o número de alunos oriundos de cotas raciais que já se formaram em universidades. Via Lei de Acesso à Informação, o Nonada requisitou ao Ministério da Educação dados sobre o total de alunos cotistas formados em cursos relativos ao setor artístico após a implementação das políticas de ações afirmativas. A resposta do órgão responsável foi que esse dado é atualmente inexistente.

Contatamos, então, cinco universidades, de diferentes regiões, para questionar se as instituições têm esses registros. Das cinco contatadas, apenas a Universidade Federal da Bahia (UFBA) não respondeu. Todas as universidades contatadas oferecem programas específicos de auxílios financeiros para cotistas, como auxílio moradia, bolsas e o auxílio financeiro. Perguntamos também se, nos cursos de artes visuais, cênicas, audiovisual, música e cursos correlatos há projetos de pesquisa ou extensão voltados para alunos cotistas. As bolsas, em todas, costumam ter uma porcentagens direcionadas a esses ingressos, mas não há programas artísticos ou culturais específicos.

O maior número de cotistas formados em cursos de artes foi dado pela UFPA. Dos estudantes que ingressaram no período de 2010 a 2022, foram titulados no total 203 estudantes dos cursos de graduação em Artes Visuais, Cinema e Audiovisual, Dança, Museologia, Música, Produção Multimídia e Teatro. Na Universidade, a cota racial é a mesma para negros (pretos e pardos) e indígenas, contudo o processo de habilitação, após a classificação na vaga, difere um pouco. No caso de estudantes autodeclarados(as) pessoas negras, há uma avaliação por uma Banca de Heteroidentificação.

Cotas raciais na USP

A Universidade de São Paulo (USP), que só adotou um sistema de cotas raciais na graduação a partir de 2018, tem apenas dois estudantes, ambos do curso de Audiovisual. De 2018 a 2021, 1.409 estudantes completaram seus cursos de graduação na ECA, dos quais 704 ingressaram na USP nas modalidades “EP – Escola Pública” e “PPI – Pretos, Pardos e Indígenas”. “Já que a adoção do sistema de cotas raciais na USP ainda é muito recente, a expectativa é que esse número cresça nos próximos anos. Observa-se um crescimento gradual desses números a cada ano – salvo 2021, devido à pandemia do novo coronavírus, quando o total de estudantes formados teve ligeira queda – tendência que deve ser mantida nos próximos anos”, explica a universidade.

A Universidade Federal Fluminense (UFF) respondeu que no curso de Cinema e Audiovisual – Bacharelado e Licenciatura, houve 20 alunos contemplados com cotas raciais formados até hoje.  Os outros cursos do departamento de Artes não retornaram.

A UFRGS informou que os egressos de cotas raciais dos cursos foram os seguintes: Artes Visuais: 8; Música: 18; Dança: 6; Artes Cênicas: 15. Estão contemplados nesses totais todos os formados a partir do ingresso em 2008 (primeiro ingresso de cotistas na UFRGS) até 2021/1 (último semestre concluído na Universidade).

Depois da entrada

“Minha entrada na universidade foi assim: um monte de documentos, poucos amigos cotistas e professores racistas”, conta Mayara Velozo, artista visual e graduanda em História da Arte pela UERJ. A instituição é pioneira na adoção da política de cotas, tendo começado a reserva de vagas antes da Lei, no vestibular de 2003. “Mas estar na universidade foi um divisor de águas. Foi também um lugar em que eu me entendi muito mais enquanto uma pessoa racializada. Entendi mais sobre a política de cotas. No âmbito pessoal, consegui me reconhecer com uma pessoa que tem um recorte social e racial diferente da maioria das pessoas no campo acadêmico”, conta a estudante.

Mayara nasceu na Comunidade do Salgueiro, no Rio de Janeiro. Entrou na universidade através da política de cotas raciais e do ENEM. Quando saiu da escola e começou o curso pré-vestibular, não ouvia falar muito sobre as ações afirmativas, não sabia que podia se candidatar. Soube através de uma amiga de sua tia, depois de dois anos prestando o concurso. “É isso, sou racializada, sou uma mulher negra, moro ainda em uma favela. Na época eu não entendia muito os meus direitos diante disso. Quando passei, fiquei: ‘Nossa, que bom, acabaram os meus problemas’. Mas não. Foi-me instruído fazer um dossiê de documentos que comprovassem a minha situação social”, conta.

Os documentos pediam comprovações, inclusive de uma casa que Mayara não morava mais, por conta da separação dos pais. O prazo era curto, para um dossiê enorme. “Eu já encontrei uma grande dificuldade para entender toda essa questão burocrática”, relata. Os entraves com a burocracia, após a entrada de cotistas, também são uma situação em outras universidades, como a UFRGS. Alunos passam semestres, às vezes anos, na espera de aprovações, na condição de “matrícula provisória”. 

Para Mayara, as dificuldades depois da entrada causaram muito desgaste. Existe um medo do desligamento que atravessa os estudantes, já que nem sempre é possível reunir todos os documentos para comprovação de renda. “Eu moro em comunidade. Morávamos na casa, eu, meu pai e minha mãe. E bem no meio da separação, a universidade pediu a planta da casa. Sendo que casa na comunidade não precisa de planta”, questiona. “Eu sempre tinha que fazer uma carta escrita a punho explicando por que eu não tinha aquele documento. Foi bem difícil lidar com isso tudo”, lembra.

O percurso acadêmico, durante os anos de graduação, também é diferente para quem precisa conciliar trabalho e faculdade. Mayara se sentia atrasada na graduação, por não ter completado nos quatro anos, mas percebeu que, desde sua entrada, não vivia a mesma realidade de quem entra por ampla concorrência. “Eu compreendo que minha passagem na universidade sempre foi diferenciada. A maioria dos meus colegas cotistas atrasaram a graduação. Posso até arriscar dizer que todos meus amigos cotistas, mesmo com a política de cotas, se atrasaram no curso”.

Além do aspecto mais acadêmico, de ensino e aprendizagem, a universidade aparece para os estudantes como um espaço de afirmação e reconhecimento. A questão racial sempre foi complexa para Maurício. Desde criança, sabia que não era uma criança branca, mas também não sabia que era uma criança negra. “Eu usava a palavra pardo, porque essas questões não eram tão debatidas na época da minha infância”, conta. 

Quando entra no curso de artes visuais, passa a viver esse reconhecimento de forma mais profunda. Ele foi aluno de Zélia Amador, que, segundo ele, marca a vida dos alunos por ativamente trazer para sala de aula debates importantes sobre questões raciais. “Venho a me reconhecer e, principalmente, me afirmar, enquanto uma pessoa negra, a partir da faculdade. Essa afirmação, vem a partir dos outros também. Eu via alunos negros na universidade e isso era muito importante para mim. Via Thaís Sombra [artista], com seus black lindos coloridos, e eu sabia que meu cabelo também era assim. Em administração, eu lembro que nunca deixei meu cabelo crescer”, conta.

“Uma autoestima é criada durante a faculdade. Eu não entrei pelo sistema de cotas na UFPA, mas essa presença de alunos negros, muitos a partir das ações afirmativas, foram determinantes para mim”, finaliza.

Instituições são mesmo diversas?

Que as universidades estão se tornando, progressivamente, espaços mais diversos e menos elitizados, isso já é dado e, cada vez mais, tema de pesquisa. Mas quem se forma em cursos de artes e adentra o mercado e o circuito, encontra qual cenário? A curadora Luciara Ribeiro dedica-se à pesquisa sobre a estrutura do sistema das artes.

Para ela, é importante celebrar as conquistas das últimas décadas, quando, por exemplo, tratando-se de museus e instituições culturais, vemos grandes e importantes exposições afro-centradas, realizadas por artistas e curadores negros e negras. Mas, para além de ser tema, ser o “sobre”, ou, então, de momentos de visibilidade momentâneos, a educadora aponta para a necessidade de uma mudança estrutural das instituições, em suas equipes e formas de trabalho. “Não é diversidade ter uma ou duas pessoas negras em uma equipe de 40 pessoas brancas”, diz.

Para além da entrada, que vem acontecendo também a partir da saída de profissionais da universidade, questionar os modos de trabalho e ética do mercado, que ao mesmo tempo em que recebem pessoas negras e indígenas, é também muito violento na prática.

“O impacto das cotas na vida das pessoas acontece em uma dimensão grande, expandida. Influencia não só na minha vida, mas na da minha família, na vida de alguém que encontro na rua. Quando a gente olha para o sistema das artes, o impacto ocorre de muitas maneiras. Não só na presença, no fato de ter profissionais negros. Quando acontece nossa entrada em um sistema que está acostumado a trabalhar com o mínimo de presença – ou nada, ou nenhuma – isso gera um conflito do modo como o sistema opera”, aponta Luciara.

Existe uma distância entre o discurso sobre “diversidade” e o cotidiano de trabalho das instituições de arte. Em artigo escrito para a “Select” em 2020, Luciara defende a importância de uma política de cotas raciais também para atuações profissionais. No texto, ressalta que os discursos sobre diversidade e antirracismo são sustentados pelas instituições, até o momento em que uma crise, como as demissões em massa durante a pandemia, afetam principalmente os trabalhadores negros dentro das artes.

Dois anos depois, a pesquisadora ainda visualiza que ações afirmativas podem ser importantes em processos seletivos dentro do mercado artístico. “As cotas tinham que estar em todas as equipes e setores, porque só esperar que nosso esforço e profissionalização nos faça chegar até uma diretoria é muito peso”, questiona. “O estado tem que garantir – e não estou dizendo que alguém vai chegar em uma diretoria sem competência – equidade e meios que realmente façam reparação nesses lugares. Queremos estar em coordenações”, defende a pesquisadora.

Para se atingir uma diversidade efetiva, é preciso sair do mínimo. Para ser diverso, explica, é necessário ter uma porcentagem alta. A pesquisadora percebe uma terceirização das mudanças, uma cobrança para que a dita “diversidade” venha com um único corpo, uma única pessoa ocupando um lugar de trabalho e que isso tenha que contemplar tudo.

Luciara coordena, junto à Rede de Pesquisa e Formação em Curadoria de Exposição e ao Projeto Afro, uma pesquisa que mapeia curadores afro-indígenas no território nacional. Iniciada em setembro de 2019, já conta com cerca de 76 nomes de curadores negros/negras e 20 indígenas. Dos quais a  maioria é feminina, atua na região sudeste e de maneira autônoma/independente.

O levantamento contribui, segunda ela, para desmontar qualquer resquício da fala que se ouvia muito, principalmente antes das ações afirmativas nas universidades, de que não há profissionais. Há profissionais, e todo mundo sabe. Mas a pesquisadora afirma: “Agora estamos em outro ponto, que é como esses profissionais vão lidar com as violências institucionais?”.

“Acho que estamos em um ponto crucial, que é dar um passo à frente. Já não dá mais só para falar da entrada, como quando começou a política de cotas. Era nossa entrada em um sistema, tanto educacional, quanto profissional. Porque estão atrelados. A formação acadêmica está atrelada a formação profissional. Mas agora é a mudança estrutural, do modo de trabalho e funcionamento desse sistema que está em pauta. Como sobreviver no sistema das artes e da cultura? O que o sistema das artes tem feito para garantir a sobrevivência? Eu diria que muito pouco.”

O que Luciara traz é o que vivem, na prática, artistas em diferentes partes do país. Mayara Velozo, no Rio de Janeiro, apesar de fazer parte de coletivos, e estar em diálogo com pares que olham para o sistema de forma crítica, ainda sente dificuldade em lidar com as instituições.

“Há esse lugar velado que nos impõe praticar linguagens ainda muito diferentes da nossa realidade. Acho que a linguagem da arte contemporânea ela ainda é muito excludente”, diz a artista. “Não é uma mudança que dá para fazer de um dia para outro, mas ainda assim, trabalhar para e com instituições que não estão preparadas ainda é uma problemática, porque daí a gente lida com estruturas. É difícil encontrar pessoas que realmente ouvem e que são flexíveis”, relata.

O Nonada entrou em contato com algumas das principais instituições culturais do país para entender se políticas afirmativas já estão acontecendo dentro de seus processos de seleção. Apenas duas responderam. Desde 2021, o Instituto Moreira Salles implementa medidas afirmativas nos seus processos de recrutamento e seleção, em que são priorizadas candidaturas de pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+. O Museu do Amanhã, em resposta ao Nonada, relata que adota ações afirmativas desde 2017.

De olho na continuidade

“A revisão não é uma extinção”, afirma Zélia sobre o processo que deve acontecer em agosto de 2022. “A Lei 12.711 continua. Revisar está previsto em qualquer política pública para que a gente acompanhe se está dando certo, se você precisa de correção de rotas. Não implica em acabar o projeto.”

Para a professora, as ações afirmativas ensinam para a sociedade. No caso da UFPA, além da entrada de estudantes negros e indígenas, a possibilidade de refugiados, ribeirinhos, lavradores, pescadores entrarem na universidade também causa transformação – dentro e fora das salas de aula. A instituição, de acordo com Zélia, está cumprindo com uma responsabilidade histórica, à medida que leva para a academia grupos que estão fora por um processo injusto que os levou à desigualdade.

Ao mesmo tempo em que se celebra, também se questiona a perenidade e a própria sobrevivência no mercado de trabalho, após a saída da universidade, dos profissionais que se formam e que encontram um cenário precário, de escassez de recursos, editais e investimentos públicos. “É duro demais ver as coisas deixando de acontecer para a gente ou acontecendo eventualmente, como a exposição agora no MARGS, ou o Verafro, ou o espetáculo ‘A Última Negra’ que dirigi no ano passado, e não acontecendo para um monte de gente”, relata Silvana. “Quando eu falo de longevidade de artistas negros, estou falando de algo prático, visível.”

“Com meus 30 e poucos anos, vejo que à medida que chegamos mais perto dos 40 anos, sumimos da cena. A cena é jovem – e não só por preconceitos etários, mas porque a cada ano fica mais difícil a gente justificar para a gente mesmo que não saberemos como pagar as contas no mês seguinte”, aponta a artista.

Para quem decide seguir a carreira acadêmica, como Maurício, os desafios de permanência também passam por dificuldades socioeconômicas. Apesar de ter entrado pelo sistema de cotas raciais da UDESC, na categoria destinada a estudantes do norte e do nordeste, teve dificuldade em acessar a bolsa disponível para o mestrado. Como acontece em outros programas de pós-graduação, a prioridade para bolsa não é do cotista, e segue uma lógica interna das linhas do programa – privilegiando, muitas vezes, estudantes que não estão em situações de vulnerabilidade econômica. Maurício passou em primeiro lugar de todo programa, ainda assim, não foi contemplado. “É importante pensar critérios de distribuição dessas bolsas. Foi uma questão muito forte para mim. Na UDESC, passei com a maior nota de todo programa, e não recebi prioridade para bolsa. Não tem como não priorizar cotistas no recebimento das bolsas, que é quem mais precisa”, pontua.

O impacto das políticas de ações afirmativas pode ser quantificado em números, olhando para a maior participação de pessoas negras e indígenas em cursos na universidade, mas também em trajetórias individuais. Cada história é uma, mesmo que as formas de entrada sejam semelhantes. “Penso que as cotas foram superdecisivas para eu chegar aqui neste lugar. Neste ponto onde sou uma diretora teatral formada pela UFRGS, uma pessoa que, mesmo sem dinheiro no banco e sem parentes importantes, conseguiu se tornar artista e falar disso no jornal – algo que lá na minha infância na lomba do pinheiro eu sonhava mas não sabia se ia acontecer”, conta Silvana.

Um dos desdobramentos mais recentes das cotas raciais é o aumento gradual, embora lento, de docentes negros nas universidade. A equidade racial para professores universitários ainda é uma realidade distante. Estima-se que a presença de professores negros (pretos e pardos) nas universidades aumentou de 13,2% em 2012 para 16,2% em 2019, segundo o Estadão, que tabulou dados do Censo da Educação Superior de 2019, os últimos divulgados pelo Ministério da Educação. Segundo o levantamento, menos de 3% das instituições de ensino superior brasileiras têm número de professores negros que coincide com a distribuição racial da região onde está.  O sul do país lidera os piores índices do país.

Essa realidade é percebida por quem ingressa tanto na graduação, quanto na pós-graduação. Quando estava buscando uma universidade para submeter o projeto de mestrado, Maurício encontrou orientadoras negras no PPGS de artes em apenas duas instituições federais. As cotas raciais operam, desde sua criação, também em um projeto de futuro. Os resultados dos dez anos são visíveis e a urgência de sua continuidade e ampliação também. “Quem dá aula e quem orienta na pós graduação ainda é a branquitude. O que, para mim, demonstra a necessidade das cotas. Elas não só para agora, pensam no futuro. Para que o graduando possa entrar no mestrado, no doutorado, e depois estar dando aula – o que é muito urgente”, enfatiza o artista.

Faz só dois meses que Maurício chegou ao sul do país. Durante uma das primeiras aulas de seu estágio docente, um estudante negro da turma perguntou se ele gostaria de fazer parte de um grupo de aquilobamento da universidade. Em um cenário em que o corpo docente ainda é inteiramente branco o acolhimento é decisivo para a permanência, tanto para quem está na frente da sala de aula, quanto para quem está dentro dela. “Eu achei um acolhimento muito significativo, em ele me olhar e me convidar. O convite é uma forma de acolher. Eu vejo a necessidade das cotas nesse sentido, de olhar para esse lugar e dizer: aqui também me pertence.”

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