A curitibana que abriu caminho para solucionar a pobreza menstrual 

A designer Rafaella de Bona Gonçalves criou um absorvente multifuncional biodegradável para a população em condição vulnerável que hoje concorre a prêmio internacional

Se um dia a erradicação da pobreza menstrual for uma realidade no Brasil, pode ter certeza que a designer curitibana Rafaella de Bona Gonçalves esteve envolvida nisso. Aos 25 anos, Rafaella é conhecida internacionalmente pelos absorventes biodegradáveis voltados à população em situação de rua, projeto premiado pelo iF Design Talent, da Alemanha, e finalista do Young Inventors Prize, uma iniciativa do European Patent Office (EPO) que reconhece jovens inventores que desenvolveram soluções para enfrentar problemas globais.

Tudo começou em 2016, quando Rafaella decidiu prestar o vestibular da Universidade Federal do Paraná (UFPR) para o curso de Design de Produto sem que ninguém soubesse. Na época, ela cursava Engenharia Mecânica na instituição, mas sentia que não eram os problemas da indústria que queria resolver, e sim os da população. “Só contei para minha mãe no dia da prova. No fim das contas, porque estava sem pressão acabei passando em segundo lugar no curso”, conta, aos risos. 

Desde o início da faculdade, Rafaella tinha certeza de que queria trabalhar com Design social e sustentável e por isso, quando descobriu um curso sobre soluções de impacto social que abordava os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, sabia que precisava fazê-lo. No final da formação, os alunos deveriam propor um produto que solucionasse uma das ODS.

“A primeira delas, que é a erradicação da pobreza, me chamou atenção porque dizia: ‘acabar com a pobreza de todas as formas e em todos os lugares’. Fiquei pensando: ‘Como assim? Qual é a outra forma de pobreza que existe? Não fazia sentido, por isso achei interessante.”

Rafaella começou suas pesquisas com foco nas pessoas em situação de rua de Curitiba e descobriu que elas tinham muita dificuldade no período menstrual por não terem acesso a banheiros, água, itens de higiene pessoal e absorventes.

“Isso me assustou porque eu como mulher nunca tinha parado para pensar como outras mulheres, em situação de vulnerabilidade, passam pelo ciclo menstrual. E aí descobri que existia um nome para essa realidade: pobreza menstrual. Tava aí o outro tipo de pobreza que eu estava tanto procurando.” 

Rafaella de Bona Gonçalves

Assim nasceu o “Projeto Maria”, um absorvente interno descartável totalmente biodegradável voltado a mulheres em condição de rua. A ideia era que o produto fosse um rolo, semelhante ao do papel higiênico, que desenrola folhas conectadas de material absorvente de fibra de banana em camadas, as quais podem ser arrancadas, desdobradas e enroladas em tampões de qualquer tamanho.

Durante os dois meses que Rafaella teve para desenvolver o projeto, ela buscou relatos e estudos na internet a fim de entender as necessidades que o produto deveria atender. Era preciso ser um absorvente interno porque muitas vezes pessoas em situação de vulnerabilidade não têm roupa íntima e acabam customizando os absorventes externos em tampões – ou utilizam miolo de pão, jornais e pedaços de tecidos. Além disso, teria que ser descartável porque do contrário seria preciso fazer a higienização do produto, o que não é possível sem acesso à água potável e banheiro.

Um ano depois, o “Maria” ganhou visibilidade e Rafaella foi tendo cada vez mais contato tanto com pessoas que lutavam para combater a pobreza menstrual quanto com a população que enfrentava essa realidade. “A partir disso eu vi que muitas das coisas que eu tinha feito como requisito, na verdade, não se aderiam à realidade das pessoas em situação de rua.”

Por isso, em 2020, ela decidiu aprimorar o projeto e trazer todos os aspectos que não havia levado em consideração até aquele momento. “Comecei a falar com várias ONGs e campanhas que atuavam com pessoas em situação de vulnerabilidade, dentro e fora de Curitiba, e mostrei o primeiro projeto. Foi aí que caiu a realidade de que várias coisas precisavam mudar”, relata. 

Eu faço parte

Após diversas pesquisas, relatos e feedbacks nasceu o “Eu faço parte”, um absorvente multifuncional biodegradável projetado para ser de baixo custo e acessível por meio de modelos de negócios solidários. “Eu vejo muita diferença entre a criação que eu fiz sozinha (Maria) e essa que eu fiz em conjunto (Eu faço parte) e como essa é muito mais factível, comercializável e é o que realmente vai ajudar os usuários”, afirma.

Segundo Rafaella, o nome da campanha surgiu a partir do relato de uma mulher de 53 anos que vivia desde os 13 nas ruas. “Ela disse: ‘Eu nunca tive um absorvente na mão. Para mim isso é uma outra realidade, é para as pessoas que fazem parte da sociedade, e eu não faço’. Isso me pegou muito.”

A designer explica que os absorventes vêm em caixas de oito ou 16 unidades e que a identidade visual da embalagem foi pensada justamente para ser agênero. “Eu queria trazer não tanto o feminino, mas sim a diversidade.”

Ao contrário do “Maria”, o novo projeto é pensado para todas as pessoas que menstruam e que estão em alguma condição de vulnerabilidade. Além disso, enquanto o primeiro modelo havia sido projetado para ser distribuído gratuitamente pelos governos locais, a rentabilidade do “Eu faço parte” envolve a venda de um produto para doação de outro igual. Isso seria possibilitado com a caixa de responsabilidade social de empresas privadas, que disponibilizam um capital específico para financiar ou criar esse tipo de projeto.

“Eu conversei com diversos políticos para tentar a possibilidade de distribuição pelo governo. Mas o que eu ouvi foi: ‘Agora eu vou ter que me preocupar até com menstruação?’, ‘Mas se eu começar a entregar isso de graça para as pessoas elas vão continuar nas ruas, porque vai ser fácil se isso estiver disponível’, ‘É contra as leis distribuir absorventes nos postos de saúde’.”

Rafaella de Bona Gonçalves

Sem o apoio do poder público, a designer decidiu que o produto seria vendido na base de “compre um, doe um”. “Queria que todo mundo pudesse comprar o meu absorvente e que quando o fizesse ainda estaria ajudando outras pessoas.”

Na prática, toda vez que uma pessoa compra um pacote do “Eu faço parte”, outro é doado para os pontos focais da campanha, que são ONGs e instituições que atuam com pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica ou de encarceramento. Sabendo que provavelmente as mulheres que recebessem os pacotes doados não poderiam escolher se seria interno ou externo, Rafaella criou um produto que pudesse ser os dois: “Eu quis trazer essa possibilidade de escolha dentro do produto. Dá para usar externo, mas se quiser um interno basta destacar no meio e enrolar.”

Atualmente, os absorventes são feitos de forma manual pois o projeto ainda não tem condições de produzir em larga escala para ir ao mercado. É necessário investimento em maquinários para aprimorar a produção. Segundo Rafaella, em parceria com a startup baiana EcoCiclo, ela está desenvolvendo estudos com fibra de banana e bambu, celulose e espuma de soja para entender qual vai se aderir melhor ao produto e ao mercado. 

“A ideia está pronta, falta industrializar o produto. Mas os grandes objetivos de tudo isso que eu consegui atingir foi mostrar que era possível, eu estou com o absorvente aqui na minha mão, e fazer com que as pessoas falassem sobre pobreza menstrual.”

O projeto atual usa fibra de bambu para a primeira camada e fibra de banana e espuma de soja ou celulose para a segunda. A terceira camada é impermeável e biodegradável. Foto: Divulgação

Futuro

Seguindo o desejo de atuar com design sustentável e impacto social, Rafaella conta que, além do trabalho no combate a pobreza menstrual, ela está desenvolvendo o “Pioneiras”, projeto pensado para dar visibilidade e protagonismo às cafeicultoras do Norte Pioneiro do Paraná. “Hoje, mesmo fazendo o mesmo trabalho dos homens, que é a colheita do café, essas mulheres não são reconhecidas. Só com o design da embalagem conseguimos aumentar o valor do produto em 35%, que é justamente o valor que elas ganham a menos.”

Para o futuro, Rafaella pensa em ter uma empresa de Design que trabalhe com projetos de inovação e impacto social “para olhar para problemas que ninguém está olhando”.

“Essa é a minha grande proposta de vida. Eu não consigo trabalhar hoje sem ser para um propósito social. Mas eu não sou salvadora, nem heroína. Consigo ser a mediadora que traz essas discussões para que a solução seja encontrada ou criada. Não vai ser um produto que vai solucionar o problema, é todo um sistema que temos que mudar. Por isso eu gosto tanto de pensar no futuro, se eu quero um mundo diferente eu vou ter que criá-lo.”

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