Autoridades fizeram 94 declarações racistas desde 2019; governo Bolsonaro é o principal responsável

Presidente e membros do primeiro escalão respondem por 51% das falas preconceituosas, mas deputados, vereadores e juízes também são listados

Ocupantes de cargos públicos nas três esferas de poder fizeram 94 discursos racistas desde 2019, primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro. O levantamento “Quilombolas contra racistas”, lançado nesta terça-feira (22), mostra que o presidente e membros de seu governo respondem por metade das falas preconceituosas. Do total de discursos racistas feitos por autoridades nos últimos três anos, 18% saíram da boca do próprio Bolsonaro. Integrantes do governo respondem por outros 32% e o vice Hamilton Mourão por 1%.

Feita a partir de uma parceria entre a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos) e a ONG Terra de Direitos, a pesquisa mapeou discursos expostos pela imprensa e pelas redes sociais proferidos por autoridades públicas até 31 de dezembro de 2021. O maior número de ocorrências está entre os nomeados para cargos de direção e assessoramento do governo federal, como ministros, secretários e presidentes de autarquias.

O presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, é o segundo com mais registros no governo (19), atrás apenas de Bolsonaro. Camargo chegou a chamar o imigrante congolês Moïse Kabamgabe, morto por espancamento no Rio de Janeiro deste ano, de “vagabundo” que teria sido morto “por outros vagabundos”.

Também foram registradas falas racistas feitas por vereadores (18% do total nos últimos três anos), deputados estaduais (14%), deputados federais (9%) e juízes ou procuradores de Justiça (7%). O levantamento apurou que só houve punição em um caso, de um vereador da cidade de Mucuri (BA), condenado a pagar R$ 20 mil de indenização para um deputado estadual.

“Não é só uma banalização, é uma institucionalização, na medida em que os agentes públicos não respondem só por si, mas pela instituição”, disse ao Plural a coordenadora nacional da Conaq, Givânia Silva.

“Quando eles falam tem outro peso. A fala do deputado, do ministro ou do presidente não é só a fala do cidadão, eles estão investidos da institucionalidade. Essa é a gravidade da situação.”

Givânia Silva, coordenadora nacional da Conaq.

No ano passado foram registrados 36 casos. Em 20 deles o autor do discurso reforçava estereótipos, um crescimento de 33% no número desse caso específico em relação ao ano anterior. Todas as falas foram feitas por homens e nove negavam a existência do racismo no Brasil. Em só 12 casos houve um pedido de providências contra as autoridades.

Sérgio Camargo, da Fundação Palmares, e Bolsonaro. Foto: reprodução/Facebook.

“Ser humano igual a nós”

De acordo com o levantamento, em 41% dos casos (39 ocorrências) registrados desde 2019 o discurso buscou reforçar estereótipos racistas. Um exemplo é a frase do deputado federal bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ), segundo o qual “tem mais negros com armas, mais negros no crime e mais negros confrontando a polícia”. Como exemplos não faltam, uma frase de Bolsonaro também foi destacada: “Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós”, arriscou o capitão reformado.

O segundo caso mais comum é a incitação à restrição de direitos: foram 18 em três anos (19% do total). Nesta categoria está a fala de uma juíza que classificou como racista o programa de trainee de uma loja de departamentos, destinado a candidatos negros. A terceira fala racista mais identificada foi a promoção da “supremacia branca”, com dez ocorrências (10%). Um exemplo citado no estudo é a fala do deputado federal Alexandre Freitas (Novo-MG). Questionado sobre “pessoas de bem portando um fuzil”, o parlamentar respondeu “depende, qual a cor?” em seu perfil no Twitter.

A negação do racismo apareceu em 24 falas de autoridades (25%) nos últimos três anos. “Racismo é algo raro no Brasil”, disse Bolsonaro em uma entrevista. A pesquisa ainda identificou três discursos que tentavam justificar ou negar a escravidão no Brasil. O deputado federal Luiz Phillipe de Orleans e Bragança (PSL-SP) chegou a declarar que a escravidão “é quase um aspecto da natureza humana” ao comentar sobre a Lei Áurea. Já um procurador do Ministério Público do Pará disse que o Brasil teve escravos negros porque, segundo ele, “o índio não gosta de trabalhar”.

Dificuldade para punir

O fato de os autores das falas racistas terem foro privilegiado atrapalha as investigações e uma possível punição. “Esse é um problema. Quando o atual presidente era candidato, recorremos ao STF e a resposta é que ele estava acobertado pela imunidade parlamentar”, disse Givânia Silva. “Isso acontece com os demais”. Ela lembra que o crime de racismo não prescreve e que os autores das falas e dos gestos poderão responder criminalmente quando não ocuparem mais os cargos. Somente 22 casos foram parar na Justiça e apenas um foi punido.


“A gente tem chamado a atenção para que a sociedade tome conhecimento disso. Se a pessoa sabe disso e não se posiciona, continua apoiando o racismo. Pode não ser um executor, mas é um apoiador do racismo.”

Givânia Silva, coordenadora nacional da Conaq.
Filipe Martins, assessor para assuntos internacionais do governo: arrumando a lapela. Foto: reprodução.

Apito de cachorro

Em março do ano passado, em uma audiência no Senado, o assessor especial para assuntos internacionais do governo federal, Filipe Martins, fez um gesto que levou o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) a chamar a Polícia Legislativa. Martins disse que apenas arrumou a lapela, mas especialistas que estudam grupos neonazistas identificaram as letras “W” e “P”, que remetem a “White Power” (“Poder Branco”, em inglês), lema dos supremacistas brancos.

Antes disso, um apoiador de Jair Bolsonaro fez o mesmo gesto ao tirar uma foto ao lado do presidente em Brasília. Bolsonaro reagiu e disse que o gesto poderia “pega mal”, demonstrando que conhece o gesto e sabe de seu teor. “Esse gesto aí… Se não for um gesto bacana, pega mal pra mim”, disse o presidente. “Apaga essa foto, por favor”, pediu um assessor de Bolsonaro. “Dá uma olhada nos gestos que o pessoal faz aí, tá?”, finalizou Bolsonaro, encerrando a conversa.

O gesto de Filipe Martins e as imagens de uma transmissão ao vivo em que Bolsonaro e integrantes do governo tomam leite também fazem parte do levantamento da Conaq e da Terra de Direitos. Nos Estados Unidos, o ato de beber leite é identificado com supremacistas brancos desde o início do século passado. Segundo eles, há “razões biológicas” para pessoas brancas tomarem mais leite. Uma cena do filme Bastardos Inglórios, do diretor Quentin Tarantino, mostra o oficial nazista Hans Landa tomando um copo de leite.

Bolsonaro tomando leite em transmissão ao vivo. Foto: reprodução.

Para estudiosos dos movimentos de supremacia branca, gestos como esses podem ser usados para criar uma identificação com outros supremacistas. São os chamados “dog whistles” nos Estados Unidos, ou “apitos de cachorro”: só eles entendem a mensagem. “Percebemos que, à medida em que o próprio presidente da República encabeça determinados discursos, ele não só encoraja toda a sua equipe, mas também os cidadãos comuns”, avaliou Givânia Silva. “Muitas pessoas já tinham esse pensamento, agora a diferença é que têm o presidente da República como principal estimulador.”

Veja abaixo a transmissão de lançamento do estudo:

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