A primeira missa do bolsonarismo

Governo Bolsonaro e indicação de índia evangélica para cuidar da questão indígena fazem ressurgir disputas entre duas visões de mundo: igrejas querem integrar povos, enquanto antropólogos acusam racismo.

A ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República trouxe de novo a questão indígena para o centro do debate público no Brasil. Ao defender mudanças na demarcação e preservação das reservas, o presidente abriu a caixa de comentários para uma discussão identitária acerca das populações autóctones.

Para o pensamento bolsonarista, a cultura indígena estaria tão perdida quanto o acervo queimado do Museu Nacional. As tribos viveriam numa espécie de limbo antropológico, dissipadas de seus elementos étnicos e ao mesmo desprovidas dos benefícios de uma inserção social mais profunda.

Em um tuíte postado no segundo dia de mandato, o ex-capitão comentou: “Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e  manipuladas por ONGs. Vamos juntos integrar estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros”. Em outro momento, referiu-se às reservas como “zoológicos humanos”.

Na caixa de ressonância militante, os índios por vezes passam de vítimas a vilões, sendo descritos como indolentes que passam o dia a dormir na rede, vestidos de havaianas e bermuda Adidas, enquanto são sustentados pelo Estado.

Damares Alves: ONG polêmica e promoção a ministra de Jair Bolsonaro.

Os primeiros atos implicados por essa visão foram as mudanças na Funai e a subordinação da demarcação de terras ao Ministério da Agricultura. Mas para além da expansão da fronteira agrícola, existe outra batalha de forças ocorrendo nas florestas brasileiras há, no mínimo, duas décadas.

Entidades cristãs têm travado uma árdua batalha contra antropólogos pela autodeterminação dos povos indígenas. As igrejas acusam os acadêmicos de manter uma postura “isolacionista” e de “relativismo cultural”, impedindo que as tribos sejam assistidas e possam superar condições pouco humanas de sobrevivência. Para os antropólogos, o voluntarismo das ONGs religiosas é um Cavalo de Troia para levar o cristianismo às reservas e influenciar o caminho futuro dessas sociedades.

O teatro de operações mais renhido gira em torno da construção do conceito de “infanticídio indígena”. Entidades passaram os últimos vinte anos denunciando casos em que crianças são mortas em algumas aldeias em função de antigas tradições. Há relatos de meninos e meninas com deficiência física ou mental, gêmeos ou filhos de mães solteiras enterrados vivos ou abandonados na floresta.

Para uma corrente importante da antropologia brasileira, porém, o alerta é exagerado. Não haveria dados ou comprovação empírica para afirmar que tal infanticídio ocorra. Os relatos, esparsos e indiretos, são residuais e decrescentes, defendem os acadêmicos. Mas o barulho estaria estimulando o preconceito contra os indígenas e justificando intromissões étnico-religiosas nas aldeias.

Conexão Hollywood – Rondônia

Um dos lados do debate acabou de ganhar impulsão renovada a partir de uma canetada Bic. Antes das declarações polêmicas à frente do recém-criado Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, Damares Alves era conhecida sobretudo por ter fundado a Atini – Voz pela Vida, a principal ONG brasileira a afirmar a existência do infanticídio indígena. E também por ser pastora evangélica.

Damares deixou a entidade em 2015, ano em que foi trabalhar no gabinete do senador Magno Malta (PR-ES). A Atini, entretanto, foi relembrada na transição para o novo governo. Após o anúncio da nomeação da ex-assessora parlamentar para o ministério, a Folha de S.Paulo noticiou que a ONG é acusada de tráfico e sequestro de crianças, exploração sexual e incitação ao ódio contra indígenas. O jornal revelou em dezembro último que a Polícia Federal pediu à Funai informações sobre casos que estariam sendo praticados por três ONGs – entre elas a Atini. As ações correm em segredo de Justiça.

Os casos de sequestro geralmente envolvem a adoção de crianças indígenas sem o devido trâmite legal. Vários dos pais adotivos são estrangeiros. E alguns, membros de entidades missionárias que atuam no Brasil. A própria Damares tem uma filha indígena. Adotada legalmente, ressalte-se.

A acusação de incitação ao ódio começa com a realização de um documentário que incendiou polêmicas no Brasil e no exterior. A forma como o filme foi produzido também revelou, por tabela, pontos de convergência entre a agenda das missões cristãs e das entidades de assistência.

Hakani: “docudrama” acusado de forçar a barra sobre infanticídios.

Em 2009, foi lançado no Brasil e nos Estados Unidos Hakani: A história de uma sobrevivente. O documentário de 30 minutos supostamente reconstrói a história da menina que empresta seu nome ao título, uma indiazinha da tribo Suruwaha, que habita o sul do Amazonas.

Na história, a pequena é condenada à morte por apresentar desenvolvimento lento de fala e locomoção. Seus pais se recusam a matá-la e se suicidam. O irmão mais velho, a quem a responsabilidade pela execução foi transferida, a enterra em uma cova rasa na floresta. Alguém a resgata e a leva de volta à aldeia. O avô a deita na rede e resolve flechá-la mortalmente, mas erra e acerta o ombro da neta. Com remorsos, toma veneno e se suicida. Hakani, com dois anos e meio de idade, passa a viver isolada na floresta comendo insetos e bebendo água da chuva. Após três anos vivendo dessa forma, seu irmão a resgata e a leva até um casal de missionários, que a adota.

O relato consta do site da Atini. É apresentado como uma história verídica.

Hakani, o documentário, reconstitui parte dessa narrativa. Foi coproduzido pela Atini e pela Jovens Com Uma Missão (Jocum), uma entidade de evangelização fundada em 1960 nos Estados Unidos e com atuação no Brasil desde 1975. É dela que veio o dinheiro para rodar o filme. O diretor da obra, David L. Cunningham, é filho do fundador. O casal que adota Hakani, Marcia e Edson Suzuki, é de missionários da entidade. Hakani, a menina, realmente existe. Aparece em fotos e vídeos divulgados pela Atini. Sua história de infância, porém, é corroborada apenas pelo relato dos pais adotivos, que afirmam tê-la ouvido da própria menina e do irmão.

Assim que começou a ser exibido, o filme foi metralhado por críticas. Lá fora, uma das vozes mais altas a se levantar contra a produção foi a da Survivor International, uma das principais defensoras dos povos indígenas no mundo. A entidade, curta e grossa, acusou o vídeo de ser fake. “A terra que cobre o rosto das crianças é bolo de chocolate. Além disso, a afirmação que o infanticídio é uma ocorrência ampla entre os índios brasileiros é falsa”, disse à época o diretor da Survivor, Stephen Corry.

Survivor International: ONG classifica documentário como fake.

O governo brasileiro também respondeu com ênfase. A Funai foi à Justiça para obter a proibição da exibição do filme na tevê e nas plataformas da Internet, alegando que a encenação era caluniosa e estimulava ódio aos indígenas, além de fazer generalizações indevidas sobre a cultura desses povos. Convém lembrar que desde o dia 1º de Janeiro deste ano, a Funai passou a estar abrigada sob a pasta de Damares Alves.

O filme foi rodado em uma fazenda da Jocum em Porto Velho (RO). Índios de diversas etnias foram escalados como atores amadores, embora tenham ganhado cachê. Eles disseram ter sido informados de que se tratava de uma obra de ficção. Após a repercussão, os produtores publicaram uma defesa da obra, que reclassificaram como “um poderoso docudrama”.

O site oficial da produção, que continha o filme completo e materiais de campanha em prol da causa, não está mais no ar. Hakani pode ser visto em republicações de qualidade inferior feitas por terceiros no YouTube.

Curiosidade: não é a primeira vez que David L. Cunningham, um documentarista com dezenas de obras de média-metragem no currículo, foi acusado de, digamos, ser excessivamente criativo ao relatar fatos. Seu filme Path to 9/11 (O caminho para o 11 de Setembro, em tradução livre), de 2006, sobre o atentado terrorista frustrado ao World Trade Center em 1993, foi criticado pela representação equivocada de eventos e pessoas. Entre os detratores estava o casal Clinton, que refutou a forma como o terrorista Osama Bin Laden foi retratado. Cunningham se defendeu afirmando se tratar de um “docudrama”.

Produção nacional

Apesar de Hakani não estar mais disponível, um outro filme é apresentado como o principal produto audiovisual na página inicial do site da Atini. Quebrando o Silêncio, da jornalista curitibana Sandra Terena, foi lançado de forma independente pouco após Hakani. Reúne depoimentos de índios relatando casos de violência nas comunidades indígenas e o posicionamento de indigenistas, advogados, religiosos e políticos que defendem a ação do Estado na questão. Ela é a narradora em primeira pessoa de seu documentário. A motivação, diz, vem da maternidade.

Sandra, 37 anos, é descendente de indígenas da tribo Terena, uma etnia que vive em Mato Grosso do Sul e interior de São Paulo, de onde vieram seus pais. Evangélica, casada e mãe de três filhos, ela se define como uma das únicas jornalistas indígenas do Brasil, e desde o lançamento do filme tem militado na afirmação e denúncia do infanticídio indígena. A partir disso, aproximou-se de Damares Alves, que a indicou para comandar a Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial, ligada à pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos.

Ela afirma que a secretaria irá manter e ampliar direitos conquistados pela população negra e quilombola, assim como ampliar a voz dos povos indígenas, ciganos e outros grupos. A pauta derivada das denúncias de infanticídio indígena também deve ganhar peso. “O assunto já se tornou pauta em meio aos povos indígenas, que têm optado por salvar seus filhos não por obrigação, mas por opção. Faremos um esforço para levar as políticas públicas para a ponta, na aldeia, em convergência com o discurso do nosso presidente Jair Bolsonaro que disse que índio quer médico, educação”, destaca.

As quedas de braço com a Funai, que tiveram no documentário Hakani o ponto de maior tensão, devem ficar no passado. “Não haverá discordância com a Funai. As pastas seguem as políticas públicas e referenciadas pelo governo Bolsonaro.”

Ainda sobre a polêmica coprodução brasileiro-americana, Sandra a dissocia de seu próprio filme. “Meu documentário foi lançado bem depois do filme Hakani. Quebrando o Silêncio” é um trabalho jornalístico que comprovou a existência da prática do infanticídio de forma incontestável e serve como grande ferramenta para mostrar uma alternativa que não a morte para o meu povo.”

Sem, entretanto, deixar de defender a obra de David Cunningham. “Hakani Suruwahá quebrou o silêncio e falou pela primeira vez sobre o caso neste ano de 2019. Hoje, com 23 anos, falando inglês fluentemente, a sobrevivente disse que estaria morta se não fosse salva por seu irmão que a desenterrou por não aguentar ouvir seu choro. O irmão de Hakani optou por salvar sua irmã e ele precisa ter seu direito respeitado. Por anos, alguns antropólogos quiseram falar por nós, povos indígenas, meu documentário quebrou este paradigma e deu voz para os próprios indígenas, a fonte primária que precisa e será ouvida neste governo.”

Lei Muwagi: uma longa tramitação

Grupos ligados à afirmação do infanticídio indígena pressionam pela aprovação da Lei Muwagi, como ficou conhecido o Projeto de Lei 1057/07, de autoria do deputado Henrique Afonso, atualmente no PV do Acre (era do PT em 2007, quando apresentou o projeto). Ele foi integrante da Frente Parlamentar Evangélica e recebe o apoio da Jocum, por exemplo. Nos últimos anos, Sandra Terena também esteve em Brasília participando de audiências em defesa do projeto nos últimos anos.

O texto, aprovado na Câmara em 20015 e atualmente tramitando no Senado, diz que é dever do Estado “combater práticas tradicionais nocivas em comunidades indígenas – como infanticídio ou homicídio, abuso sexual, estupro individual ou coletivo, escravidão, tortura, abandono de vulneráveis e violência doméstica – e garantir a proteção de direitos básicos dos indígenas.”

Se aprovado, a lei determinará que qualquer profissional em contato com tribos indígenas (Funai, serviços de saúde, missionários, antropólogos) deve relatar atos que gerem risco à vida. O projeto também cria facilidades legais para remover das aldeias uma grávida ou criança que esteja ameaçada.

Posições contrárias à lei afirmam que o texto tem caráter discriminatório, por entender um comportamento como correspondente de toda uma tribo ou etnia. “O projeto supõe que há um embate entre ‘tradições culturais’ que prescrevem a morte de crianças e o princípio básico e universal do direito à vida. Ao afirmar que o infanticídio é uma tradição cultural indígena – como se ele não ocorresse, infelizmente, em toda a humanidade – o texto e o parlamento brasileiros agem com racismo e discriminação, difamando povos e suas organizações socioculturais. Todos nós temos direito à vida e não há nenhuma comunidade indígena no Brasil e no mundo que não respeite e pleiteie esse direito básico junto às instâncias nacionais e internacionais”, afirma Marianna Holanda, antropóloga e pesquisadora de Bioética da Universidade de Brasília (UnB).

Comemoração de votação da lei Muwaji no site da Jocum. Lei é acusada de preconceito.

“Esse projeto de lei parte da ideia fácil e colonial de que os povos indígenas são carentes de comportamento ético e de que precisam de leis e punição por parte do Estado brasileiro para se tornarem mais humanos’”, condena.

Henyo Barretto, professor do departamento de Antropologia da UnB e Coordenador da Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia, ressalta: “O projeto, ao citar ‘tradições culturais nocivas’, amplia a possibilidade de intervenção nas culturas indígenas. Mesmo dizer que se trata de uma ‘tradição’ é problemático. Uma posição racista e preconceituosa. Nas mais de 200 etnias brasileiras vemos inclusive exemplos contrários, em que membros da tribo com necessidades especiais ocupam um lugar de destaque, compreendidas como possuidoras de poderes xamânicos e capacidade de conectar-se a outros mundos”.

O acadêmico refuta a concepção de que a antropologia brasileira seja “preservacionista” e relativize valores morais. “Defendemos o direito dos índios decidirem qual caminho querem trilhar. Nossa posição não é antropológica, tampouco religiosa, e sim política. Defendemos que os indígenas participem de modo efetivo da confecção de toda legislação que lhes diga respeito. É um discussão sobre direitos, prevista inclusive no marco legal de nossa sociedade”.

Atacados por ser inocentes

Numa guerra ideológica, as primeiras vítimas são as estatísticas. E em um tema com pouquíssimos números confiáveis à disposição, a verborragia tende a ser a principal força de convencimento. Mas o que há de fato científico que possa embasar a opinião pública consciente?

Os relatos de violência divulgados pelas entidades dificilmente podem ser refutados como fantasiosos. São problemas reais, que ocorrem em lugares de difícil monitoramento. Porém nenhuma das fontes consultadas para este texto é capaz de dimensionar se a reunião de casos é capaz de evidenciar um problema amplo. A Atini, por exemplo, afirma ter coletado casos em 20 tribos – menos de 5% das etnias  mais de 300 brasileiras.

A quantidade de casos de violência contra crianças não seria maior que as ocorrências no resto da sociedade. O infanticídio não é um problema indígena. É um problema humano.

Para os antropólogos, o infanticídio é uma falácia. Apontam dados do IBGE mostrando que, ao contrário da pirâmide etária brasileira, a indígena vem aumentando a base com o registro do nascimento de mais crianças.

Porém a mortalidade infantil ainda é quatro vezes maior entre os indígenas, causada principalmente por falta de atendimento básico de saúde, segundo dados da Secretaria Especial da Saúde Indígena, criada em 2010. Entre os adultos, também há uma literatura extensa e bem documentada de problemas de saúde mental, como abuso de álcool e depressão. A convergência moral entre Estado, acadêmicos e religiosos é percebida no valor soberano da vida. É onde esses esforços parecem se combinar.

Darcy Ribeiro escreveu que, na maioria das etnias brasileiras, as crianças são consideradas “espíritos livres”. Sobre estes, nada precisa ser legislado.

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