Aids: o vírus que apavorou o mundo há três décadas

Esta publicação faz parte do Festival de Jornalismo Literário, organizado em parceria pelo Plural e faculdades de jornalismo de Curitiba e Ponta Grossa. O livro-reportagem de Pedro Macedo está sendo publicado em capítulos nesta semana Um microscópico residente que habita […]

Esta publicação faz parte do Festival de Jornalismo Literário, organizado em parceria pelo Plural e faculdades de jornalismo de Curitiba e Ponta Grossa. O livro-reportagem de Pedro Macedo está sendo publicado em capítulos nesta semana


Um microscópico residente que habita em João tornaria meu encontro com ele improvável se estivéssemos em 1984. De almofadas felpudas, aos copos, talheres e aparatos eletrônicos como um simples controle remoto, o telefone, ou os livros empilhados pela mesa de centro. Tudo ali seria considerado um risco. Alguns diriam até que o ar que circulava pelo apartamento, de pouco menos de cem metros quadrados, poderia ser fatal.

Porém, não estamos em 1984. É 2019. E foram necessários mais de 30 anos de história para que eu pudesse estar sentado ao lado deste rapaz.

Ao abrir essas páginas, caro leitor, você deve imaginar o que é esse inquilino microscópico de que estou lhe falando. Não é visitante, que vai e vem. É um morador. Engraçado pensar que um pequeno organismo possui tanto impacto na vida do animal mais inteligente da Terra. Estaremos sempre à mercê dessas minúsculas bolinhas cheias de células e outros organismos. Seja 35 anos atrás ou daqui a 35, no futuro.

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A infectologista aposentada Rita Esmanhoto sempre chega no horário. Não importa onde, quando, se está chovendo, ou se houve algum acidente que engarrafe toda a cidade. Se alguém marca de encontrá-la às 17 horas de uma quinta-feira nublada, ela vai estar lá com o relógio cravado.

É novembro, 2019. O destino naquele dia é a Casa das Bolachas, um café popular entre os estudantes da Universidade Federal do Paraná (UFPR), na região central de Curitiba. Lá é servida uma das maiores xícaras de café com leite da região, e o interior do estabelecimento – vintage e com muitos potes de biscoitos à vista – é um abrigo para aqueles que estão em processo de finalização dos trabalhos de graduação, mestrado ou doutorado.

Casa das Bolachas: na prática, uma extensão da Reitoria da UFPR.

Nos horários de pico, a casa costuma estar repleta de pesquisadores. Degustam cafés e, obviamente, bolachas, enquanto papeiam com seus orientadores, discutindo de política nacional a literatura asiática. Contudo, mesmo a disponibilização de cadeiras acolchoadas, mesas de trabalho em grupo e o acesso à internet gratuita não parecem ser o suficiente para que estes estudantes deem ao local devido reconhecimento. Foram poucas as vezes que o termo Casa das Bolachas apareceu nos agradecimentos de artigos, teses e trabalhos que tiveram ali seu pontapé.

Mesmo não parecendo, a simpatia e afeição dos donos pelos estudantes garante que o café continue funcionando em horários não ortodoxos. E se engana quem pensa haver apenas livros e computadores nas mesas. A Casa das Bolachas ainda é uma opção para encontros entre amigos, casais apaixonados, ou entrevistas com profissionais de saúde aposentados.

É para isso que Rita chega. A beleza lendária da médica se confirma assim que puxa a porta de vidro da fachada. Sobe dois pequenos degraus em frente ao caixa, e quando chega ao pavimento principal do café, sempre bem iluminado por grandes luzes pêndulas, procura seu anfitrião daquela tarde. Elegante, com uma postura impecável e cordial, ela atravessa o salão enquanto os olhos de pesquisadora experiente busca, entre os fregueses ali sentados, a mesa em que se encontra o convidado.

O lugar escolhido fica encostado no canto esquerdo, perto de uma prateleira que expõe livros de cordel. Ao lado, um delicioso balcão com bolos, jarras de sucos, vitaminas de frutas e outros quitutes prontos para serem servidos. Uma localização estratégica.

— Você é o Pedro? – pergunta Rita.

Um simples aceno com a cabeça, e um sorriso de orelha a orelha do estudante ali sentado à espera, serve como resposta. Ela se aconchega, acomoda a bolsa ao chão, encaixa o casaco-sobretudo na cadeira e, com uma voz doce, declara o início de uma viagem ao passado, que continua no presente.

— Então, me diga – trazendo a cadeira para mais perto da mesa –, fiquei sabendo que você quer saber mais sobre aids.

Rita Esmanhoto e amigos nos anos 1980. Foto: Arquivo pessoal

A relação de Rita com a doença começa em 1984, quando atuava como médica e professora no Hospital das Clínicas da UFPR, o HC. Durante 60 anos de altos e baixos, o HC ostenta em 2020 o posto de terceiro maior hospital universitário do Brasil. Além de ser um marco na paisagem curitibana, sua pintura amarelo-mostarda, com mais de 12 pavimentos e um enorme “HC” escrito em vermelho sangue no topo, o torna reconhecível a distância. O hospital protagoniza as mais diversas lendas urbanas da capital paranaense. É um capítulo na história da saúde da cidade e um importante centro de referência em Curitiba.

Hoje aposentada, Rita gasta seu tempo sendo onipresente nas boas salas de cinema e de teatro, assim como contumaz leitora dos melhores lançamentos literários. Adora acompanhar as notícias em primeira mão e realiza algumas viagens mundo afora, especialmente para visitar sua filha, que mora nos Estados Unidos. Todos esses lazeres são realizados junto com o marido, Nizan Pereira Almeida, também professor e médico infectologista aposentado do HC-UFPR. O amor pela leitura, combinado com o conhecimento em saúde pública, rendeu ao casal um livro publicado em 1989, chamado Saúde das Cidades, inspirado nos princípios de uma reforma sanitária para Curitiba.

Perseverante em recusar que todos os seus dias virem eternos domingos, ela aproveita para aceitar os mais diversificados convites. Seja para palestras em aulas do ramo de infectologia, ou para dar entrevistas com um universitário.

— Começou com as classes altas — explica Rita, durante um tempo de conversa — E então… foi passando por um processo de pauperização, interiorização, até chegar ao resto da população.

O vocabulário robusto faz parte do cotidiano médico e pesquisador. Sempre com termos específicos para doenças e anomalias, além de expressões para efeitos sociais em decorrência da síndrome. A “pauperização” é como se chama o processo de empobrecimento que, no caso da aids, se deu quando passou a atingir as classes mais baixas e fora do estigmatizado “grupo de risco”, do qual falaremos mais à frente.

Rita trabalhou numa das que seriam as primeiras linhas de frente ao combate da epidemia de HIV na cidade, em 1984, ano em que foi registrado o primeiro caso do vírus na capital paranaense. Alguns dias antes de receber seu primeiro paciente infectado, ela seguia seu trabalho como qualquer outro especialista em doenças tropicais, nome dado aos infectologistas da época. Ao chegar ao HC numa manhã de outono daquele ano, sabia sobre a síndrome tanto quanto seus outros colegas: nada.

Jamais acreditou que em um curto período isso mudaria drasticamente. Não só Rita, como outros médicos no HC-UFPR em Curitiba, no Brasil e no mundo. Como diria a ensaísta norte-americana Susan Sontag, em A doença como metáfora, a aids e o HIV trouxeram à tona a verdade de que a medicina não está preparada para tudo. A médica encarava um novo desafio. Um trabalho que levaria tempo para colher resultados, mas que a cada ano ajudaria a salvar a vida de vários pacientes.

Depois de 35 anos e alguns poucos meses desde a entrevista na Casa das Bolachas, os médicos, em 2020, se viam em uma outra luta pela vida. A pandemia de Coronavírus (Sars-Cov-2) traria mais um desafio para os profissionais de saúde. Sem remédio. Sem vacina. Apenas máscaras, luvas e cuidados paliativos. Não mudou muita coisa nesse sentido, desde 1984. A medicina continua não preparada para tudo.

Na década de 1980, os médicos não tinham conhecimentos específicos sobre o que era, como transmitia e como se comportava aquele minúsculo micro-organismo. O medo percorria os pensamentos desses profissionais ora em forma de devaneios, ora pesadelos. Claro, quem não teria medo de um ser invisível que naquela época poderia tirar sua vida em um curto período de seis meses.

O vírus nas páginas de jornal

Sem computadores potentes ou smartphones, Rita e seus colegas tinham a imprensa como forma de se comunicar e saber do que acontecia no mundo. E assim como Rita se espantava com o novo vírus que surgia, a então jovem repórter da sucursal do jornal O Globo em Curitiba, Elza Oliveira Filha, recebia uma pauta pelo telex da redação. As primeiras reportagens sobre o tal de “câncer gay” eram trazidas pelas Agências Internacionais, assunto do qual Elza também não sabia nada, ou nada além de que ceifava a vida de homossexuais masculinos.

—Pessoalmente, no início, eu não lembro de ter medo –, explica Elza, alguns meses passados desde minha conversa com Rita.

—Você não ficou nem um pouco assustada?

—Eu era uma mulher de família e com vida regrada –, cai na gargalhada, com um grande sorriso. Não restam dúvidas sobre seu apelido, “Elzinha Coração”, repetido por colegas de profissão e estudantes universitários que se encantam com a simpatia e humor da profissional.

– Brincadeira, o vírus não via esse tipo de coisa –, emenda.

Depois da carreira na imprensa, Elza Filha abraçou a vida acadêmica. Atua como professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), uma instituição renomada e de importância no estado, mas que sofre com um grande problema da população paranaense. Alguns penam a entender que UTFPR e UFPR são lugares distintos. Ministra aulas no curso de Comunicação Organizacional desde 2010, mas foi jornalista pela área de saúde por um longo tempo. Além do jornal O Globo, passou por outros veículos nacionais, como O Estado de São Paulo; e os locais O Estado do Paraná e Folha de Londrina.

Elza Oliveira Filha.

Elza trabalhou com cobertura de HIV no período em que o nome da síndrome nem sequer tinha sido tipificado. Para acompanhar a epidemia da doença, nos anos 1980, dependia de notícias vindas do exterior, principalmente dos Estados Unidos, que identificavam um grande surto de Sarcoma de Kaposi, um tipo raro de câncer, em homens homossexuais nos estados de Nova Iorque e Califórnia. Em poucos anos, os especialistas entenderiam que as manchas negras que tomavam o corpo do paciente – um dos sintomas do sarcoma – estava ligado à baixa imunidade, uma das implicações mais severas na contaminação pelo vírus do HIV.

As manchas do sarcoma foram a principal identificação dos pacientes de aids. Esse símbolo ficou presente em produções jornalísticas, ao ilustrar a doença nas matérias de TV. Assim como em filmes, caso do Philadelphia (1993). A cena de reconhecimento da síndrome pelo personagem principal, Andrew Buckett (Tom Hanks), acontece quando tira a camisa e mostra suas manchas.

De início, os jornais estampavam a aids na editoria “Internacional”, como se fosse um problema europeu ou norte-americano. Conforme surgem os primeiros casos em celebridades brasileiras, abastecendo a indústria de boatos sobre contágios em famosos, o HIV mudou de lugar na imprensa. Passa a habitar o assunto de interesse nacional, local e os sites de fofoca. Entre as figuras públicas da imprensa estavam o cantor Cazuza; o jornalista e escritor Caio Fernando de Abreu; a atriz e dançarina Cláudia Magno; e o ator e diretor de teatro Carlos Augusto Strazzer.

Um senso comum era a culpabilização dos homens gays. A contaminação era o preço pago pela promiscuidade. Acreditava-se fielmente que era uma praga divina enviada aos homossexuais, que mereciam ter a doença por causa da “vida que levavam”. Os discursos se estendiam para profissionais do sexo e usuários de drogas. Essa ideia foi embasada pelas pesquisas feitas no Centro de Controle de Doenças dos EUA (CDC), nas quais se identificava que os homens contaminados tiveram mais que o triplo de parceiros sexuais do que os que não carregavam o vírus. Logo, era normal que se associasse a doença com um estilo de vida considerado depravado. Elza, sempre pensou diferente.

A jornalista não é uma pessoa tradicional. Ela carrega um símbolo que quebra padrões: o próprio nome. O banco de dados online, Forebears, mostra que Elza faz parte das poucas 5,082 pessoas no Brasil que possuem o sobrenome: Filha. Elza Oliveira Filha.

É comum que os filhos recebam o nome da figura do pai, como forma de continuar uma linhagem. Isso se chama agnome. No entanto, a predominância sempre é de nomes masculinos. Cerca de 54,149 pessoas tinham na ocasião da consulta o sobrenome Junior; 159,094 possuíam Filho; e 158,265 tinham Neto. Já Elza e as outras Filhas representam uma margem de 0,002% da população brasileira cujos pais resolveram dar continuidade às origens femininas.

Para além dessa quebra de padrões do patriarcado, ela convivia com amigos homossexuais – que não necessariamente portavam trejeitos femininos – e tinha consciência das dificuldades que viviam. Esse fato se intensificou principalmente com sua participação nos movimentos estudantis, na época da ditadura militar. E por ter acompanhado, mesmo que distante, a criação do Grupo Dignidade, que ocorreu quase que concomitantemente com o aparecimento da aids. O grupo é uma organização que luta pelos direitos da população LGBTQ em Curitiba. Mais recentemente, já na década de 2010, a sigla passa a ser LGBTQIA+.

—Me parece que a própria sociedade alimentava essa coisa mais promiscua da vida dos homossexuais. Tanto que tiveram de criar ambientes segregados para si mesmos –, relata Elza.

Para a população menos informada, a aids era sinônimo de promiscuidade. Para entender como se formaram esses preconceitos sobre a sexualidade do homossexual, é necessário fazer uma viagem ao passado. Casas noturnas, “banheirões” e saunas eram termos que os próprios médicos e jornalistas que cobriram a aids foram conhecer apenas um tempo depois. E estes existem por alguns motivos históricos.

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As relações homossexuais sempre precisaram de refúgios para existir. É comum espaços separados do resto da sociedade. Os LGBTQIA+ – naquela época, a sigla era GLS, para gays, lésbicas e simpatizantes –, se segregaram para ter seus convívios, sem julgamentos, ou mesmo sem perigo de discriminação e violência. Isso acontecia já na época do Brasil Imperial. Na então capital, Rio de Janeiro, existia um roteiro homossexual, que começava na Praça Floriano Peixoto e no Passeio Público. Seguia até a Cinelândia e Praça Tiradentes, passando por bairros como a Lapa. Esse trajeto foi mapeado pelo pesquisador norte-americano James N. Green, ao fazer um trabalho de referência sobre a homossexualidade no Brasil – o livro Além do carnaval (1999).

Os LGBTQIA+ preferem estar isolados, numa casa separada e longe dos outros, pois é o único momento em que podem viver a própria realidade. Surgem e permanecem até hoje bares e lugares que se vendem como LGBTQIA+ friendly, para que esse público possa frequentar sem ser discriminado.

O Código Penal Imperial de 1830, de d. Pedro I, retirava as referências à sodomia, termo que era usado para definir as relações íntimas homossexuais. Sodomia, em si, significa ato de penetração anal entre dois homens. Ou um homem que penetra em uma mulher pelo ânus. Essa parte do corpo sempre foi fetichizada e colocada sob a ótica de diversos tabus.

No meio heterossexual costuma ser visto com um símbolo de masculinidade nunca ter sido tocado ou estimulado sexualmente nessa região. É uma parte do corpo da qual não se deve aproximar, como se fosse a Zona de Exclusão de Chernobyl. Simplesmente, não vá. No entanto, nas relações homossexuais, o ânus e a penetração é a representação de um padrão hétero-normativo, na qual o passivo performaria o papel da mulher, a figura mais fraca e frágil que será penetrada. “Ou não”, como tudo o que diz respeito à sexualidade. Não vem ao caso agora.

Caio Fernando Abreu: vítima da Aids.

Com o governo republicano, em 1889, o preconceito em torno da sodomia e os tabus sobre o sexo anal voltam ao Código Penal, mantendo a discriminação de atividades eróticas entre pessoas do mesmo sexo. As novas leis, apesar de não punirem diretamente e especificamente essas atividades, promoviam a volta do pudor e da ordem nas grandes cidades. E desta forma, para tentar esconder e burlar as leis, foram criadas casas noturnas e bares que passaram a ser frequentado por homossexuais, principalmente das classes mais altas. Esses podiam arcar com os custos de uma festança e dar propina aos policiais. Carros e caminhões do Exército paravam na frente de boates e discotecas, frequentada por gays e travestis, para fazer enquadro nos fregueses acusados de atentado ao tal pudor.

Desses lugares, surgem também as saunas e casas de orgia. Com uma iluminação praticamente inexistente, homens podiam ter relações com todos. Sem se conhecer, sem se importar quem eram, onde moravam. Ou nem ao menos passarem pelo ritual romântico de chamar para tomar um café.

Isso se estende pela época da ditadura militar no Brasil (1964-1985). A censura a temas que eram relacionados ao sexo foi intensa e o regime queria garantir que estes assuntos não fossem debatidos. No entanto, ao mesmo tempo, movimentos LGBTQIA+ se juntavam com outros pró-democracia. Começavam a surgir e se organizar jornais e veículos antirregime com a temática homossexual, a exemplo do Lampião, jornal nanico que circulou entre 1978 e 1981, dentro do contexto da imprensa alternativa. Entre seus editores estavam o depois novelista Aguinaldo Silva e o escritor e ativista João Silvério Trevisan.

Nas regiões mais ricas, as propinas pagas por proprietários desses espaços para os militares permitiam que continuassem em funcionamento, mesmo no regime ditatorial. Como a maioria dos frequentadores eram ricos e membros das classes altas de São Paulo e Rio de Janeiro, muitos tinham condições financeiras, que permitiam viajar para os EUA e Europa. Voltavam ao Brasil inspirados no que provavelmente haviam visto pelas ruas de bairros tradicionalmente gays, como SoHo (Nova York) e Marais (Paris).

Além da moda, dos trejeitos, gírias e artigos de contracultura, é muito provável que nesse intercâmbio o HIV tenha pegado uma carona e vindo junto. Aproveitou o processo de abertura política de um país que viveu 21 anos de tortura e censura.

Não existe uma data certa sobre a chegada do vírus ao Brasil, mas sugere-se que tenha aterrissado em terras tupiniquins na década de 1970. O HIV não passou pela alfândega ou pediu um visto de residência permanente. Ele se instalou como um forasteiro. Os primeiros pacientes surgem nas grandes cidades apenas nos anos de 1983 e 1984, em homens com histórico de viagens ao exterior. Naquela época era uma realidade para poucos. Isso explica a doença atingir primeiro as classes mais abastadas, como Rita Esmanhoto comenta no início do capítulo.

E são esses pacientes que Rita atenderia em seu consultório e sobre os quais Elza escreveria páginas dos jornais. Mas se engana quem pensa que o HIV é coisa do passado. É uma realidade que vive até hoje, com suas diferenças, para melhor. Isso se dá graças ao trabalho de profissionais que encararam a linha de frente, fizeram da luta contra a aids o lugar em que habitam. Por causa deles e delas, hoje se morre muito pouco em decorrência da síndrome. O tratamento mudou, a forma de vida mudou. O vírus existe, mas é muito mais tratado e controlado do que antes.

O trabalho dos jornalistas que ajudaram a divulgar as informações sobre aids para as pessoas contribuiu para o entendimento como o vírus funciona. A impressa surge como uma educadora da sociedade, uma guardiã que ensinaria como se proteger e evitar a transmissão. A humanidade aprendeu junto com a ciência. E logo entendeu também que um simples abraço ou aperto de mão não transmitem o vírus. Transmite outros, como a gripe ou o coronavírus. Mas não o HIV.

Mesmo com tanto conhecimento científico, esse tal pudor, defendido desde a época Imperial, ainda parece falar mais alto. Preconceitos e estereótipos envolvendo a comunidade LGBTQIA+ persistem até hoje.,. Algumas associações ao “estilo de vida promíscuo” ou acusações de que o paciente “está a ter o que merece”, infelizmente, não são combatidos com um remédio.

A aids foi uma luta de Rita e de Elza e atualmente conta com novos personagens, João Silva. Judeu habitante de Curitiba, gosta de manter sua casa arrumada e critica a militância exacerbada do Twitter e Facebook. Dentre seus hobbies favoritos está ouvir música hebraica, ler literaturas robustas ou discutir política. Ele atua no Voluntários Arco-Íris, um grupo voltado para a população LGBTQIA+ em Curitiba.

Sentado no sofá, repleto de almofadas, ele prepara alguns drinks e se anima para uma noite com dois amigos e um convidado especial. O jovem universitário do livro é recebido com um abraço caloroso do homem judeu. A trilha sonora é uma música pop judaica, totalmente exótica para quem, como eu, não é fluente em hebraico, a exemplo de João.

No todo, estão quatro jovens. Um deles é o estudante de Economia pela UFPR, melhor amigo de João, e o outro é o colega de apartamento venezuelano, que vive temporariamente com Mário. Todos estão ali, divertindo-se e conversando. O anfitrião não precisa dizer que vive com HIV. Os quatro convidados sabem muito bem que não vai ser o ar ou o abraço que transmite o vírus. E isso foi possível com o aprendizado desses profissionais de saúde, que ajudaram não só João a entender mais sobre si mesmo, como a sociedade a perceber como funciona esse microscópico detalhe chamado HIV.

Obviamente não se deve culpar o “estilo de vida” de João. Diferente do que se acreditava em 1984, o vírus não é mais exclusivo dos homossexuais. O que se comprova nos dados do Ministério da Saúde: desde 2010, a exposição ao vírus em heterossexuais é líder de notificações. Foram então 87,5% casos de exposições em mulheres heterossexuais; 30,5% em homens héteros; e 20,1% em homens gays.

***

O papo vai e vem na noite.

Bebidas e mais bebidas. Tudo começa a ficar meio tonto.

– Eu acho que tem alguém precisando de um copo d’água aqui –, brinca João, que entrega o líquido no mesmo copo que havia bebido antes para o convidado da noite. Não tem problema. A saliva não carrega a virologia.

Depois de poucas duas horas, alguns vários copos de bebidas que persistem desde a década de 1987, como a Jurupinga, chega o momento de se despedir e agradecer o convite. Não há necessidade de se desinfectar. Passar álcool em gel. Nada.

Está tudo bem. Todos se divertiram naquela noite, sem que nenhum organismo microscópico atrapalhasse a aglomeração de amigos. Pois é 2019, e não 1984. E definitivamente não é 2020, quando o mundo se encontra em quarentena por causa da Covid-19.

Ao chegar em casa, com menos náusea, o universitário deste capítulo reflete alguns aprendizados. Tem dúvidas, mas chega a várias certezas. Pega o celular, com resquícios de bateria, e começa a escrever uma mensagem para uma provável fonte, que poderia lhe ajudar a entender mais sobre a aids. É um convite para tentar compreender como que eram essas relações em 1984. Como esses profissionais que trabalharam na saúde fizeram para combater esse vírus. Será que mudou muita coisa daquela época para agora? O que persistiu? Algumas coisas agora sabemos, mas como era a rotina de trabalho numa época em que se lutava uma guerra que a vitória era incerta?

A mensagem com inúmeros adjetivos e expressões para manter o máximo de polidez é enviada. Alguns poucos minutos, respondida com muito prazer por uma profissional que sabe bem sobre o tema.

“Onde você quer se encontrar?”, dizia o texto.

“Oi, Rita. Você conhece a Casa das Bolachas?”.

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