Percepções moldam a realidade. Nossa mente define o quanto conseguimos experimentar, entender e imaginar. Daí a impossibilidade de estabelecer um sentido absoluto para o vasto universo que nos cerca. A subjetividade faz parte da natureza humana. Aquilo que é apresentado diante dos nossos olhos pode ser interpretado de infinitas formas. Depende do cérebro que processa a informação.
O poeta português José Luís Peixoto escreveu que o poema não tem mais que o som do seu sentido. De que importa a forma? A palavra poema não começa com a letra P. Justamente porque não é uma palavra. O poema é qualquer coisa que nos faça sentir. As lembranças de uma manhã distante de domingo, um beijo, uma angústia, uma incerteza. Sem um sentido, não há ânimo para levantar da cama. Sem ele, nada muda.
Talvez seja este o maior fardo da depressão: a incapacidade de atribuir sentidos. De ler o poema que é a vida. O resultado é o caminhar certeiro rumo à escuridão. Há quem se encha de forças só de ver as cores de uma flor qualquer no jardim. Também há quem sequer abra a janela. A diferença é perceptiva.
De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), a depressão acomete, hoje, aproximadamente 322 milhões de pessoas em todo o mundo – com crescimento de 18,4% só nos últimos 10 anos. No Brasil, 12 milhões sofrem com a doença. O número corresponde a assombrosos 5,8% da população e ultrapassa a taxa global em 1,4%, o que é bem significativo. Estamos no país mais depressivo da América Latina.
Por muito tempo, Alexandre Ferraro, 24 anos, fez parte destas estatísticas. Passou pelo momento mais complicado da vida aos 20. Além de cultivar uma depressão desde cedo, acabou se envolvendo com todo tipo de drogas a partir da adolescência – fator que potencializou a situação e, alguns anos mais tarde, o deixou quase que sem saída. Como em tantos outros casos, a âncora foi a cocaína.
Alexandre nasceu na cidade de Anápolis, interior de Goiás, e ainda criança se mudou para Curitiba com a família. O ambiente de casa sempre foi de abertura espiritual. O pai, Henrique, é psicólogo. Deu total liberdade ao casal de filhos para que construíssem um modo de pensar baseado nas experiências de cada um. Nunca manifestou uma religião que precisasse imperar no meio familiar como uma herança inescapável. Tereza, a mãe, também compartilha da filosofia. É espírita kardecista, mas não obrigou ou incentivou os filhos a professarem a mesma fé. O pensamento dos pais foi refletido na educação formal das crianças, que concluíram o Ensino Fundamental e Médio em colégios não religiosos – fossem eles públicos ou particulares.
“Tive uma abertura para decidir os meus papéis e escolher os meus caminhos”, conta Alexandre, relembrando aspectos de uma infância que também teve o seu lado negativo. Olhando para trás, ele tenta buscar elementos que pudessem explicar o desenvolvimento de uma depressão que, enrustida, o acompanhou desde os primeiros estágios de formação individual. Recobra pelo menos dois: a questão da sua bissexualidade, mesmo que bem aceita pela família, e o convívio com a dislexia e com o déficit de atenção. Por conta disso, teve grande dificuldade de aprendizado no período escolar. São componentes importantes, mas provavelmente insuficientes para explicar, sozinhos, a origem da doença. Os demais fatores podem ser tantos que o próprio Alexandre, anos depois, diz não ter condições de saber a medida certa de todos eles.
Se faltava concentração para os assuntos da escola, sobrava interesse pelo que aprendia fora dela. O modo como foi criado abriu caminho para o contato com outras culturas e crenças. Aproveitou a autonomia da melhor maneira que pôde. No ápice da adolescência, se aproximou de grupos ligados ao movimento rastafári, do reggae, e conheceu de perto a espiritualidade de grupos da cultura andina. Participava regularmente das rodas de rezo e começou a meditar. Foi quando descobriu o poder do autoconhecimento. “Era a época dos meus 15 anos”, recorda. “Eu era uma pessoa bem ingênua ainda.”
Outra importante influência durante o período foi a irmã, Juliana. Ela, que é quase 10 anos mais velha, conheceu o xamanismo enquanto frequentava comunidades indígenas para fazer serviços sociais e atividades de permacultura. Cada vez mais envolvida, levou, aos poucos, o conhecimento nativo para dentro de casa. Mais adiante, por meio de um professor de yoga, soube da existência da ayahuasca. A primeira cerimônia com a medicina foi no Instituto Ayahuasca, um grupo gnóstico que estuda e investiga a espiritualidade das mais diversas culturas mundo afora – como a indiana, a egípcia, a oriental e a xamânica. Desconhecia os possíveis efeitos da bebida e não tinha certeza alguma do que aconteceria naquela noite.
Mesmo assim, teve uma experiência maravilhosa. “Tudo que eu aprendi fez muito sentido naquele dia”, diz. A impressão foi da mais pura por alguns motivos: sentia-se preparada, tinha um objetivo bastante concreto – de explorar o seu interior e se abrir a novas possibilidades –, e contava com uma espiritualidade já bem madura.
Encantada, frequentou o Instituto pelos dois anos seguintes. O processo de transformação pessoal foi tão marcante que não conseguiu esconder as atividades dos pais. No início, tinha medo de que tomassem a medicina por uma droga qualquer. Conseguiu a aprovação depois de insistentemente explicar os benefícios por um lado mais racional e científico. A mudança em si era prova irrefutável – e a família toda, com o tempo, não pôde deixar de perceber. “Eu voltava de lá emocionada, com amor irradiando de mim”, garante. “Sabiam que eu estava fazendo algo bom. Fui me tornando uma pessoa cada vez melhor no relacionamento com eles e com outras pessoas.”
Já com certa dimensão do assunto, Alexandre não demorou a seguir pelas mesmas veredas. Aos 16, acompanhado da irmã, participou do seu primeiro ritual. Juliana sugeriu outro espaço holístico que havia conhecido: o Instituto Luz da Consciência, localizado na Região Metropolitana de Curitiba e voltado para atividades terapêuticas e de autoconhecimento. O grupo encara o estágio preparatório para a ayahuasca com muita responsabilidade. Alexandre precisou de duas semanas de aula para ter acesso à cerimônia, especialmente por ser jovem e iniciante. Tudo para que pudesse compreender o contexto e a importância sagrada do que estava prestes a fazer.
Dos trabalhos com a Medicina, lembra-se de poucos detalhes. Considera que a vivência, normalmente associada à figura fundamental do rito de passagem, causou um impacto bastante modesto. Teve a sua relevância, mas passou longe de significar uma alteração drástica no modo de viver ou de pensar. Coube a ela o papel de introdução a uma nova base de conhecimentos. “Eu não estava tão pronto para aquilo. Não estava procurando mudança”, esclarece. Ainda assim, teve algumas mirações. Leves, mas suficientes para mostrá-lo que o nosso corpo é muito mais forte do que parece.
Nunca imaginou que pudesse se concentrar e ficar em silêncio durante horas com tanta facilidade. No êxtase, não havia déficit de atenção. Apenas a calmaria intocada pelos problemas de fora. O processo na chácara do Instituto não foi a primeira experiência de Alexandre com psicoativos. Tampouco a última. Fumava maconha desde os 15. Aos 17, cerca de um ano depois de experimentar ayahuasca, começou a se envolver com outras substâncias que também provocam estados elevados de alteração da consciência – caso do LSD e do ecstasy. Consumir drogas virou sinônimo das baladas e festivais de música eletrônica que frequentou regularmente até os 19. Tinha a companhia de um grupo de amigos e a necessidade, talvez irrefletida, de continuar explorando o corpo e a mente a fim de escapar da impiedosa realidade.
Naturalmente teve as primeiras ligações com a cocaína, o que ainda estava longe de representar um verdadeiro tormento. Pode-se dizer que estava viciado na experiência psicodélica, não exatamente nas drogas. Tirar a cabeça do lugar comum parecia uma maneira de expandir os horizontes e se conhecer cada vez mais e melhor. Tudo isso tinha um quê de espiritualidade, mesmo que nada sagrada. Um recurso que deslocava a importância do aspecto material e apontava a lanterna para campos pouco explorados da imaginação.
O envolvimento com psicoativos nunca passou totalmente despercebido pelos pais, que aos poucos descobriram sobre a maconha e os sintéticos. O autocontrole que o filho sempre demonstrava, entretanto, não permitia que tivessem uma noção precisa das proporções que todo aquele estilo de vida poderia tomar. Havia outros componentes em jogo que o próprio Alexandre pouco considerava. “Eu passava uma sensação de calma e de que eu sabia muito bem o que estava fazendo”, conta. “Às vezes era para esconder, porque depressão a gente só mostra quando quer pedir ajuda.”
Adquiriu a impulsiva habilidade de ser um ótimo ator dele mesmo – de modo que, para os outros, distinguir essência e máscara era tarefa impraticável. Há uma linha entre o prazer e o suplício que a instabilidade mental torna bastante sutil. Céu e inferno, sonho e pesadelo, separados por um pequeno passo. É complicado mensurar o estrago que o desequilíbrio emocional pode causar durante e depois de uma experiência psicodélica aleatória. É o elemento que torna os limites quase invisíveis, e que, aliado à rotina de depressão e drogas, tornou a vida de Alexandre uma sucessão de aflições e torturas.
Não podia imaginar, inclusive, que o declínio começaria justamente onde menos se espera: no amor, ou pelo menos naquilo que um dia se pareceu com o amor. Dos 18 para os 19 anos, se apaixonou por um rapaz e iniciou o relacionamento mais longo que já teve. Só tinha experimentado algo de semelhante intensidade com uma menina, anos antes – uma relação que lhe rendeu bons aprendizados e que guarda até hoje com enorme carinho. O namoro mais recente, pelo contrário, figura no espectro das coisas que desejamos esquecer para sempre e que as particularidades da memória fazem questão de nunca permitir.
Três anos depois, com a clareza que apenas o distanciamento havia de trazer, reconhece que foi vítima de um relacionamento abusivo. “A gente brigava muito. Tudo o que eu não gostava em mim eu achei nele”, recorda. As manipulações e a agressividade do companheiro logo se transformaram num martírio sem fim. Por cerca de dois anos, Alexandre passou por incontáveis situações de humilhação. Sofreu abusos sexuais e teve a própria casa invadida duas vezes. Pertences como roupas, celular e notebook foram escondidos ou quebrados como parte de discussões ou chantagens emocionais que pareciam incontornáveis.
As drogas passaram a tomar conta da vida dos dois. Os dias de festas e baladas raramente terminavam sem brigas pesadas. Agressões físicas e psicológicas, de ambos os lados, aconteciam quase todas as noites. Um círculo vicioso que lhe minou toda a estrutura sentimental. Depois de muito refletir, continua sem entender direito como não pôde terminar aquilo mais cedo. A única explicação plausível que encontrou foi a de estar procurando se autodestruir, mesmo que de forma inconsciente.
Provavelmente uma injustiça. Além de enfrentar um relacionamento abusivo – e os seus artifícios de difícil identificação –, precisava lidar com a depressão que, àquela altura, tinha tomado a forma de um autêntico colosso.
O pior é que só se deu conta disso quando finalmente juntou a coragem necessária e terminou com o namorado. O que deveria dar paz trouxe o vazio absoluto. Percebeu que havia perdido a rotina dos últimos dois anos e não tinha ao alcance das ideias uma única perspectiva de futuro. Passou a conviver com a inquietante sensação de estar à deriva no oceano da solidão – um exílio, sobretudo, interior. Perdeu o resto de controle que tinha sobre a cocaína e buscou refúgio na companhia dos amigos, também usuários. O cenário de melancolia se agravou, mas ao menos tinha com quem compartilhar o desalento e os recorrentes instantes longe da sobriedade. “Foram eles que me mantiveram vivo, por mais que como um zumbi”, revela, no jeito delicado e afável que as tempestades do passado não foram capazes de mudar.
Sem estudar ou trabalhar formalmente desde o Ensino Médio, tirava dinheiro apenas com negócios avulsos que fazia como tatuador. Desenhar e pintar eram a maior paixão, e nunca teve vontade de se aprofundar em outro ramo. Jamais considerou uma faculdade ou teve como objetivos de vida o diploma e o status social que a maioria dos pais deseja para os filhos. Não foi pressionado, é verdade, a correr atrás do que possivelmente o faria mais infeliz do que realizado. Fato é que, deixando de lado quaisquer conjecturas, encontrava-se agora no centro da areia movediça – sem ambições e cego pela nebulosidade dos pensamentos. Chegava a passar dias fora de casa, sem dar satisfações ou o mínimo sinal de preocupação com a própria saúde.
“Chegou num ponto em que eu já tinha abandonado o meu corpo”, ressalta. Sequer tinha condições de raciocinar sobre o real impacto da cocaína. Diz que era mais simples adequá-la à sua situação de vulnerabilidade e ignorar os malefícios. “Você para de achar que aquilo é errado. Não queria pesar minha consciência no que eu estava fazendo.” A conta por tanta apatia não tardou a chegar. Tentou suicídio algumas vezes por diversas formas: cortes, remédios e até overdoses forçadas. Por sorte ou graças à última gota de juízo que tinha na cabeça, falhou. Sabe-se lá como, conseguiu esconder todas as tentativas – com apenas uma exceção. Numa noite quase trágica, foi interrompido pelo pai, que, desconfiado, arrombou a porta do banheiro e o impediu de se cortar. O episódio foi decisivo para o ultimato vindo da família. Precisou escolher entre a clínica de reabilitação e a rua. Alternativas cruéis, sim, mas consequentes da falta de opções e de esperança que consumia ambos os pais.
Tereza Ferraro, 54 anos, é uma mulher de tenacidade ímpar. Parece não ter se desgastado nada com a luta diária de pelo menos quatro anos tentando compreender e ajudar o filho mais novo. Além de ser gastrônoma de formação, atua também como médium. Talvez venha daí tamanha serenidade. “Ele estava tão misturado com as sombras, tão transformado pelos medos e pela ansiedade, que já não era mais o Alexandre”, assegura, resgatando lembranças da época em que conviveu de perto com a possibilidade de perdê-lo. O sofrimento que a circunstância impunha obrigou Tereza a recorrer mais vezes à ayahuasca. Confrontava-se ocasionalmente com os encantos da medicina desde que testemunhou a evolução espiritual de Juliana, tempos antes. Carecia da cura e do equilíbrio que só dela poderia vir. Precisava garantir que estaria mentalmente bem para auxiliar nos processos obscuros do filho. Em segundo plano, tinha que estar preparada para continuar caso ele optasse pelo pior. Foi uma espécie de alívio quando Alexandre escolheu o duro caminho das privações e do tratamento.
Os primeiros indícios de mudança já eram motivos óbvios de felicidade. Ter tomado a decisão não significa exatamente que tinha vontade de se internar. “Eu não queria ir”, conta. “Queria parar de usar cocaína, que foi o que me levou para o fundo do poço, mas não a maconha e o cigarro. Não queria parar com mais nada.” O que não sabia é que o quadro de depressão e dependência química compreende uma série de elementos cotidianos que naturalizava desde os 15 anos e não tinha a intenção de abandonar. Além da impossibilidade de consumir qualquer droga, experimentou a abstinência da presença dos amigos e da desorganização à qual estava habituado. Para passar o tempo, desenhava. Era o que fazia quando não estava dopado pelos remédios – durante um mês, tomou de três a quatro injeções por dia. Só assim conseguia dormir. O choque foi imediato e deixou lições. “A clínica me mostrou que eu estava num ciclo destrutivo”, relata. “É muito difícil sair, mas dá. Eu tinha me levado até lá.” Por mais árduo que fosse, constatou em definitivo que a solução andava de mãos dadas com o enfrentamento.
Quando voltou para casa, ainda desnorteado, resolveu dar continuidade ao procedimento de recuperação. O local escolhido foi a Comunidade Terapêutica Missão Shalon, no município de Piraquara. Era a alternativa de melhor custo-benefício. Tereza admite que gostaria de ter confiado o filho aos cuidados do xamanismo, mas havia o impedimento financeiro de custear a longa estadia em aldeias indígenas fora do Estado. As investidas pontuais com as medicinas da floresta não tinham, até então, atingido o resultado esperado. Por iniciativa da mãe, participaram juntos de algumas cerimônias no Instituto Ayahuasca. Experiências e reflexões momentâneas que eventualmente desapareciam nas brumas do amanhã, incapazes de superar os efeitos do vício e do abatimento.
Na nova “prisão”, Alexandre teve que assimilar a rotina regrada na marra. Acordava às 7h todas as manhãs para ler a bíblia – um baita castigo até para os cristãos mais devotos. Ao longo do dia, era obrigado a assistir aulas e frequentar palestras. Conversava com psicólogos à noite. “Era muito chato. Foi horrível”, diz, sem desconsiderar os aspectos importantes. Aprendeu que disciplina é primordial para não perder o foco no dia a dia. Faz um justo paralelo com a meditação: “Você senta e se enfrenta, porque a tua mente não vai calar”. Restava, portanto, tomar as rédeas do próprio corpo ao invés de ser manipulado por ele. Naquele estágio de transição, o maior dos desafios.
Manter-se distante da cocaína foi uma provação. Além do pai, que é psicoterapeuta, teve acompanhamento de outros profissionais da psiquiatria e da psicologia. Tomava remédios controlados desde a primeira internação, e pensava estar condenado a eles para o resto da vida. Mas a depressão ainda era um problema a ser resolvido, e sustentar os hábitos recém-adquiridos era algo próximo do impossível. Voltou a sair com o mesmo grupo de amigos e cedeu à maconha e ao cigarro. Sentia que a crescente frustração podia levá-lo a qualquer momento de volta para o inevitável torpor.
Continuou, inclusive, realizando trabalhos com o xamanismo. Estava imerso na cultura nativa desde o início da juventude e tinha influências indiscutíveis na família. Não custava seguir tentando. Até foi ao Daime duas vezes. Queria desintoxicar o corpo, mas acabou não conseguindo devido a questões de acomodação e contexto. A religiosidade e as normas inflexíveis não eram para ele, e não pôde se entregar da maneira como deveria ou gostaria.
O ponto de virada foi quando conheceu, por meio da mãe, um terapeuta xamânico que fazia orientações coletivas e individuais com ayahuasca. Carlos Caruso, 37 anos, tinha passado por um processo muito parecido com o dele. Esteve envolvido com drogas pesadas e também vivia da arte – tocava bateria numa banda de rock. Transformou-se por completo quando encontrou a medicina.
Medicina sagrada
Carlos espalha energia por onde passa. Costuma vestir roupas muito coloridas e nunca deixa de carregar faixas e braceletes com a arte kene dos Huni Kuin. Nasceu na cidade litorânea de Rio Grande, a mais de 300 quilômetros de Porto Alegre. Ficou por lá até os 15 anos, período em já que se interessava por Beatles, Rolling Stones, Elvis Presley, Chuck Berry, entre outros. “O bichinho do rock me picou”, brinca. Montou uma banda com o primo, Giovanni Caruso, e continuaram tocando juntos depois da mudança para Curitiba. Foram para São Paulo depois de dez anos. Toda a época da banda foi marcada por sexo, drogas, rock n’roll e nenhum controle. Além da bebida, conheceu uma série de outros psicoativos: cocaína, anfetamina, LSD, ecstasy.
Só quando o grupo já estava no último respiro, em meados de 2007, é que começou a mudar de hábitos. Tinha percebido por conta própria que precisava abandonar as drogas, e já havia iniciado sozinho uma tentativa de abstinência. Foi ali o primeiro contato com a ayahuasca – por meio do Santo Daime. “Queria descobrir quem eu era. Eu criei um personagem por causa da banda, dos meus ídolos, e tinha perdido a identidade”, revela. “Despertei minha consciência e tive uma morte. Morri para o meu passado e renasci para o meu futuro.” A partir dali, sentiu uma fortíssima conexão com a doutrina daimista. Além de participar dos rituais, passou pelo processo de fardamento e hoje é membro efetivo da instituição. Trabalha nos preparativos e auxilia durante as cerimônias portando a farda branca e a estrela de seis pontas. Voltou a residir em Curitiba depois de um tempo, mas continuou participando da organização.
Carlos teve um contato profundo com questões espirituais desde a infância. Cresceu rodeado por três religiões: catolicismo, kardecismo e umbanda. Como não podia ser diferente, desenvolveu uma perspectiva de vida sincrética e multilateral. Também gostava muito de estudar outras culturas e outros povos. Passou a pesquisar sobre os indígenas da América do Norte e, depois, sobre os brasileiros. Apaixonou-se. Visitou a Amazônia algumas vezes e estabeleceu uma relação de apoio e amizade com os povos nativos de lá. Está há cinco anos trabalhando com representantes Huni Kuin e organizando, com eles, rituais e festivais de cultura indígena pelo Brasil.
A ayahuasca tem, para ele, uma função de guia. “Ela me mostrou o lugar em que eu estava, como eu era, e apontou o caminho para eu me curar”, explica. O chamado para trabalhar com terapia foi poderoso. Percebeu que a missão dele era justamente esta: levar para os outros a possibilidade de ter as experiências que ele teve. Hoje, trabalha com uma série de técnicas alternativas e da medicina oriental: massagem, naturopatia, fitoterapia, reiki, acupuntura e auriculoterapia. Começou a orientar pessoas que buscam tratamentos medicinais.
Alexandre, claro, é um dos “pacientes”. No início, realizavam trabalhos com meditação, defumação, yoga, rapé e sananga – as duas medicinas ajudam a controlar o instinto e manter a concentração. Depois, também na Casa Raiz, onde Carlos faz os atendimentos xamânicos, Alexandre começou a participar de cerimônias coletivas com ayahuasca. Teve experiências similares a de outros lugares, com a diferença de sentir uma proximidade muito maior com o contexto original indígena. As músicas de rezo faziam com que se colocasse em harmonia com o universo, e teve mirações relacionadas à natureza e aos espíritos da floresta.
Sentia-se absolutamente livre. Depois de mais três rituais em grupo, fez a primeira orientação individual com ayahuasca. Uma revolução. Perde as palavras quando tenta explicar a propriedade mágica das coisas que, aos montes, lhe cruzavam o entendimento. Na pequena salinha, ao simples som de um violão, sofreu o estalo de ruptura pelo qual desesperadamente havia esperado. “Não tem explicação. Quanto mais você permite, mais ela entra”, afirma. “Vinha forte. Parecia uma índia descendo em mim, como se eu fosse ela e ela fosse eu. Uma coisa só.” Nenhuma vivência foi mais impactante e especial. Visões como a que teve naquela noite demonstram que a nossa realidade está cheia dos mais extraordinários segredos. A honestidade com que se entregou à planta só foi possível por ter sentido uma conexão com o divino que jamais havia percebido. Tal era a força do processo catártico que, nos dias seguintes, foi acometido pela vontade de viver que há anos já não existia. Agora, tinha certeza de que a vida que vinha levando nada mais era que uma superfície ilusória. Uma casca. Mais embaixo encontrava-se a seiva – e só precisava de um propósito para alcançá-la.
“Quando ele chegou, estava iluminado”, diz Tereza, que também já havia passado pela experiência individual. Não se convence até hoje de que o que vivenciou foi simbólico. Jura de pé junto que morreu e, no outro lado, foi confrontada com a opção de poder voltar. Uma morte para que pudesse renascer. Por isso, nunca duvidou da capacidade de salvar o filho que enxergava na figura de Caruso. Estava certa. O acompanhamento atencioso durante os trabalhos aumenta, e muito, as chances de êxito.
Depois de participar de inúmeras cerimônias diferentes em formato, Alexandre acredita que a ayahuasca não é só a ayahuasca. É o contexto e o ritual. O grau da experiência depende do ambiente e de quem está ali compartilhando os momentos com você. Sem o devido preparo e a abertura espiritual necessária, não há substância psicoativa que lhe entregue precisamente o que deseja. Saber interpretar as mirações é mais essencial do que apenas tê-las. Alexandre teve sucesso na oportunidade certa porque pôde acessar e trabalhar da melhor forma um material inconsciente que, no fundo, já tinha dentro de si.
Existem ainda outros elementos que contribuem para que o resultado positivo seja viável. Um deles é a questão do superego. Na teoria psicanalítica de Freud, é ele o responsável por reprimir os nossos instintos mais primitivos – e faz isso, de maneira geral, com base nos valores morais injetados em nós pela família e pela sociedade. Alexandre manteve o superego bem ativo, por mais que tenha desistido de enfrentar os problemas por diversas vezes. Estava consciente da situação e sabia que precisava mudar. Na miração, mexeu com imagens criadas pelas inúmeras conversas que teve com os pais e, principalmente, pelas reflexões diárias acumuladas por anos. A ayahuasca foi o instrumento capaz de trazer as abstrações para a realidade concreta.
“Ela te coloca numa tensão para mostrar o que está a ponto de explodir em você. Depois vem o alívio”, explica Alexandre, que continua participando dos rituais individuais e coletivos. Considera a ayahuasca como algo bastante sensível, mas que empurra ao máximo todos os limites. A bebida transforma conceitos e pensamentos em experiências psicológicas e até físicas. “Mexe com todos os sentidos. Você sente e vive ela”, completa. “É como acessar uma consciência externa que, na verdade, é sua também. Entendi que sou qualquer coisa e posso chegar onde eu quiser. Isso para mim é fé.” Notou que é intrínseca à medicina a faculdade de aniquilar as infinitas preocupações e a ansiedade que o faziam de marionete até quando dormia. Um antídoto para o peso do mundo.
Abandonou as drogas poucos meses depois. Até largou os remédios psiquiátricos. Não precisa mais deles porque sequer cogita se aproximar do cotidiano de antes. O conteúdo das mirações ressignificou não só a cocaína, mas todo o modo de vida que o deixava propenso a cair nas tentações. “Hoje em dia eu vejo como droga e percebo o quanto ela me fez mal”, explica. “Como eu posso dizer que ela é boa? Pode ser que seja espiritual para outra pessoa, mas para mim nunca vai ser. Não tive cabeça para lidar com isso.” O monstro da depressão também desapareceu – e quase que de repente. Um dia, acordou diferente. Liberto. Garante que a súbita mudança de comportamento foi percebida pela família e pelos conhecidos: “Todo mundo fala alguma coisa, e eu acho legal. Sinal de que eu realmente mudei.”
Ninguém poderia ficar mais feliz do que Tereza. “Ele voltou. Hoje eu sinto meu filho presente”, atesta. Depois de tudo, aumentou ainda mais o intenso respeito que carrega pelo xamanismo. “A medicina rompe couraças bem resistentes e vai direto no medo e no trauma”, diz.
Juliana, hoje instrutora de técnicas alternativas de cura e criadora da Escola de Energia Sabedoria Transcendental, destaca ainda mais o papel da ayahuasca na metamorfose do irmão: “Ela chega na raiz dos vícios e nos coloca em conexão com a essência. É uma professora, uma sábia, uma mãe.” Os três volta e meia participam juntos dos rituais. Apoiam-se mutuamente e respeitam o espaço e as crenças um do outro. Um colo e uma boa conversa não faltam nos momentos mais delicados.
Mas é preciso salientar a enorme importância dos tratamentos tradicionais. As internações e os medicamentos, apesar de não terem resolvido a questão, serviram como contenção. Deram um choque de realidade, mesmo que Alexandre tenha se tornado refém dos remédios pelos dois anos e meio que vieram a seguir. Permanecia infeliz, mas estava vivo. Casos assim são bem comuns. Não dá para depender do medicamento regular até o fim. É como um gesso. Aí reside a disparidade para a ayahuasca, que ataca propriamente a fonte do problema: o psicológico. Não basta medicar o corpo se a doença é própria da mente.
Também não se pode dizer que o xamanismo seja um conhecimento superior e mais eficiente que os outros. Muitos têm sucesso a partir de métodos totalmente diferentes. Inegável é que a experiência enteógena oferece uma possibilidade de mudança drástica – para Alexandre e tantos mais, a única forte o suficiente para alterar a estrutura psicológica da qual a cura é apenas consequência.
Alexandre não só se afastou das drogas e da depressão. Teve que mudar os mínimos detalhes do cotidiano para não colocar tudo a perder, e os efeitos duradouros da medicina xamânica têm ajudado. Apesar de ainda participar dos rituais, recorre à ayahuasca apenas quando termina um ciclo – se dispôs a cumprir algumas metas antes de voltar a tomar. O esquema funciona. Já começou a colher, hoje em dia, o que plantou durante o último trabalho.
Procura ocupar o tempo com o máximo possível de atividades. Está sempre cuidando das plantinhas que cultiva no jardim, passou a fazer exercícios físicos e praticar esportes – que havia deixado de fazer por conta do sedentarismo imposto pelos vícios – e também voltou a tatuar. Um futuro que não podia imaginar há cinco anos. O ciclo de amigos também é outro, embora muito menor. Ao passo que tenta encontrar pessoas com quem possa compartilhar os novos interesses, mantém as poucas e verdadeiras amizades da adolescência. “Todo dia é um aprendizado. O importante é nunca achar que você sabe tudo e ser humilde para reconhecer os erros. Essas coisas eu aprendi com a ayahuasca”, conta.
O comportamento contagia, inclusive, o ambiente de casa. Conheci o Alexandre quando o visitei para fazer esta entrevista. Conversamos no quarto colorido e cheio de desenhos pelas paredes que ele transformou em íntima obra de arte. É ali onde guarda os quadros que começou a pintar com mais frequência nos últimos anos. As referências espirituais estão por toda parte – até na pele, que dá lugar a símbolos alegóricos como a águia e o amuleto hamsá. A memória que tenho dele se confunde com a imagem que conservo de Emil Sinclair, personagem histórico do imortal Demian de Hermann Hesse que, para acompanhar as transfigurações do espírito, principiou também a pintar. Tentou reproduzir à exaustão o rosto da menina que para ele era quase um amor platônico, mas jamais conseguiu. Do contrário, percebeu com singular temeridade que havia feito um desenho universal em que era possível ver a si mesmo ou a qualquer outro. Uma representação do que era o seu interior, o seu destino e o seu demônio. Como os quadros de Alexandre, tão abstratos e enigmáticos quanto. Se algum dia fizer um autorretrato, haveremos de ver o jovem afetuoso e sincero que, enfim, descobriu onde é que a vida está.
No escuro
Óbvio que muitos, ao contrário do Alexandre, não conseguem se tratar por meio da ayahuasca. Seria fantástico, senão utópico, pensar que um gole da medicina pudesse resolver a totalidade dos casos. Mas também não podemos deixar a complexidade do assunto ser dominada por argumentos simplistas. Claro está que os efeitos não são positivos para todas as pessoas, mas, pelo menos no Jornalismo, é nosso dever buscar explicações capazes de contribuir para o desenvolvimento do tema – e para auxiliar, inclusive, o trabalho da ciência.
Os estudos de caso, levando em consideração os mais diversos aspectos que envolvem o consumo da bebida, parecem, de início, um ótimo caminho. Eles mostram que experiências ruins podem ser esclarecidas pela falta de preparação e adaptação ao contexto ayahuasqueiro, bem como pela ausência de uma condução adequada do processo terapêutico. São fatores que influem diretamente nos resultados.
Uanderlei João Giongo, 52 anos, e Niceia Aparecida Caldas, 50 anos, tomaram ayahuasca apenas uma vez. Foi mais do que o suficiente para não repetirem a dose. A única experiência que tiveram foi há dez anos, na companhia do filho Wagner. Estavam lá, aliás, exclusivamente por conta dele. Era viciado em crack e não conseguia largar a droga a partir de outros tipos de tratamento. Alcançou períodos consideráveis de abstinência, mas recaía de forma repetida. Internações, remédios e terapias nunca deram certo.
As três sessões no Santo Daime, infelizmente, também não. Wagner foi assassinado a tiros em setembro de 2014, aos 26 anos, numa comunidade próxima à residência da família, no bairro Pinheirinho, zona sul de Curitiba. Continuava na dependência. Confesso que senti certo nervosismo antes de conversar com os pais sobre um assunto tão delicado, mas percebi de imediato que são verdadeiras fortalezas. É admirável a capacidade que têm de lidar com tudo o que já passaram.
Uanderlei, conhecido por todo mundo como Silva – fruto de brincadeiras com a dificuldade de escrever o nome –, é um vendedor de caminhões cujo bom humor é unanimidade entre os colegas. Carrega uma autoridade congênita e, como quem domina a arte de vender há tempos, tem enorme facilidade para se expressar. Assim como Niceia, que passou boa parte da vida no comércio de secos e molhados. Hoje, sem trabalho, ela fica mais em casa. Foi a que mais se abateu durante o período de drogadição do Wagner, e chegou até a desenvolver depressão – embora, também com o auxílio da medicação psiquiátrica, tenha aprendido a controlar melhor o problema. Eles têm ainda uma filha mais nova, Vitória, hoje com 22 anos.
São cristãos desde sempre. Foram católicos por 40 e poucos anos, e depois tornaram-se evangélicos. Uma família típica de classe média brasileira. Imagine o choque, então, quando descobriram que o filho, aos 17 anos, estava envolvido com drogas. Naquela época, era apenas maconha, mas foi o suficiente para que os pais ultrapassassem o estado de alerta. Silva diz que fizeram um “revolução” no bairro, indo conversar pela vizinhança para saber o que é que estava acontecendo. “Nunca ficamos omissos perante a droga”, afirma Niceia.
Buscaram psicólogos e psiquiatras. Tentaram exames toxicológicos a cada 15 ou 30 dias para controlar a abstinência, mas nada rendeu resultados favoráveis. Wagner sempre estudou em escolas públicas da região, e ali firmou amizades que o introduziram no mundo das drogas. Os pais acreditam que mudou um pouco de comportamento enquanto serviu ao exército, a partir dos 18, mas retomou a vida de antes logo que voltou. Seguiram nesse impasse pelos próximos meses.
Certo dia, quando estava com seus 21 anos, Wagner sumiu. Pegou o carro para visitar a namorada e desapareceu por dois dias. Avisou os pais, por telefone, que tinha sido sequestrado. “Era uma manipulação”, lamenta Silva. O próprio filho, ao retornar, contou que estava utilizando crack. “Aquilo foi um balde de água gelada”, completa. Apavoraram-se. Sabiam que o controle era mais difícil porque era uma droga pesada, e também estavam conscientes dos obstáculos que apareceriam no futuro – já que casos envolvendo o consumo de crack pipocam pelos noticiários televisivos. Mas jamais deixaram de procurar uma solução.
Fizeram tudo o que foi possível. Wagner foi internado diversas vezes em clínicas psiquiátricas e terapêuticas. Fez até um tratamento com ibogaína, um alcaloide utilizado principalmente no combate à dependência química – a substância, caríssima, é importada e, na época, só estava disponível em São Paulo. Ele ficava longe do crack por 10, 12 meses, mas sucumbia. “Quando voltava, se afundava. Descia a ladeira com tudo”, conta Silva.
O ambiente também nunca foi favorável à recuperação total. Havia tráfico na esquina do prédio onde os pais moram até hoje, uma região tranquila e perigosa ao mesmo tempo. O local ainda é rodeado por comunidades dominadas pelo tráfico de drogas, como é o caso da Vila Pluma, onde o corpo do rapaz foi encontrado, e da Vila Nossa Senhora da Luz, um pouco mais distante, que até recebeu uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP).
Wagner trabalhava e também estudava. Fez Administração e Marketing, ambas em universidades particulares, mas conseguia levar uma espécie de vida paralela. Invariavelmente era visto em meio aos traficantes das comunidades vizinhas. Tornou-se amigo próximo de uma turma que vivia, como ele, refém do universo das drogas. “Diziam que pagava droga para todo mundo. Tinha um coração que não era dele”, relata Niceia. De acordo com o pai, era um rapaz muito tranquilo; mesmo durante aquele processo, continuou sendo respeitador.
Nas fotografias espalhadas pelo apartamento, nota-se que era muito alto. Tinha 1,94 de altura. Além da imposição física, parecia tão generoso quanto o resto da família. Em uma das fotos, aparece vestido com uma camiseta das cores do exército, as entradas já visíveis para o cabelo curto, enquanto sorri e segura nas mãos um filhote de passarinho. Um contraponto para o que diz o pai, hoje, sobre usar todas as armas à disposição, se preciso um batalhão inteiro, para eliminar o problema das drogas já no começo: “Você tem que usar um canhão para matar um passarinho”.
A ayahuasca veio em seguida. Não teve papel de arma ou de qualquer outra coisa. Poderia, se não fossem as intermináveis variáveis. Acabou como a experiência mais louca que Silva e Niceia tiveram até o momento – e tudo indica que continuará sendo até o final. A bebida foi indicação de um amigo da família, cujo irmão estava em drogadição e tinha conseguido se curar indo ao Santo Daime. Resolveram, sem hesitar, arriscar para ver no que dava. O desespero era tão grande que aceitariam qualquer coisa que pudesse melhorar a situação. Tinham até um relato animador de um caso semelhante ao do filho, então sequer foi necessário repensar sobre o que estavam prestes a fazer.
Não faziam, os dois, a menor ideia do que era ayahuasca – e suspeito que o entendimento não tenha melhorado muito de lá para cá. Wagner topou participar, mas também não sabia onde estava se metendo. No dia 30 de abril de 2009, encaminharam-se para o Céu da Nova Vida, casa daimista localizada em Pinhais, Região Metropolitana de Curitiba. Iam os três e o ami go que os convidou. Era uma quinta-feira, véspera de feriado.
Niceia até que procurou se preparar um pouco, evitando comer gorduras e carnes. Silva, pelo contrário, mandou para dentro um espeto corrido naquele mesmo dia. A despreocupação com o que podia acontecer no ritual era tanta que, às 5h do dia seguinte, sairia para pescar com os amigos em outra cidade. E tinha fatalmente que ir, porque estava com o dinheiro de todos eles para transporte e estadia. O pensamento de que não podia se atrasar assaltou-o a noite inteira.
Fizeram a inscrição durante a semana e, chegando lá, tiveram uma explicação de como seria o ritual e de quais eram as normas da instituição para poder tomar a bebida. A cerimônia começou às 20h. O mesmo padrão do Daime: mulheres e homens separados; músicas envolvendo figuras cristãs e o padrinho conduzindo os trabalhos. Também receberam saquinhos plásticos para caso vomitassem. Em seguida, foram colocados em fila para tomar a primeira dose do chá. “Era do tamanho de um copinho de café. Um gosto bem amargo e pesado”, relembra Silva, que não quis saber de tomar metade. Niceia aceitou um pouco menos.
A partir daí, os três passaram por um turbilhão de acontecimentos muito diferentes entre si. Quando tomou a primeira dose, Silva não se sentiu bem: “Já não curti o assunto. De imediato. Começou a me fazer um mal tão grande que eu não via a hora de sair lá de dentro”. Não estava preparado para aquilo. A agonia era tão grande que queria vomitar de qualquer jeito, mas não conseguia. Sentia-se imensamente desconfortável. Tinham dito que a medicina expandia a consciência, mas isso para ele nada significava de concreto. Estava ali às cegas. Tomou a segunda dose a contragosto. Mas as coisas mudaram.
“Acho que eu comecei a entrar em transe, porque comecei a dançar. Eu olhava para o meu filho e ele dava risada de mim”, relembra. Conserva memórias extremamente vivas daquele dia. Lembra-se, com perfeição, da hora em que cenas materializaram-se na frente dos olhos. “Eu me vi quando era criança pequena, de 2, 3 anos”, conta. “Foi vindo um filme da minha vida.” Transitou ainda pela adolescência e pela fase adulta, visitando divergências que teve em todo esse tempo. Num dos episódios, evocou uma discussão banal que teve com um chefe de trabalho há mais de 25 anos. Ali, naquele momento que parecia tão real quanto o que se passou lá atrás, pediu perdão.
Niceia, por outro lado, não sentiu nada de muito forte até tomar a segunda dose. Pediu, desta vez, uma inteira. O baque não tardou. A questão é que ela jamais tinha passado por uma experiência, mínima que seja, de estados alterados de percepção. Nunca usou nenhuma droga. Não bebe, não fuma. Foi as sm toda a vida. Além disso, tinha na cabeça a ideia de que nada poderia alterar o estado normal das coisas. Durante todo o ritual, lutou contra os efeitos práticos do chá. Não queria admitir que podia “pirar” por conta de uma simples bebida.
Somados os fatores, o resultado não poderia ser diferente: passou muito mal. Teve, inclusive, alucinações insuportáveis. “Via os homens com o rosto deformado. Três olhos, duas bocas, quatro orelhas”, relata. “Alucinei com muita resistência, achando que ninguém ia fazer a minha cabeça.”
Vejam se é possível ter algum benefício em condições como essa. Continuou mal, inclusive, depois da cerimônia. Levou quase três dias para voltar à racionalidade completa, e só depois que foi ao médico – levada pelos parentes, que a repreenderam por ter feito uma loucura daquelas.
Silva e Niceia vomitaram muito. Saíram de lá às 2h, apenas quando ele teve plenas condições de dirigir de volta para casa. Quanto ao Wagner, não sabemos qual foi o efeito subjetivo da ayahuasca durante os trabalhos, mas também passou mal. “No último episódio que eu vi, ele estava vomitando muito. Foi a pessoa que mais vomitou e mais fez barulho”, diz a mãe.
Conversaram, os três juntos, sobre as experiências que tiveram. Niceia conta que o filho chegou a comparar a medicina com o crack. O efeito era ainda mais forte. Em certa medida, eram até parecidos. Silva chegou a levar o Wagner a mais duas cerimônias nos anos seguintes, mas nunca teve coragem para passar por aquilo de novo. Ficou esperando no carro, do lado de fora. Ele desconfia que o jovem tenha aproveitado aqueles momentos para se drogar. “Ele viu que o negócio era alucinógeno, então talvez tenha usado para drogadição. Mas a inte ção não era para ser essa”, aponta.
De fato não era. Se viu alguma coisa de importante durante a miração, Wagner não soube trabalhar. Talvez por falta de preparo, ou até por não ter tido um acompanhamento adequado. Além do mais, saía do Daime e logo estava diante das mesmas coisas: a favela, os amigos, os traficantes, o crack. Nunca pôde mudar o cotidiano.
Os pais não pensam em voltar ao Daime jamais. Silva, em especial, afirma que não precisa da ajuda da ayahuasca porque não tem muita coisa para resolver. “Talvez ela tenha me feito muito mal porque eu não estava precisando daquilo”, pondera. Também não está disposto a enfrentar aquela angústia mais uma vez. Foi uma experiência marcante em vários sentidos, menos no que era para realmente ter sido. “Poderia ter dado certo em qualquer momento, mesmo com outros tratamentos, mas, no caso dele, não deu. Assim como poderia ter dado certo de ele nunca ter experimentado a droga”, afirma.
Ambos, desde antes do falecimento do filho, participam de um grupo de apoio chamado Amor Exigente. Sentem que precisam compartilhar a história que tiveram com outros pais que passam pela mesma situação. Foi ali que aprenderam a necessidade de se abrir com as pessoas. Sofreram calados por dois anos, blindando o resto da família e lidando sozinhos com o imprevisível. Depois de anos com espada e escudo em riste, entendem que, com apoio e orientação, qualquer tratamento pode ser determinante para a cura. “O Wagner tinha predisposição, mas paciência. Só sabemos que, infelizmente, ele foi embora”, diz Silva, “e está num lugar muito melhor do que nós.”
Os nomes nesta reportagem foram trocados para não identificar as pessoas.
*Quarto capítulo do livro-reportagem ‘Os caminhos do cipó: perspectivas sobre o consumo contemporâneo de ayahuasca’. Acompanhe os próximos aqui no Plural.