“Ajudar as pessoas é uma necessidade. Nunca foi sacrifício para mim”

Aos 85 anos, após receber o título de Cidadã Benemérita do Paraná, Isabel Kugler relembra a trajetória na luta pelos Direitos Humanos

É uma tarefa quase impossível resumir uma vida em poucas palavras. Ainda mais a da tibagiense Isabel Kugler Mendes. Advogada aposentada, Isabel ficou conhecida pela trajetória de mais de 50 anos defendendo os direitos de populações minorizadas.

Idosos, crianças, carrinheiros, pessoas doentes. Isabel ajudou todos. E tudo começou quando ela tinha 13 anos e morava em Paranaguá. Vendo as pessoas em situação de rua sendo expulsas da frente do hotel dos pais, que ficava próximo à praia, Isabel organizou um esquema: todos os dias, antes de ir à escola no período da tarde, ela pedia que os funcionários separassem a comida que sobrava das mesas dos hóspedes para dar às pessoas em condição de rua pela entrada dos fundos. 

“Isso sempre fez parte de mim. Eu aprendi que a gente não é nada sozinho. Se eu consegui fazer alguma coisa na minha vida foi por conta do apoio de outras pessoas. E é assim que a gente vai mudando o mundo.”

Ao longo dos anos, Isabel desenvolveu projetos de arrecadação de materiais escolares para crianças, fez campanhas de agasalhos e organizou festas e jantares para o Hospital São Roque (que atendia pessoas diagnosticadas com hanseníase, doença que ficou pejorativamente conhecida como lepra). Mas foi a atuação junto da população encarcerada que mais ocupou tempo e dedicação de Isabel, ou “Doutora Maria Isabel”, como era chamada pelos detentos. 

“Ajudar as pessoas é uma necessidade. Nunca foi sacrifício para mim”, conta a senhora de 85 anos que supervisionou presídios e delegacias, intermediou rebeliões durante 18 anos e ajudou na inserção social de detentos, tanto que ganhou o apelido de “mãe dos presos”.

Foi no início dos anos 1970, no período da ditadura, que a ativista se aproximou dos presídios paranaenses, através do marido, que era major da Polícia Militar. Conhecendo a situação do sistema prisional de perto, Isabel decidiu que algumas coisas precisavam mudar. Para as penitenciárias do Paraná arrecadou sabão de coco, livros, bolas de futebol, cobertores, transformou banheiros em bibliotecas, restaurou lavanderias e organizou festas de natal durante anos.

“A mim não interessa o que eles fizeram, nunca interessou. Eu lutava pelo direito de eles terem uma cama, comida, sol. Dentro do sistema, o que eu dava era amor. Eu ajudava com outras coisas, mas o mais importante: eu ouvia.”

Isabel Kugler

A militância de Isabel, que sempre ocorreu de forma voluntária, passou a tomar forma também em entidades organizadas. Durante 17 anos foi secretária da Cruzada Social Cosme e Damião, integrou a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil no Paraná (OAB-PR) e presidiu, por nove anos, o Conselho da Comunidade de Curitiba, órgão fiscalizador de 11 penitenciárias e três cadeias públicas da região organizado pela sociedade civil com apoio do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR).

“O quanto eu briguei por sol, bolas de futebol, camas, coisas tão simples… Até hoje eu me sinto muito frustrada porque foi pouca coisa que consegui mudar.”

Assim como dialogava com presos anônimos, Isabel atuava com membros do Primeiro Comando da Capital (PCC) e políticos e empresários presos pela Operação Lava Jato no Complexo Médico Penal (CMP). De Marcelo Odebrecht a José Dirceu e Fernando Baiano, todos os “Lava Jato”, como ela chama, a tratavam com carinho. “Eu ia lá e eles me contavam a história deles.” 

“Nunca senti medo. Todos eles tinham muito respeito comigo. Um dia cheguei numa unidade e o agente falou: ‘Doutora, eu não tenho condições de lhe garantir a vida’. Um dos presos, que depois vi que era o líder, escutou e disse: ‘Nós damos segurança para a Doutora. A senhora precisa de segurança lá fora, não aqui dentro.’ Eu sabia que eles me protegiam mais que qualquer coisa.” 

Isabel Kugler

Segundo Isabel, seu trabalho sempre foi mostrar a verdade que ninguém queria ver: as condições desumanas do sistema penitenciário do Paraná e a indiferença com a qual as autoridades tratam o assunto. “O que tem que falar eu falo na cara, nunca mandei recado. Por isso eu digo que quando você luta pela humanidade, você é amada e odiada.”

História

Única mulher dos quatro filhos de Maria da Conceição e João Mendes, Isabel se mudou para Curitiba ainda adolescente. Aqui se casou e formou uma família grande: hoje são 10 filhos, 18 netos e 13 bisnetos. 

Foi taquígrafa na Câmara Municipal de Curitiba (CMC) e, aos 40 anos, decidiu ingressar na faculdade de Direito. Nos anos 1970, passou no concurso para ser advogada da CMC, tornando-se a primeira mulher a ocupar esta função. Isabel também foi assessora jurídica da Assembleia Legislativa do Paraná, presidente do Conselho Municipal da Condição Feminina – ação pioneira no acolhimento e proteção de mulheres vítimas de violência doméstica -, além de colunista de rádio e jornal, como o Plural

Ela também ajudou a montar o Partido Democrático Trabalhista (PDT) do Paraná, ao lado do ex-governador Jaime Lerner, e foi ela quem escreveu o dossiê sobre as alegações de tortura do caso do homicídio de Evandro Caetano, em Guaratuba (PR), em junho de 1993.

Legado

Mesmo aposentada há um ano, Isabel nunca parou de auxiliar quem dela precisa. Diariamente o telefone da casa recebe ligações de ex-detentos e seus familiares solicitando ajuda da ativista. Não raro Isabel os encontra pelas ruas de Curitiba e fica feliz ao ser reconhecida. “Um dia passei por dois jovens andando de bicicleta. Eles gritaram pra mim ‘Doutora Isabel! Nossa mãe!’, e eu disse: ‘Que bom que vocês estão aqui livres. Tudo certo né, se não já sabem’ e puxei a orelha”, diz, entre risadas.

Atualmente, Isabel gosta de passar o tempo lendo Agatha Christie – em um ano e meio foram 47 livros – e recebendo amigos e familiares para o café da tarde. Entre os temas das conversas estão geopolítica, aquecimento global, fake news e o cenário político brasileiro. “Aqui, tem dias que a gente coloca a mesa pro café quatro vezes”, conta, orgulhosa.

A ativista, que recebeu o título de Cidadã Benemérita do Paraná por sua atuação em defesa dos Direitos Humanos, ainda pretende publicar os sete livros que escreveu – quatro envolvendo o tema espiritual e três que contêm crônicas da época que apresentava o programa “Vida e Cidadania”, na Rádio Clube. “Eu estou cheia de coisas para fazer ainda. E continuo sonhando.”

Sobre o/a autor/a

7 comentários em ““Ajudar as pessoas é uma necessidade. Nunca foi sacrifício para mim””

  1. Henrique kugler neto

    …sem dúvida, um exemplo de ser humano comprometido com os desafortunados, culpados ou inocentes, nunca questionou os meritos, “outro” o fará, “um dia”, gastou “sua fortuna”, se dedicando aos desafortunados, repito, entregou sua vida para êstes, palavras, simplesmente, não a descrevem, garantiu seu lugar no “paraízo”
    Henrique Kugler Neto, outro parnanguara nascido em 1950…

  2. Zelinda De Bona

    Parabéns, minha querida amiga, nos conhecemos em um momento difícil de minha vida, através das crônicas que eu escutava todas as manhãs na rádio!
    Tomei a iniciativa de telefonar e conversar com ela, que prontamente me recebeu em sua casa, ficamos muito unidas e compartilhamos muitos momentos inesquecíveis outros bem difíceis, porém sempre lado a lado!! Fico feliz por essa matéria maravilhosa com todos os predicados e exemplo de mãe , profissional , amiga e um ser humano que irradia a sua fé e esperança para um mundo melhor!! Muita saúde e paz no seu coração amiga!! Te amo e te abençoo ! Minha Bencinha!! Amém!

  3. Imensa gratidão Dra:Isabel por toda dedicação aos direitos Humanos Em especial aos Presídios do Paraná. Estou mãe da Detenta Giorgea quê está cumprindo pena no SIS Piraquara. Sou Grata! fraternal Abraço Solidário.

  4. Mais uma belíssima matéria sobre a justa homenagem a esse exemplo de vida e de dedicação aos mais fragilizados. Parabéns a Dra. Maria Isabel. Parabéns ao Plural.

  5. Maria Angelica Mercer de Barros

    Isabel Kugler sera sempre um exemplo de força, de luta pelos menos privilegiados. O trabalho junto aos presídios foi de suma importância. A admiro muito. Parabéns.

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