Aporofobia: pessoas em situação de rua em Curitiba sofrem com a invisibilidade social

Arquitetura hostil, insegurança alimentar e dependência química são alguns dos perigos enfrentados por quem vive nas ruas da capital

Simone Cristina Anchieta, de 46 anos, come uma esfirra e toma um café com leite na região do Largo da Ordem, em Curitiba. Paulistana, mãe, dependente química e atualmente em situação de rua.

Na sexta-feira (1) fazia frio na capital paranaense. 13 graus perto da hora do almoço, enquanto Simone reclama que não tem cobertor.

Ela ‘mora’ nas ruas desde que conheceu o crack. Perdeu o contato com a família e se abriga em casas de passagem e se mantém pedindo alimentos e dinheiro, quando as pessoas não desviam o olhar ou trocam de lado na rua. “Eu não sou bicho, não mordo, não”, lamenta.

“O que eu queria mesmo era um tratamento. Ninguém quer ficar na rua assim, não. As pessoas falam que a gente é vagabundo, que não queremos trabalhar, mas antes eu queria ir para uma clínica. E também queria um cobertor. A FAS (Fundação de Ação Social da Prefeitura de Curitiba) não dá cobertor.”

Quem também está precisando de um novo cobertor é João Ferreira, de 34 anos, (nome fictício, a pedido do entrevistado). Em frente ao Banco do Brasil da praça Tiradentes ele toma um iogurte de morango que ganhou de uma senhora.

A situação de rua chegou com o advento da pandemia. Ferreira é de Cruzeiro do Oeste, região noroeste do estado, onde trabalhava com decoração de festas, setor que foi impactado com a suspensão dos eventos.

Com a demissão, ele saiu em busca de novas oportunidades. A primeira parada foi em Maringá. “Eu fiquei três dias sem dormir. Dá muito medo ficar na rua. Também fiquei sem comer porque não tinha dinheiro, mas aí tive que pedir. Dá vergonha, mas tive que pedir”, conta.

De Maringá passou por outras cidades até chegar a Curitiba, onde está há um ano. Soropositivo, desde que deixou Cruzeiro do Oeste, não toma os medicamentos necessários. “Eles conseguem o remédio, mas precisa ter endereço e como não tenho acabo não pegando.”

Ferreira, assim como Simone, prefere não dormir em abrigos porque as portas dos alojamentos são trancadas durante a noite. “Não gosto de ficar preso, muita gente junta, pode acontecer alguma coisa e não tem como sair”, observa.

Além de um cobertor novo – chove durante toda sexta-feira – Ferreira pretende retomar a vida. “Muita gente que fica na rua pensa: ah, se eu morrer, tudo bem.” Olhos marejados. “Mas eu penso em voltar ao meu trabalho. Só preciso de um lugar fixo, porque como vou procurar emprego sem endereço?” Ferreira recebe R$ 600 mensais por conta da doença, mas o valor é insuficiente para viver.

Faz a diferença

Depois de viver as angústias das ruas como Ferreira e Simone, Ademir Gomes de Araújo, de 62 anos, que mora no bairro Santa Cândida. A residência é emprestada por uma assistente social que ele conheceu na rua XV, enquanto apreciava uma apresentação de música.

“Ela perguntou se eu gostava de música, se eu tocava, eu disse que sim, aí me chamou para participar do coral que ela tem lá no Capes do Boa Vista”, diz.

Araújo foi para rua depois de perder o emprego em 2020. Ele era vigia de uma obra e morava no local. Ganhava R$ 2,5 mil. Dava algum dinheiro para a filha, comprava carne e cerveja. “Eu não guardava nada, não. Aí quando ele chegou e disse que o posto não ia mais abrir e que eu tinha que sair, fiquei sem nada.”

Embora tenha família na Região Metropolitana, ele prefere se reerguer sozinho. Na segunda-feira (4) começa um curso de vigilante. “Depois disso disseram que vão contratar a gente e tem micro-ondas para esquentar comida.”

Atualmente ele recebe doações de alimentos de igrejas e garante alguma renda com coleta de latinhas de alumínio.

Quem faz a diferença na vida de outras pessoas são os voluntários da Pastoral do Povo de Rua. Marlene Silveiro de Oliveira, assistente social e coordenadora da pastoral desde 2013, defende a necessidade de haver ações da sociedade civil para suprir falhas do Estado na assistência.

Há um ano, o prefeito Rafael Greca (DEM) enviou o projeto do programa “Mesa Solidária” à Câmara Municipal o qual instituía multa de até R$ 550 para voluntários e organizações que distribuíssem comida para as pessoas em situação de rua sem autorização prévia da prefeitura.

Quem quisesse ajudar precisaria fazer um cadastro e seguir as regras do prefeito. “Foi um absurdo. Nós fomos contra, claro”, diz Marlene. A pastoral, embora seja uma iniciativa católica, usou a estrutura da Igreja Anglicana de Curitiba para fazer a destribuição de alimentos antes dos decretos que previam lockdown.

Em média eram distribuídas 150 refeições por semana, que amenizavam a carência que quem estava em vulnerabilidade social, mas que, por outro lado demonstra a ausência de políticas públicas para atender estes cidadãos.

“Boa parte das pessoas em situação de rua não tem acesso ao abrigo ou não querem ir porque não são um grupo homogêneo. Hoje existe uma separação, mas via de regra mandam dependentes químicos para o mesmo lugar de idosos, para o mesmo lugar de alcoolistas, isso cria uma barreira. Eles precisam de atendimento em saúde, em moradia, uma ação conjunta”, critica a assistente social.

Ação social

De acordo com a FAS se autodeclaram em situação de rua 1.071 homens e 120 mulheres em Curitiba (dados de 2016). Este número, de acordo com a Pastoral do Povo da Rua, está defasado. A estimativa é de que cerca 6,5 mil pessoas estejam em situação de rua na capital.

As baixas temperaturas são um agravante para a situação. Neste período a busca por alojamento e alimentos aumenta. A Fundação de Ação Social dispõe hoje de 1,3 mil vagas distribuídas em quatro casas de passagem, cinco abrigos e três hotéis sociais.

Há também organizações não-governamentais que trabalham em parceria com a prefeitura para realizar o acolhimento institucional.

Curitiba tem ainda três centros Pops, que permitem que as pessoas em situação de vulnerabilidade realizem higiene pessoal e se alimentem. No papel, estes centros também fazem o encaminhamento dos cidadãos para o serviço de saúde, embora Ferreira, ainda não tenha conseguido os medicamentos para tratar o HIV.

A chamada busca ativa – quando a FAS vai para rua e realiza a abordagem social das pessoas – ocorre sobretudo quando a população entra em contato através do 156. “Isso é periódico e sistematizado, mas também contamos com as ligações recebidas”, explica Anderson Walter, coordenador de Média Complexidade da diretoria de atenção à população em situação de rua.

A Fundação também recebe doações de alimentos, roupas e móveis, que atendem não somente quem está em situação de rua, mas toda população vulnerável e famílias de baixa renda.

Além disso, a prefeitura inaugurou duas novas unidades para atendimento a pessoas em situação de rua na sexta-feira (1). A casa de passagem Padre Pio e o centro Pop ficam na Praça Solidariedade, no Rebouças.

Aporofobia

Embora Greca tenha retirado a multa para quem doasse alimentos a pessoas que estivessem em situação de rua, o texto do projeto Mesa Solidária também dizia que a ideia era evitar o desperdício de alimentos ou sua escassez, assim como “o acúmulo de resíduos orgânicos e rejeitos nas vias públicas, ocasionando a proliferação de pragas e vetores urbanos”.

A limpeza e a sujeira são opostos que estão intimamente ligados à classe social. Em 2016, então candidato à prefeitura, Greca disse que vomitou com o cheiro de um homem pobre.

“Eu coordenei o albergue Casa dos Pobres São João Batista, aqui do lado da Rua Piquiri, para a igreja católica durante 20 anos. E no convívio com as irmãs de caridade, eu nunca cuidei dos pobres. Eu não sou São Francisco de Assis. Até porque a primeira vez que eu tentei carregar um pobre no meu carro eu vomitei por causa do cheiro”, declarou durante uma sabatina na Pontifícia Universidade Católica.

A expectativa era de que a fala causasse espanto, mas com 53,25% dos votos válidos, ou 461.736 votos, Greca foi eleito prefeito de Curitiba naquele ano, depois de pedir desculpas e dizer que não soube se expressar ao falar do pobre.

Há uma palavra para explicar esta síndrome de Caco Antibes, o personagem do humorístico “Sai de baixo”, que cujo bordão era “tenho horror a pobre”: aporofobia.

A palavra ainda é pouco conhecida, mas muito usada pelo padre Julio Lancellotti através das redes sociais (só no Instagram são 997 mil seguidores). Ele trabalha na paróquia São Miguel Arcanjo, em São Paulo, e tem atuação junto à população de rua.

Pela internet denuncia a crise humanitária que ocorre em diversas cidades do Brasil. Curitiba é habitué nas publicações. A última foi publicada recentemente (veja abaixo). Mostra a rua General Carneiro, na altura do Hospital da Clínicas, onde pedras estão fixadas para evitar que pessoas se abriguem no local.

Foto: Reprodução/Instagram

Uma caminhada pelo centro da cidade basta para encontrar arquitetura hostil. Grades, pedras, a arquitetura hostil, que restringe o acesso de abrigo em certos espaços. A medida visa “limpar” os espaços urbanos.

No entanto, está cada vez mais difícil esconder a realidade. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) a população em situação de rua cresceu era de quase 222 mil brasileiros em 2020.

O termo “aporofobia” foi cunhado em 2017 pela professora Adela Cortina, da Universidade de Valença. O conceito é aplicado a uma rejeição sistêmica à pobreza.

O nojo aos pobres, para além da palavra, também perpassa pela questão de classes, como explica a socióloga Eliane Basílio. “A alienação da classe média, a individualização do problema, ou seja a meritocracia: se aquela pessoa é pobre é porque mereceu e a desumanização do outro são alguns dos fatores que contribuem para essa aversão”, analisa.

Outros pontos que não podem ser dissociados são gênero e raça. A abolição da escravatura em 1888 libertou pessoas negras, mas não mudou o pensamento escravocrata.

A maioria destas pessoas negras saiu da servidão para a pobreza extrema e seus descendentes continuam patinando para ascender socialmente. “É uma questão estrutural. Temos uma visão fragmentada da sociedade, mas é necessário fazer essas conexões sem ocultar a condição de classe. A pobreza é resultado de políticas neoliberais perversas cujo objetivo é manter o pobre no ‘lugar dele’, ou seja, impedir que ocupe determinados espaços”.

Há dois anos o ministro da economia, Paulo Guedes, disse que o câmbio alto do dólar era bom porque todo mundo estava indo pra os Estados Unidos, inclusive empregadas domésticas.

O vômito de Greca e a fala de Guedes demonstram que a aporofobia quer ‘naturalizar’ alguns conceitos. “A sociedade não é chamada a refletir a razão de haver pessoas pobres, com o discurso da meritocracia eles se tornam invisíveis, por isso o aumento do número de pessoas em situação de rua não choca”, salienta Eliane.

Invisíveis

“Eu mesmo quando passava por alguém que estava na rua ignorava. Hoje eu sei como esse olhar e essa ação machuca, porque acontece comigo”, diz João Ferreira, enquanto esfrega as mãos.

Simone, embora tenha filhos, também reclama que não é vista. “Eu não tenho contato com ninguém porque eles também não têm contato comigo. Nesse tempo todo na rua ninguém me procurou”.

Ambos disseram à reportagem do Plural que à noite, por causa da temperatura baixa – 15 graus no fim da tarde – iriam procurar acolhimento institucional.

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6 comentários em “Aporofobia: pessoas em situação de rua em Curitiba sofrem com a invisibilidade social”

  1. “Ninguém terá direito ao supérfluo enquanto alguém carecer do necessário…” Pode parecer piegas e jargão já bem usado, mas muita gente nesse país vive da riqueza dos esquecidos nas favelas e nas ruas das cidades… se acomoda no seu mundinho e esquece de quem sofre nas ruas, nos hospitais, nas catástrofes sociais que nos acostumamos a ver pela TV… triste, muito mesmo….

  2. A pessoa acha que está ajudando quando dá dinheiro ou algo que eles possam vender, como alimento não perecível ou fraldas, mas está apenas alimentando o vício e deixando essas pessoas mais acomodadas. Quem tem o poder de resolver isso é o Estado.

  3. Existe sim diversas pesquisas associando situação de rua e dependência química. Em nenhum momento eu disse que não são pessoas e que não têm direitos. Pelo contrário. São pessoas que necessitam de auxílio médico. O Governo do Estado e a Prefeitura teriam que prover todo o auxílio necessário em relação a internação e tratamento. Minha crítica é que falta ação municipal e estadual para ter algum projeto decente que auxilie na causa.

    1. Rosiane Correia de Freitas

      Yuri, vc está confundo correlação com causalidade. Ou seja, sabemos se quem está na rua está porque é dependente químico e/ou doente ou é depende químico e/ou está doente porque está na rua? Desculpe se supus uma conclusão que você não expôs, é o hábito de quem lê dezenas de comentários do gênero por dia. De qualquer forma, sim, independente da situação de moradia, o Estado deveria ofertar tratamentos eficientes para vício e doenças mentais. Infelizmente hoje boa parte da verba para esses tratamentos está em instituições de cunho religioso, não de saúde.

  4. A maioria esmagadora das pessoas em situação de rua são dependentes químicos ou possuem algum transtorno mental. Nesses casos é muito difícil que saiam dessa situação sem tratamento médico adequado. O álcool e crack são muito baratos e fáceis de encontrar.

    1. Rosiane Correia de Freitas

      Yuri, primeiro que não há pesquisa adequada que corrobore essa conclusão. Segundo que pessoas doentes (e dependência química é doença) continuam a ser pessoas e a ter direitos.

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