Saudade daqueles liberais

Diogo Busse fala sobre a dificuldade se não ver quem pensa diferente como um inimigo

Saudade de quando a direita e os liberais tinham como referências Roberto Campos ou Mario Vargas Llosa. Ambos escreveram livros de memórias. O primeiro, “A Lanterna na Popa”, o segundo, “Peixe Na Água”, ambos muito interessantes. Me fizeram sentir falta de um tempo em que aprendíamos com quem tem visão diferente  da nossa e, sobretudo, mantínhamos muito respeito, até mesmo gratidão e admiração. Você pode discordar de suas ideias, mas aprenderá muito com elas, se não colocar em questionamento o caráter de seus defensores – no caso específico dos dois autores mencionados, não haveria indícios que motivassem um julgamento desse. Como qualquer diálogo construtivo e mutuamente enriquecedor, o certo seria colocar em questionamento as ideias e não o caráter da pessoa com quem diverge!

No mundo contemporâneo é cada vez mais raro se discutir as ideias. Assim que alguém se depara com a manifestação de uma opinião divergente, logo passa a desconstruir a pessoa que manifestou o argumento. Mesmo que não se saiba nada a respeito do interlocutor, este se torna repentinamente um adversário a ser eliminado. É muito louco.

Assim como “Bob Fields” e Vargas Llosa, eu também entendo que o desenvolvimento econômico é muito importante e que é preciso garantir meios materiais mínimos de existência com dignidade a todo e qualquer ser humano. Também defendo a desburocratização do Estado e acho que devemos tornar o país um ambiente mais favorável ao empreendedorismo. Contudo, não vejo desenvolvimento quando alguns avanços em termos de crescimento econômico caminham lado a lado com retrocessos gritantes em dimensões ainda mais fundamentais da nossa vida. É muito simplista e ilusória a ideia de que o mero crescimento econômico redundará automaticamente em garantia aos direitos fundamentais dos cidadãos. O desenvolvimento de um país, como um conceito mais amplo, leva em consideração muitas outras questões para ser avaliado e a primeira delas, talvez a mais importante, é o respeito e garantia aos direitos fundamentais dos cidadãos.

Na semana passada participei de uma roda de diálogo absolutamente enriquecedora sobre feminismo. Eu me sensibilizo com o sofrimento humano e se tem algo que me angustia é me deparar com casos de agressão e violência contra mulheres. Eu quero entender um pouco melhor como chegamos a este ponto e por que isso acontece. Acredito que as mulheres pioneiras do movimento feminista tiveram um papel revolucionário e fundamental ao questionarem a reprodução de alguns condicionamentos culturais aos quais fomos submetidos que explicam as violências das quais são vítimas há tanto tempo. Naquele momento, imagino, havia muito pouca condição de se debater o assunto com gente fora do próprio círculo feminista, muito menos com homens mergulhados na cultura de onde emerge o comportamento violento. Isso tem mudado e o fato de eu estar na ocasião em um painel realizado em um importante festival de criatividade em Curitiba, repleto de homens que ouviam as mulheres que coordenavam o debate sobre feminismo, talvez mostre que o momento agora é de ampliação dessa reflexão.

Ao abordar estes temas e provocar essa reflexão, tenho consciência do meu lugar de fala. O meu lugar de fala é o de um homem que convive com piadas em grupos de whatsapp, que reproduz, mesmo que inconscientemente, uma lógica machista em piadas cotidianas entre amigos, às vezes sem nem mesmo sem questionar ou perceber que isso pode ajudar a reproduzir uma lógica que gera muito sofrimento em muitas pessoas. Este texto é fruto da provocação de mulheres que me fizeram entender a importância de levarmos essa discussão para além das rodas feministas e quem sabe até aos ouvidos e, principalmente, aos corações dos homens que acabam protagonizando comportamentos machistas e agressivos.

Foi refletindo nessa roda de conversa, depois de ouvir a bonita fala de uma mulher transexual, que me veio à cabeça uma das possíveis explicações deste tipo de violência: a rotulação binária de padrões de sexualidade, fora dos quais as pessoas são consideradas aberrações. Pode parecer bobagem, mas não consigo imaginar sofrimento maior daquele ou daquela que tem a própria existência negada pela cultura da sociedade da qual faz parte. Se tem algo que pode ser ainda pior do que a dor física que vive a pessoa violentada, é a dor profunda e invisível de um ser humano levado a acreditar, desde a mais tenra idade, que o que se é, na essência, não é permitido e não será aceito no próprio seio familiar, bem como na comunidade em que se vive. Como se o que o ser humano é, na essência, fosse uma escolha. Pior, como se alguém tivesse o direito de escolher o que os outros devem ser – o que aprendemos que é normal.

Em um determinado momento, os participantes do painel começaram a discutir sobre o que um psicólogo chamou de ”masculinidade tóxica”. Quando um homem começa a ter problemas decorrentes da necessidade de manter os padrões para os quais foi preparado a vida inteira e esses problemas viram violência e agressão a outras pessoas. Nesse momento uma mulher falou que antes de chegar na violência, há um caminho percorrido de dor e muita luta que os homens travam ao longo da vida tentando provar que são ”machos.” Ela disse também que não conseguir fazer uma baliza ao estacionar o carro, ou não conseguir abrir um pote de geléia que sua companheira pediu para abrir, não o tornará menos homem. Mas será que um pouco menos de homem no homem não é uma coisa boa? Qual o problema de se tornar ”menos homem”? Se homem, nesse caso, significa a ideia de não se poder olhar para as próprias fragilidades e não se poder errar, é muito saudável que sejamos menos homens. Se vivemos em um mundo tão doente, isso se deve muito ao fato de termos sido governados ou liderados por homens ao longo de toda a história da humanidade. Homens que tiveram que provar durante todo esse tempo quem tem o pau maior.

E se iniciássemos um exercício? Um exercício diário: a partir de agora, sempre que pudermos, trocarmos os termos “homem” ou “mulher” por “ser-humano”. Intuo que isso irá causar uma grande revolução na sociedade. Os sentidos que atribuímos aos termos “homem” e “mulher” são culturalmente construídos e pouco tem a ver com a biologia. Se o que aprendemos ao longo de toda nossa vida nos faz acreditar que existem padrões dentro dos quais devemos nos encaixar, enquanto o coração de milhões de seres humanos grita uma coisa diferente em todo o mundo, e que a crença nesses padrões gera muita dor e sofrimento em quem é marginalizado por não se adequar a esta construção ideal, por que não questionar isso que aprendemos? Ainda mais sabendo que muito do que aprendemos é decorrente de razões obscuras ligadas à religião, manutenção de poder, domesticação de pensamento e controle dos corpos de cidadãos. Se o meu próprio preconceito pode gerar uma das piores dores a outro ser humano, que é a dor de não ser aceito como se é, então eu devo assumir a responsabilidade inalienável de me livrar do preconceito. Para isso, é fundamental entender o contexto histórico e cultural de onde ele surge em nós. Demanda coragem, empatia e disposição para enxergar-se a si mesmo.

E o que uma roda de conversa sobre feminismo e transexualidade tem a ver com desenvolvimento econômico?

Vivemos em um país em que 57,7 milhões de pessoas elegeram um presidente misógino, racista e preconceituoso, sob o principal argumento de que é preciso melhorar a economia. Se você escolheu Jair Bolsonaro como presidente da república porque acredita que a economia precisa melhorar, você também precisa saber que a vida de muitos seres humanos tem piorado e ficado ainda mais difícil porque a disseminação do pensamento bolsonarista nega a eles o próprio direito de existir.

Como eu disse no início no texto, também acho que é preciso melhorar a economia, mas não a custo de tanto sofrimento. Não a custo de violência contra milhões de outros cidadãos brasileiros. Jamais a custo de tanta destruição – não somente de vida humana, mas também de recursos naturais, sem os quais nenhuma vida no planeta será capaz de subsistir. Existem dimensões da vida em sociedade que são ainda mais importantes que a dimensão material. Dimensões que dizem respeito à nossa existência, à vida de outras gerações que ainda nascerão, à dignidade de todo e qualquer ser humano e ao seu direito de ser reconhecido e respeitado como tal. Dimensões que, justamente por conta da sua fundamentalidade, não se submetem à logica do mercado.

Não se pode relativizar uma fala que legitima a violência de uma pessoa, muito menos quando essa fala vem do principal mandatário de um país. Essa fala tem um poder simbólico que demanda muita responsabilidade. Uma legião de homens violentos hoje sente-se legitimada a violentar porque o presidente do país negligencia e até reproduz os padrões que levam à violência contra a mulher. Uma legião de servidores responsáveis pela segurança pública sente-se tranquila para extrapolar os limites dentro dos quais esse profissionais são obrigados a agir porque, novamente, foi legitimada.

É preciso ter coragem para olhar para as próprias fragilidades, para as próprias sombras e refletirmos sobre quais valores devem prevalecer em tempos tão sinistros. A inclusão de homens no debate sobre o feminismo é muito importante para uma mudança cultural, mas a inclusão nessa discussão de pessoas que acham que a economia é a coisa mais importante para o país melhorar também é, porque foi com base nessa crença que escolheram um governo que violenta e agride diariamente. Governo que é formado por gente que apresenta questões sexuais evidentemente mal resolvidas. Não se pode negar que essa escolha gera sofrimento e dor a muitas pessoas e que para a economia melhorar, não precisamos abrir mão de conquistas da humanidade que só foram alcançadas depois de muita luta, sangue derramado e, graças ao retorno de uma cultura que já deveria ter ido abandonada, o sangue de muitas mulheres. Mulheres demais.

Será que é “macheza” mesmo dessa turma que se preocupa demasiadamente com os órgãos genitais alheios e com o que fazem com eles, ou é covardia por não se permitirem fazer o que profundamente desejam? Macho mesmo, nesse sentido que tanto lhes é caro, o de autoafirmação, é aquele que se permite viver como se é, sem culpa e sem projeção das próprias frustrações no outro, é quem enfrenta os próprios preconceitos e está disposto a se melhorar como ser humano. Corajoso é quem se permite ser feliz, se alegra também com a felicidade alheia e não procura ofuscá-la no coração dos outros.

Como ouvi em um vídeo recente do canal Meteoro Brasil, uma das melhores coisas acontecendo no Youtube hoje, “se alguém achou que o ódio seria amenizado pela importância do novo cargo que ocupa, errou e errou feio. Quem queria Bolsonaro em nome de um governo conservador, ficou sem, porque isso não é conservadorismo. Bolsonaro não está aí pra conservar, ele está aí para destruir.”

Que saudade daqueles liberais…

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