Sob Bolsonaro, refugiados paraguaios vivem medo de extradição

Três membros do Patria Libre estão no Brasil desde 2003

Três paraguaios refugiados no Brasil há 16 anos estão às vésperas de uma semana decisiva: na próxima sexta-feira (14), o Conselho Nacional para Refugiados (Conare) vai julgar um pedido apresentado pelo governo do Paraguai de revisão do processo que concedeu o refúgio aos estrangeiros. Esta é a quarta vez que o Paraguai tenta dar um passo no sentido de conseguir a extradição do trio – nas outras três, a solicitação foi rejeitada por unanimidade. Após a eleição de Jair Bolsonaro (PSL), no entanto, o caso ganhou contorno mais políticos.

Em março, quando o presidente paraguaio, Mario Abdo Benítez, visitou o Brasil a extradição dos três refugiados foi um dos temas centrais da pauta. Na ocasião, Bolsonaro manifestou que a intenção era “devolver todo mundo” e, em seguida, aludiu ao caso do italiano Cesare Battisti, extraditado neste ano. “O Brasil e nosso governo não dará asilo a terroristas ou qualquer outro bandido escondido aqui como preso ou refugiado político”, disse à época.

O pedido de revisão da concessão de refúgio aos três paraguaios começou a se desenhar em 29 de outubro do ano passado, exatamente um dia depois da eleição de Bolsonaro. Na ocasião, Benítez declarou, no Twitter, que pediria a extradição dos ativistas. O governo do Paraguai também chegou a pôr a cabeça dos refugiados a prêmio, oferecendo uma recompensa de 500 milhões de guaranis (R$ 300 mil) por informações que levassem à sua captura.

O caso

Juan Arrom Suhurt, Anuncio Martí Mendez e Victor Colman Ortega eram líderes do partido Patria Libre – de esquerda – e, de acordo com o processo, foram sequestrados por policiais, militares e agentes do governo, em 17 de janeiro de 2002. Eles alegam ter sido torturados para que confessassem envolvimento no sequestro da mulher de um dos empresários mais ricos do país, ocorrido no ano anterior. Colman ficou detido por poucas horas. Arrom e Martí permaneceram em cárcere privado por 14 dias.

“Ficamos vários dias em prisões clandestinas e fomos torturados por policiais paraguaios, de toda forma que você possa imaginar”, disse Arrom, em entrevista exclusiva ao Plural.

As alegações de tortura são atestadas por exames físicos e psicológicos, cujos laudos integram o processo – e aos quais o Plural teve acesso. As perícias apontam que Arrom, por exemplo, apresentava “diversos ferimentos na cabeça, abdômen, geniais externos, membros inferiores”, além de “diversos traumatismos” provocados por “armas contundentes naturais (mãos e pés) e armas contundentes propriamente ditas”. O exame psicológico mais recente – de janeiro de 2019 –, revela que, ainda hoje, os três sofrem consequências das violações – como elevados níveis de estresse, angústia, terror e sensações contínuas de flashback.

Após terem sido resgatados do cárcere privado, os três chegaram a ser presos no Paraguai, mas conseguiram um habeas corpus na Justiça. Eles vieram, então, ao Brasil e em agosto de 2003 entraram com o pedido de refúgio, que foi concedido por unanimidade no Conare. Na ocasião, o conselho reconheceu que os três sofreram “violações atrozes” e que corriam riscos caso fossem mandados de volta ao Paraguai. Eles ainda respondem pelo sequestro no Paraguai, embora neguem participação no crime.

Tentativas de revisão

O Paraguai deflagrou outras três tentativas de extraditar os ativistas do Patria Livre – em 2004, 2006 e 2010. Em todas essas ocasiões, o governo do país vizinho pediu a exclusão do refúgio (quando a pessoa não se enquadra nos pré-requisitos para ser considerada refugiado) ou a perda do status (o que pode ocorrer quando o refugiado pratica um ato incompatível com a condição). Em todas essas vezes, no entanto, o Conare ratificou a decisão anterior e manteve o refúgio aos paraguaios.

Em janeiro de 2019, ante as manifestações de Benítez – que sinalizava que faria uma nova investida contra os refugiados –, a defesa dos três paraguaios ajuizou um mandado de segurança preventivo na Justiça paraguaia, tentando impedir a instauração de um eventual pedido de exclusão, cessão ou perda do refúgio concedido aos ativistas. Entretanto, o pedido foi negado liminarmente.

Com o novo pedido apresentado pelo governo do Paraguai, o Conare instaurou, no início de maio, um novo processo para revisar a concessão do refúgio aos ex-membros do Patria Libre. Foi o primeiro procedimento instaurado desde que os três foram reconhecidos como refugiados. Em 31 de maio, os advogados dos paraguaios apresentaram a defesa prévia ao Conare. Entidades de defesa dos migrantes, como a Caritas, Acnur e Instituto Migração e Direitos Humanos também se manifestaram pela manutenção do refúgio aos ativistas.

“O pedido [do Paraguai] não faz o menor sentido. Para haver a cessação [do status de refugiado], o estrangeiro precisa querer que sua condição de refúgio seja cessada, o que manifestamente não é o caso. Eles não têm a menor intenção de voltar ao Paraguai”, disse a advogada Caroline Godoi, que integra a defesa dos paraguaios. “Eles sofreram formas atrozes de perseguição e tortura. Isso impede a cessação do refúgio, ainda que se considere que a situação do país tenha mudado. A cessação do refúgio não é ato discricionário. É vinculado às diretrizes nacionais e internacionais de proteção ao refugiado. Isso tem que ser respeitado”, acrescentou.

Decisão e parecer

As movimentações recentes em torno do caso, contudo, não são nada positivas aos ativistas. No último dia 5,  Corte Interamericana de Direitos Humanos absolveu o governo do Paraguai, denunciado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que apontava que os paraguaios sofreram torturas e violações judiciais. A Corte considerou que não havia provas suficientes para comprovar que os ex-membros do Patria Libre foram sequestrados e torturados e de que o governo paraguaio não teria investigado as supostas violações sofridas por eles.

Outro indicativo é que o coordenador-geral do Conare, Bernardo Laferté, já elaborou seu parecer, em que aponta que a condição de refugiado dos três deve ser cessada, com base no artigo 38 da Lei 9.747/97 (Estatuto dos Refugiados) – mais precisamente, no inciso V, que diz que o status deve ser cessado quando o estrangeiro “não puder mais continuar a recusar a proteção do país de que é nacional, por terem deixado de existir as circunstâncias das quais foi reconhecido como refugiado”.

“Parece-nos estar diante de uma situação onde não mais a proteção internacional, conferida por intermédio do instituto do refúgio, se faz presente, tendo em vista a atual ausência de fundado temor de perseguição”, consta do parecer de Laferté, que representa o Ministério da Justiça – de Sergio Moro.

Paralelamente, os advogados dos refugiados ajuizaram um pedido de habeas corpus preventivo no Supremo Tribunal Federal (STF), tentando suspender o processo de revisão do refúgio e impedir qualquer pedido extradição apresentado pelo governo do Paraguai. Mas o ministro Dias Toffoli rejeitou o pedido de liminar. A demanda, agora, precisa ser apreciada pelo colegiado da Corte.

Guerrilheiros?

Nos pedidos anteriores, o governo do Paraguai insistiu na tese de que os refugiados eram guerrilheiros, vinculados ao Ejército del Pueblo Paraguayo (EPP). Nos processos, chegou-se a apontar a suposta relação dos três com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), com base, principalmente, em matérias de jornais paraguaios em e-mails que foram apresentados ao Conare. Ao longo das análises anteriores, no entanto, o comitê apontou que nunca foram apresentadas provas concretas da eventual vinculação dos refugiados a esses grupos. Os e-mails anexados ao processo já haviam sido analisados pela Suprema Corte da Colômbia e declarados nulos para efeito de prova.

Por outro lado, os paraguaios apontam envolvimento direto de autoridades do alto escalão do Paraguai na operação que os sequestrou e os torturou. Entre os citados, estão o atual vice-presidente Hugo Velázquez e a procuradora-geral Sandra Quiñonez. “Ela forneceu sete testemunhas, todas parentes dela, para absolver um chefe de investigação judiciária que estava envolvido em nosso sequestro e tortura”, disse Arrom. “Teve muitas autoridades envolvidas. Naquela época, teve dois ministros envolvidos, que o próprio governo reconheceu e demitiu”, acrescentou.

Hoje, Arrom mora em Curitiba. É cientista político e mestrando na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Além de sua militância no Patria Libre, foi líder universitário na luta contra a ditadura de Alfredo Stroessner. Na entrevista ao Plural, ele manifestou esperança em que o Conare ratifique a decisão que concedeu o refúgio s ele e seus dois colegas. “Voltar ao país de origem tem que ser uma decisão explícita do refugiado. Não pode ser imposta. A gente confia, então, que o Conare vai manter o refúgio”, avaliou.

Em relação às acusações de terrorismo, ele as classificou como mero “discurso”. Arrom afirmou que ele e os outros dois refugiados jamais tiveram contato com qualquer grupo guerrilheiro e que sua atuação se restringia ao campo político. “Isso é um absurdo. Criam todo um discurso para tentar nos envolver. Desde que chegamos aqui, em 2003, não participamos nem teríamos condições de participar de qualquer atividade política, porque sequer temos condições de comunicação com nossas famílias. Pra você ver a nossa condição de precariedade.

Colman vive na região metropolitana de Curitiba, onde trabalha numa pequena fábrica de roupas. No Paraguai, foi líder de movimentos de moradia e integrante de um setor de igreja católica que se opunha à ditadura de Stroessner. Marti, por sua vez, é jornalista, poeta e mestre pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (MS). Ao longo do regime militar, foi preso e torturado. Atualmente, mora em Dourados.

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