Bolsonaristas querem transformar universidades num grande Senai

Presidente diz que quer acabar com cursos de Sociologia e Filosofia, vistos como inúteis

O comentarista político que vive sob um governo semelhante ao de Jair Bolsonaro tem um desafio pela frente: tem que competir com distorções bizarras da realidade que têm imenso apelo para a população; precisa manter os pés no chão, respirar fundo e, sem cair na tentação de sair gritando loucamente contra o absurdo, achar um jeito de apagar os incêndios anti-intelectuais que surgem diariamente.

A história do dia surgiu via Twitter: aparentemente Bolsonaro convenceu o filho a lhe devolver a senha (se é que essa história não era outra mentira… Jesus…). O presidente disse que o ministro da Educação pensa em “descentralizar” o dinheiro investido nos cursos de Humanas para colocar em outras áreas.

“A função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta”, disse. Os exemplos dos cursos do Eixo do Mal citados por Bolsonaro são Filosofia e Sociologia.

Bolsonaro ainda dá uma de bonzinho, dizendo que os atuais alunos não serão afetados. Que grande altruísmo do presidente!

Primeiro é preciso lembrar que esse tipo de coisa pode ser só um absurdo criado pelas cabeças avoadas que habitam Brasília no momento. Gente que fala em amputações de pênis em série e vê Jesus na goiabeira; mas pode também haver método nessa loucura. Enquanto Bolsonaro, Damares e o chanceler maluco falam essas coisas, o fim da aposentadoria vai passando no Congresso.

De um jeito ou de outro, ninguém duvida que as universidades, o ensino superior e qualquer coisa que tenha a ver com o neocórtex está de fato ameaçado no atual governo. O objetivo é manter o país como era há 40, 50 anos, disse o próprio Bolsonaro. Embora às vezes pareça que se pretenda voltar ao século 12, antes do advento das universidades…

Bolsonaro disse antes da eleição que não entendia de economia (como se precisasse da confissão…). É evidente que não entende também de educação. Como ele próprio disse, não nasceu para ser presidente, nasceu para ser militar, servir ao Exército de onde foi expulso só tendo sido promovido a uma patente intermediária.

No caso da educação, acha que o objetivo é ensinar aos jovens “a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta”. Sim, ensinar leitura e escrita, além de fazer contas, é o que se faz nos primeiros anos do fundamental. Se for para isso, só precisamos manter nossos filhos na escola até o quinto ano, talvez.

A educação é um pouco mais do que isso. E também não tem a ver só com arranjar emprego. A educação é feita para tornar o sujeito um cidadão autônomo, crítico, para que ele conheça o mundo em que vive e seja capaz de compreender por que as coisas são como são. Fazer contas é bom; entender por que a democracia é melhor do que uma ditadura é muito bom também.

A ideia tosca do utilitarismo educacional de Bolsonaro é a de quem vê as universidades como um grande Senai, que deve formar gente para apertar parafusos, fazer cirurgias ou construir pontes. Atividades que possam ser reduzidas (pelo menos na cabeça louca do presidente) a repetições mecânicas, e que não botem ninguém para pensar.

Sociologia e Filosofia de fato não servem para isso. Não se vê um sociólogo numa esquina apertando os parafusos da sociedade, nem um filósofo fazendo uma cirurgia no devir. Eles dão aulas – e ensinam mais gente a pensar.

Certa vez vi um desses utilitaristas (deve ter votado em Bolsonaro, penso hoje), dizendo que não conseguia entender qual o objetivo de uma disciplina, como a Filosofia, que só servia para formar mais gente que daria aula sobre aquele mesmo assunto, infinitamente… Sem que houvesse um objetivo prático e financeiro, veja só! Conhecimento pelo conhecimento, que absurdo…

O sujeito era um publicitário. Nunca se deu conta de quanto a sociologia – o estudo da sociedade – ajuda a entender seu “público-alvo”, a determinar como cada mensagem deve ser pensada para cada público, como isso permite compreender os fenômenos de compra e de consumismo.

Em suma, era uma anta.

Bolsonaro e os bolsonaristas podem não estar agindo com a mesma premissa de que “isso não serve para nada”. Pelo contrário, sabem muito bem que serve para algo.

O sistema moderno de governo foi moldado em boa medida pela filosofia de Hobbes e Maquiavel.

O sistema democrático foi influenciado por filósofos como Locke e John Stuart Mill.

Os privilégios da nobreza e a centralidade do monarca foram para o espaço em boa medida por causa de Montesquieu e dos autores do Federalista.

A Revolução Francesa e suas congêneres existiram em grande medida por causa de Rousseau e Voltaire.

O surgimento dos regimes críticos ao capitalismo tem muito a ver com a filosofia de Marx e Engels.

Os jovens que saíram às ruas em 68 em Paris estavam embriagados com a Filosofia de Sartre, Camus e Merleau-Ponty.

As feministas embasam sua revolução em Simone de Beauvoir e em contemporâneas como Angela Davis.

Os trans estudam Judith Butler, os líderes de movimentos sociais leem Charles Tilly e Noam Chomsky segue como uma pedra no sapato do governo americano.

Os bolsonaristas não querem acabar com a sociologia e a filosofia à toa. Não é por serem antas como o publicitário descrito acima. O que eles querem, pelo contrário, é transformar a todos nós em gente incapaz de pensar, em gente que, ao ouvir falar em aulas sobre pensamento, fique atônita, que se pergunta, afinal, para que serve isso, para que serve pensar. Que nos ensinem só a fazer contas e deixem essa bobagem de lado.

De resto, basta repetir slogans, acreditar na Terra plana, evitar vacinas que geram autismo e rezar para o Jesus que existe dentro de cada goiaba.

 

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