O Brasil vive um estado de calamidade pública, no qual a maior preocupação está em controlar a expansão do coronavírus. Com a atenção voltada à saúde, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) emitiu um despacho recomendando que órgãos ambientais, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e o Instituto Chico Mendes (ICMBio), apliquem regras mais brandas para os produtores rurais que estiveram explorando áreas ditas como consolidadas nas regiões de domínio da Mata Atlântica.
A ideia é que as medidas sejam aplicadas aos donos de áreas de exploração de terras que já tinham atividades econômicas funcionando entre os anos de 1995 e 2008. O documento também autoriza, na prática, que áreas consideradas irregulares e ilegais pela Lei da Mata Atlântica não precisem mais ser recuperadas.
O governo pede que não seja mais aplicada a lei que regulamenta a proteção dos remanescentes florestais e o uso desse bioma. Nesse caso, os produtores passam a ser submetidos ao Código Florestal e podem solicitar o cancelamento de multas.
O diretor de Políticas Públicas da Fundação SOS Mata Atlântica, Mario Mantovani, destaca que a lei contém características da vegetação de cada estado brasileiro e nunca houve nenhum conflito sobre ela. Para o diretor, a medida é altamente prejudicial, inclusive para o agronegócio, em um momento no qual o mercado está cada vez mais exigente. “Não há qualquer justificativa ética ou moral para que essa recomendação seja seguida”, diz.
De acordo com a Convenção sobre Diversidade Biológica, a sobrevivência de um bioma depende diretamente da sua vegetação nativa, que deve ser de no mínimo 20%. No caso da Mata Atlântica, esse número chega a 12%. Sobre isso, Mantovani destaca que o Paraná é o estado onde há maior contestação sobre a lei que protege esse bioma. Segundo ele, foi criado um terrorismo sobre a aplicação da norma.
Mata Atlântica em risco
Os últimos dados divulgados pela Fundação SOS Mata Atlântica apontam que o Paraná é o terceiro estado que mais desmata no Brasil. Só entre outubro de 2017 e outubro de 2018 foram desmatados 2.049 hectares de terra. Os primeiros colocados no ranking são Minas Gerais (3.379) e Piauí (2.100).
Segundo o coordenador-geral da Rede de ONGs da Mata Atlântica, João de Deus Medeiros, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, demonstra total descaso ao recomendar a desobediência da legislação que protege o bioma há anos. Ele adverte que mais de 50% dos danos causados por empreendimentos no Meio Ambiente do Brasil estão na Mata Atlântica.
João de Deus também é um dos conselheiros do Observatório de Justiça e Conservação (OJC) – organização que trabalha fiscalizando ações do poder público referentes a prática de corrupção e incoerências legais na conservação da biodiversidade. Para ele, o despacho vem com a proposta de fugir da obrigação de se recuperar vegetações nativas.
Nesse sentido, a recomendação do governo desobriga o produtor a fazer reposição de terras, desde que preencha o Cadastro Ambiental Rural e comece a aderir ao Programa de Regularização Ambiental (PRA). “A medida deixa de respeitar uma lei específica; é uma anistia ilegal do Ministério do Meio Ambiente”, afirma João.
Vegetação nativa combate as secas
Para o diretor da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), Clóvis Borges, o despacho do ministro do Meio Ambiente mostra que há um alinhamento dos órgãos públicos para atender ao lobby do setor ruralista.
Borges ressalta que a preservação e recuperação das vegetações nativas são benéficas no combate às secas prolongadas. Durante as chuvas, as áreas naturais que já fazem parte daquela região funcionam como uma esponja e seguram a água em um tempo maior, mesmo durante os períodos de estiagens.
O que diz o Ministério Público
Alexandre Gaio, promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná (MP-PR), enfatiza que deixar de aplicar a Lei da Mata Atlântica subverte e afronta a ordem jurídica. Além disso, a medida traz prejuízos socioambientais ao anistiar crimes praticados em prejuízo da mata. “Não se pode esquecer ainda os incalculáveis prejuízos à segurança hídrica a partir da consolidação desses desmatamentos”, pondera.
Gaio observa que há uma articulação nacional dos Ministérios Públicos Estaduais e Federal para entrar na Justiça nos 17 estados que formam o bioma. Essa contestação também tem a participação de fundações ligadas à Mata Atlântica. A ideia é cobrar que os órgãos ambientais estaduais e superintendências do Ibama não apliquem a recomendação do ministro do Meio Ambiente.