Quando o Paraná esqueceu que o Estado era laico

Governador tirou dinheiro da educação para dar à Igreja. Intelectuais que protestaram foram condenados à cadeia

Católico fervoroso, Caetano Munhoz da Rocha transformou o governo paranaense em uma extensão de seus interesses particulares, sobretudo os que iam ao encontro da Igreja Católica no estado. Natural de Antonina, ele comandou o Paraná por oito anos seguidos, de 1920 a 1928, e não cansou de nomear para cargos oficiais de seu governo e também como professores diversos padres ou fanáticos religiosos como ele. O episódio mais grave, porém, estaria por vir. Durante o início de seu segundo governo, no ano de 1925, Caetano (espécie de FHC dos anos 1920, já que ele mesmo havia criado a possibilidade de sua reeleição) retirou do orçamento destinado à educação verbas para a construção de igrejas e dioceses no Paraná. Intelectuais que questionaram a atitude foram perseguidos e presos. Era o governo paranaense esquecendo que, já naquela época, o Estado era laico.

A crise com os defensores do Estado laico (garantido pela Constituição de 1891) começou com a criação das dioceses de Ponta Grossa e Jacarezinho. Cedendo às pressões da cúpula da Igreja Católica, o governador Caetano Munhoz da Rocha (não confundir com Bento Munhoz da Rocha, seu filho, que governaria o estado nos anos 1950) prontificou-se a tomar as medidas para destinar repasse público ao patrimônio das novas dioceses.

Além disso, o governo contribuiu financeiramente para a elevação de Curitiba à Arquidiocese e para a construção da Prelazia de Foz do Iguaçu.
O governador enviou o projeto ao Poder Legislativo e nem foi preciso se preocupar. Como o governador contava com o apoio da maioria dos deputados, o projeto foi aprovado sem a menor dificuldade.

Caetano Munhoz da Rocha: católico fervoroso.

Em março de 1925, pela lei nº 2343, o Estado destinava 160 contos de réis para o patrimônio da diocese de Ponta Grossa e a mesma quantia para o da Diocese de Jacarezinho. Em carta, Munhoz chegou a pedir que as duas dioceses fossem criadas o quanto antes e que, na mesma data, fossem nomeados os titulares. As dioceses foram inauguradas em 1926.

O professor aposentado da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Carlos Balhana, que pesquisou o assunto em sua dissertação de mestrado, relata que a amizade entre o bispo curitibano Dom José Francisco Braga e o Munhoz da Rocha foi preponderante para que as amarras entre a Igreja Católica e o Estado fossem costuradas. “Caetano tirou dinheiro que era da educação para a construção de dioceses no estado. Esse repasse foi doado para a Igreja. Na época, a Igreja estava crescendo no Paraná e Caetano viu essa tática como uma forma de agradar a instituição e ganhar apoio político”, afirma. De fato, após o término do mandato como governador, Munhoz da Rocha foi eleito senador.

Para isso, eram necessários recursos do Estado para que a Igreja conseguisse formar seu patrimônio. A situação rebelou parcela da população. “Como poderia o Estado, que é laico, destinar dinheiro público para uma instituição religiosa?”, indagavam os líderes anticlericais da época. Munhoz da Rocha foi acusado de ser manipulado pelo clero e sofreu diversas críticas.

Na época, a Igreja estava crescendo no Paraná e Caetano viu essa tática como uma forma de agradar a instituição e ganhar apoio político

Carlos Balhana, professor da UFPR.

O historiador e pesquisador Renato Carneiro, autor da obra “Religião e Política”, aponta que Dom Braga conseguiu o comprometimento do governador Munhoz da Rocha com a criação das novas dioceses de Ponta Grossa e Jacarezinho. “Apesar de o país viver uma época de separação radical entre a Igreja e o Estado, Munhoz da Rocha contribuiu decididamente com a Igreja ao subvencionar diversas obras da Diocese de Curitiba e da Igreja em geral”, afirma. Além das novas dioceses, o governo contribuiu financeiramente para a elevação de Curitiba à Arquidiocese e para a construção da Prelazia de Foz do Iguaçu.

Intelectuais e evangélicos protestam

O assunto virou alvo de artigos nas páginas dos periódicos da capital paranaense. O Centro de Propaganda do Positivismo do Paraná, do qual muitos intelectuais eram membros ou simpatizantes – incluindo o poeta e escritor Dario Vellozo – publicou uma nota no jornal O Dia em 3 de março de 1925 “em defesa do regime republicano e de acordo com os supremos interesses da humanidade”.

Considerando o ato de Munhoz da Rocha uma “flagrante inconstitucionalidade”, o artigo ressaltava o “princípio de separação dos dois poderes, espiritual e temporal, consagrado, em grande parte, pela nossa constituição republicana”. No mesmo artigo, os autores ressaltaram que a Constituição da época pregava a “separação radical e insofismável entre Igreja e Estado”.

No dia 6, no mesmo periódico, as Igrejas evangélicas do estado emitiram um comunicado em que se manifestaram contrárias à decisão de Munhoz da Rocha e questionaram as razões pelas quais o governador destinaria recursos públicos para a Igreja Católica. “Seria uma clamorosa inconstitucionalidade dispor desse dinheiro e sustentar com ele o luxo eclesiástico de uma determinada religião”.

Encabeçado pelo poeta e escritor Dario Vellozo, um grupo formado por intelectuais, membros da igreja presbiteriana e adeptos do espiritismo enviou um telegrama ao mandatário do estado questionando as ações do governo. Afinal, a medida ia diretamente contra a Constituição , que pregava a laicidade do Estado. O mesmo documento foi publicado no dia 7 de março de 1925 pelos jornais O Dia, Diário da Tarde e O Comércio do Paraná.

“Seria uma clamorosa inconstitucionalidade dispor desse dinheiro e sustentar com ele o luxo eclesiástico de uma determinada religião”

Artigo publicado por igrejas evangélicas contra a decisão de Munhoz da Rocha.

A nota intitulada “O patrimônio dos bispados”, conforme consta na edição do jornal O Dia, caracterizou a ação de Munhoz da Rocha como um golpe constitucional. “Um terrível absurdo e clamoroso atentado contra Constituição que proíbe União e Estados a intervir em questões religiosas prestigiando quaisquer facções”, dizia um dos trechos. Segundo o documento, o governado estaria falseando leis para satisfação dos caprichos pessoais. “Romper a Constituição fazendo distinções absurdas, criando privilégios, é atentar contra direitos, preparando dias sombrios para futuro”, ressaltava o telegrama.

Sem pestanejar, Munhoz da Rocha respondeu aos questionamentos: “Quanto mais bradarem, mais serei capaz de ir aumentando o auxílio”, disse.  

“Na verdade, eu mesmo sugeri a ideia em Mensagem ao Congresso Legislativo, sancionei a Lei de autorização, expedi o decreto fixando a quantia do auxilio e abrindo o necessário crédito. Mandei efetuar o pagamento. Assim fiz consultando os altos interesses do Estado, pois a criação dos novos Bispados e a elevação de Curitiba à Arquidiocese, se tinham grande alcance de ordem moral e espiritual, constituíam igualmente uma segurança de incalculáveis benefícios de ordem material… E fiz muito bem”, chegou a assumir o governador, segundo o artigo ‘Um grande vulto do catolicismo no Paraná’ publicado na Revista do Circulo de Estudos Bandeirantes de 1944 e assinado por Loureiro Fernandes.

Mas sua resposta não se limitou em rebater os críticos. O governo passou a perseguir o grupo. Três dias após a publicação do telegrama, Munhoz da Rocha determinou a suspensão por 90 dias de Dario Vellozo, então professor de história do Ginásio Paranaense. A alegação era de que Vellozo teria quebrado “a disciplina funcional manifestada publicamente nos termos insolentes dirigidos aos Poderes Executivo e Legislativo do estado, expressos no telegrama que assinou”.

Era apenas o primeiro ato de Munhoz da Rocha. No dia seguinte, Vellozo, Flavio Luz, Lins e Vasconcellos, Julio César Hauer e Luiz Lenz Araújo César, que também assinaram o telegrama, foram processados criminalmente pelo Estado.

Após o trâmite processual, eles foram condenados a um ano de prisão e pagamento de multa de 14 contos de réis. Recorreram e foram soltos por habeas corpus que lhes foi concedido pelo Tribunal de Justiça em 1926, anulando a decisão da primeira instância do judiciário. O Governo paranaense recorreu da decisão, mas o Superior Tribunal de Justiça manteve a absolvição.

Dario Vellozo: pena de prisão por telegrama pedindo Estado laico.

Na época, Vellozo era um dos principais e um dos mais respeitados nomes ligado às letras no estado. Foi autor de livros de ficção, poesia, história e filosofia, entre eles “Ephemeras” (1890), “Esquifes” (1896), “Hélicon” (1908) e “Livro de Alyr” (1920).Fez parte do Movimento Simbolista no Paraná. Vellozo, ao lado de Júlio Perneta, Silveira Neto e Antonio Braga, formou o grupo “O Cenáculo”, que editou uma revista simbolista de mesmo nome entre 1895 e 1897.

As dioceses e a força política

O projeto da criação das dioceses de Ponta Grossa e Jacarezinho e também a elevação de Curitiba à Arquidiocese estão ligados a um processo de criação de uma jurisdição eclesiástica que iria adquirir contornos políticos e sociais muito fortes, envolvendo a população em geral e, principalmente, as elites locais e regionais. Segundo a pesquisadora Rosângela Zulian, doutora em História Cultural, ao que tudo indica, antes mesmo da confirmação da criação da diocese em Ponta Grossa muitos já sabiam que o governo iria ajudar.

Em uma carta enviada ao núncio apostólico do Brasil, Dom Henrique Gasparri, o bispo curitibano Dom João Francisco Braga comentou, em 1924, que o então senador Affonso Camargo difundiu a notícia de que brevemente haveria ali a sede de uma diocese. Além disso, o bispo citou o interesse do governador Caetano Munhoz da Rocha em ajudar a Igreja Católica.

“Quanto mais bradarem, mais serei capaz de ir aumentando o auxílio”

Caetano Munhoz da Rocha

“Piedoso católico, e pode-se dizer, entusiasta mesmo, é o atual presidente do Estado (Caetano Munhoz da Rocha). Ao regressarem de Ponta Grossa, no dia 8 de maio (sic), disse-me no trem o Presidente, que havia recebido do Ministério do Exterior uma comunicação particular que viria aqui um ‘Visitador Apostólico’ e que ele, presidente, se lembrava em Ponta Grossa de auscultar personagens influentes a respeito da criação de um bispado ali e que estes personagens se haviam mostrados dispostos a contribuir”, escreveu o bispo.

De acordo com a professora Rosângela, ao informar o bispo sobre a vinda de um visitador apostólico, informação que recebera pessoalmente do Ministério do Exterior, Munhoz da Rocha revelou notícias em primeira mão e, até então, confidenciais. “O empenho da população era fundamental, especialmente daqueles política e economicamente influentes, que poderiam facilitar o andamento do processo, como era o caso de Affonso Alves de Camargo e Caetano Munhoz da Rocha”, completa a pesquisadora.

 Ela ainda destaca, em sua pesquisa, que o governador Munhoz da Rocha acreditava que a possibilidade de uma projeção nacional através da promoção de Curitiba à arquidiocese traria progresso material ao Paraná.

Conforme também destaca o pesquisador Névio de Campos, a administração de Munhoz da Rocha esteve marcadamente interessada em servir aos projetos do catolicismo. “Certamente que a aliança entre Estado e Igreja interessava a ambos, pois o Estado buscava legitimar seu poder com o aval da Igreja, e a Igreja esperava que o Estado se tornasse um instrumento de colaboração no processo de constituição de seus valores na sociedade brasileira”, enfatiza.

Curiosidades de Caetano Munhoz da Rocha

Em vias de terminar seu primeiro mandato como governador, Caetano Munhoz da Rocha arquitetou juntamente com o Poder Legislativo uma reforma constitucional para permitir a reeleição. Sem adversários, Caetano foi eleito para novos quatro anos comandando o Paraná.

Vislumbrou a construção do Porto de Paranaguá. Chegou a contratar as obras, que mais tarde foram paralisadas, e que só foram terminadas no governo de Manoel Ribas, em 1934. 

Por ocasião do 1º centenário da Independência do Brasil, aboliu a Bandeira do Paraná, mas não por motivos de caráter estético ou incoerências heráldicas, mas como inspiração do unitarismo político. O Hino do Paraná ganhou o mesmo destino. Esses símbolos foram restabelecidos mais tarde, pelo governador Moisés Lupion em 1950. 

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