Gersinho, um cara sensacional

Cena musical curitibana se despede do seu menestrel Gerson Bientinez

“Te adoro, guria!” era a maneira usual de se despedir das gurias de todas as idades. “Sen-sa-cio-nal!” era o seu bordão. “Te amo!” servia para chegadas e despedidas dos tantos e tão variados parceiros que colecionou ao longo dos seus setenta e dois anos de vida e música. Não lidava bem com virtualidades. Era um homem presencial. No máximo, de telefonemas.

Curitibano e novidadeiro, Gerson Bientinez nasceu no dia de Ano Novo. Teve a infância embalada pelo rádio eclético do pai, Aristides, comerciante e radialista. Choro, valsa, fox, balada, seresta, samba; Ary Barroso, Nelson Cavaquinho, Assis Valente, Jacob do Bandolim, Adoniran Barbosa: a música ressoava dia e noite pela casa do Bigorrilho.

Seu primeiro instrumento foi o acordeom, mas fez história mesmo foi com o violão. Nos anos 1950 foi impactado pela era de ouro da música americana. Na década seguinte nascia a Bossa Nova, que parecia vir de encomenda para a sua batida; começou a compor suas próprias canções. Orgulhava-se de ter se profissionalizado como músico aos 13 anos para depois, ao longo da vida, ter tido lições práticas, intuitivas, com os grandes mestres com quem dividiu palco e bastidores: Baden Powell, Sebastião Tapajós, Claudionor Cruz.

Baden Powell foi um dos mestres do violão com quem Gerson dividiu palco e bastidores. Crédito da foto: Dieter Hopf / divulgação.

Teve uma encarnação paralela como burocrata no extinto Badep (Banco de Desenvolvimento do Paraná) e posteriormente administrou o Teatro Paiol. Fainas diurnas. Fim de expediente, o funcionário virava menestrel e, cinderelo, caía na noite.

O violão, a tiracolo, virou seu apêndice. Gersinho fez e aconteceu. Pelos bares da vida, onde porventura houvesse uma das gurias cantando, chegava e se abancava sem pedir licença, em memoráveis canjas. Pontificou em festivais de música, como concorrente ou jurado; contava as mais hilárias histórias de bastidores. Acompanhou, desde o início, grandes cantores da MPB, como Herivelto Martins e Alaíde Costa.

No final dos anos 1990, andou pela Europa: Polônia, Suíça, França, onde transitou de botecos de Paris ao Festival de Montreux.

Lançou três álbuns, em exatos intervalos de dez anos: Quinze (independente, 1996), Alta Estima (independente, 2006) e 40 Anos de Música (Gramofone, 2016).

Quinze é sobretudo uma declaração de pertencimento a Curitiba. O título remete à Rua das Flores, onde Gersinho posa com o violão, em cena noturna, ao lado do tradicional Bondinho da XV. Três faixas imortalizam outros ícones da cidade: “Saul Trumpet Bar” (parceria com Cláudio Ribeiro) e as instrumentais “Praça Osório” e “Valsa para Helena Kolody”. No encarte, Jamil Snege (1939-2003), cânone curitibano da literatura, apresenta o compositor que “trabalha a palavra e escraviza a lírica, isso quando a letra nasce antes. No mais das vezes, tece a rede melódica e sai com ela a capturar palavras, no que se assemelha a um caçador de refinado tino.”

Na dança de acasalamento entre melodia e letra, Gersinho foi um eclético colecionador de parceiros entre poetas e escritores das mais variadas gerações, tribos e geografias. Dos veteranos Noely Manfredini, Ivan Graciano, Hilton Barcelos, José Oliva, Marilda Confortin aos novos Alexandre França e Luiz Felipe Leprevost; o cearense Eudes Fraga; os lendários Pedro Caetano, Claudionor Cruz e Waltel Branco. Os mais frequentes, nos três CDs, foram Cláudio Ribeiro e Gerson Fisbein. Gerson, ele mesmo, foi um letrista esporádico. No repertório desses discos compôs melodia e letra em duas canções.

Essa diversidade de parceiros era uma marca sua, que se repetiu na execução da sua música. Nos três discos, arregimentou as mais belas vozes (Alexandre Nero, Ana Cascardo, Ana Paula Silva, Bernardo Bravo, Carlinhos Vergueiro, Cris Lemos, Eudes Fraga, Helena Bel, Iria Braga, Léo Fressato, Lilian e Layane, Lydio Roberto, Raissa Fayet, Rogéria Holtz, Rosaly Lima, Suzie Franco, Tao do Trio), os mais sofisticados arranjadores (Álvaro Ramos, Davi Sartori, Lucas Franco, Nelson Ângelo, Vicente Ribeiro), os mais virtuosos músicos (Helinho Brandão, João Egashira, Maurício Carrilho, Mauro Senise, Paulo Sérgio, Pedro Amorim, Raul de Souza, Robertinho Silva, Sérgio Albach, Zélia Brandão). O jornalista e compositor Sérgio Silva ressalta este fato, na apresentação que escreveu para o 40 Anos. “Gersinho, como o bom vinho, está ótimo. E ao mesmo tempo renovado nas vozes de alguns jovens e talentosos intérpretes”.

Jamil Snege é o autor da letra de “Povo Bobo”, que levou 24 anos para serr gravada por Gersinho. Crédito da foto: Dizihuan/Creative Commons.

[Nesse tópico do ecumenismo com que Gersinho circulava entre as várias igrejas, há que se fazer o corte para um flashback que inicia no século passado. Jamil Snege, nos anos 1990, fizera mais do que escrever a apresentação de Quinze. Presenteara o compositor com “Povo Bobo”, a letra para uma futura parceria. Gerson compôs a melodia com a intenção de gravá-la no Alta Estima, em 2006, o que acabou não acontecendo por algum entrave burocrático. E é exatamente neste ponto que tenho que dar voz a uma narradora em primeira pessoa, para uma versão mais letrista e menos jornalista dos fatos. Fui convocada para uma reciclagem, em caráter de urgência, da melodia que sobrara desletrada. Tentando tirar da cartola uma inspiração, perguntei ao Gersinho como seria o nome do disco. Ele pensava em batizá-lo E Daí?. Acabou mudando para Alta Estima, mas a canção “E daí?” já tinha vindo ao mundo. A história ainda continua. Em 2016, no 40 Anos, mais de vinte anos depois de escrita a letra, “Povo Bobo”, a canção, finalmente foi gravada. No mais-que-perfeito estilo Gersinho de ser, sob a batuta de Álvaro Ramos, resultou em uma mistura entre o RAP de Dow Raiz e o forró de Maérlio Barbosa, do Forró Calamengau. Lá em 1996, Jamil Snege completava a apresentação da música do Gerson reafirmando sua variedade que, “se por um aspecto deslumbra por outro pode chocar paladares acostumados à monocórdica repetição de certos gestos. Mas este é um risco de toda a arte.” Jamil adivinhara o destino eclético da sua letra. Só não podia supor – suponho – o teor de profecia dos seus versos. “Porque o povo é bobo/ você faz conchavo, trai o partido/ livra com a crápula/ [ ] / mas um dia o povo bobo/ caco cheio, aperreado/ despejado, desnutrido/ escabreado/ pega e invoca com a tua cara lambida/ pega e arranca teu dente de ouro/ pega e enfia uma faca na tua barriga”. Vinte e quatro anos atrás.]

Minha parceria com Gersinho passa por coisas parecidas, embora obviamente menos sensacionais do que esse imbatível enredo com o Jamil. O modus operandi do Gerson na construção das canções fazia lembrar a frase de Saramago “não tenhas pressa e não percas tempo”. Uma década se passou desde o primeiro registro, instrumental, da “Valsa para Helena Kolody” e o seu parto como canção. Na construção dessa letra, peguei carona nos versos da própria homenageada. Fizemos de Dona Helena, à traição, nossa parceira e Gersinho cantou para ela a canção, pôde lhe entregar as flores em vida; foi emocionante ouvir-lhe o relato desse momento. Antes disso, no início dos anos 2000, ele me entregara um CD onde gravara um tema musical, sem nome, que compusera na primeira vez em que entrou na Notre Dame de Paris, onde eu nunca tinha estado. Seis anos depois, na minha primeira vez naquela catedral, sob o impacto de um texto em que a compositora Luhli (1945-2018), falava sobre a ‘mestra ascensionada do raio rosa’ que rege Paris, nasceu a canção “Rowena”, dada à luz em 2016. Não faz muito tempo ele compartilhou comigo a ideia de algum projeto, que achava muito viável, em que iríamos a Paris – ele, eu e o duo Lílian e Layane – apresentar a canção sob a rosácea do vitral de Notre Dame. A linha do tempo do Gersinho desconhecia concretudes e obstáculos.

A catedral de Notre Dame, em Paris, serviu de inspiração para o músico. Crédito da foto: Huy Phan / Pexels.

O escritor Tonicato Miranda conta que, nos últimos dois anos e meio, compuseram “quase toda semana. Trinta e quatro músicas terminadas, cinco ficaram penduradas no pincel”, o que certamente torna essa a mais prolífica parceria da vida do Gersinho que – embora ciumento dos parceiros – distribuía, ele mesmo, pinceladas por onde circulasse. E como circulava.

Usina de inventações de moda, ficou devendo melodia para o poema da Lucymar Nicastro, no que seria a primeira canção em parceria com amiga de mais de 50 anos. Iso Fischer e Rosana Barroso fariam junto com ele um show com o repertório de Maysa. Daria depoimentos para o livro Gerson, o Menestrel Curitibano, projeto de Jazomar Vieira da Rocha. Dezenas de inéditas seriam cantadas por Rogéria Holtz, a voz parceira principal. Comigo, além da nossa cantoria na Notre Dame, ficou faltando uma canção que comporíamos para Tenório, uma criança que nasceu recentemente, filho de um de seus amigos músicos, assim batizada em homenagem a Tenório Jr., o pianista assassinado pela ditadura argentina [quem porventura souber quem são Tenório e seu pai, por favor faça-lhes saber que pretendo honrar a intenção do parceiro}.

E assim se conta a história dele. De nota em nota, de palco em palco, de flor em flor, Gersinho foi o menestrel de muitas musas. E teve o mérito, ele próprio, de ser muso de ao menos três compositores. Entre eles o lendário maestro Waltel Branco (1929-2018), que lhe dedicou o “Choro Romântico”.

Waltel Branco dedicou a canção “Choro Romântico” a Gerson. Crédito da foto: arquivo pessoal.

Tetê Soares foi a companheira e cúmplice dos últimos dezenove anos. “Vivemos uma história de muito amor e respeito. Era amor com humor. Nunca brigamos”, conta. “Nessa pandemia, o Gerson foi entristecendo por não poder encontrar e abraçar os amigos, foi ficando jururu.” Com a inatividade, vinha ganhando muito peso. Tinha um histórico antigo de quadro convulsivo, além de algum grau de doença pulmonar obstrutiva e arritmia cardíaca; tudo, no entanto, sob controle.

No dia 2 de novembro sofreu uma convulsão, após 20 anos assintomático. Foi atendido e medicado em casa, ficou bem. Com consultas especializadas marcadas para a semana seguinte, quatro dias depois voltou a convulsionar. Foi internado, de emergência. A situação cardiorrespiratória se agravou. Faleceu na segunda-feira, 9 de novembro.

“Foi tudo muito rápido, ainda estou tentando processar a realidade”, continua Tetê. Gersinho ainda deixa a mãe, Aldinha, 93 anos, lúcida e inconsolável. Deixa os filhos Ricardo e Patrícia, quatro netos, um irmão, duas irmãs.

Deixa órfã a cena musical curitibana. Na última parceria com Toninho Domingues, na voz de Jazomar Vieira da Rocha, deixou-nos rigores da rima e da prosódia – seu tributo de amizade a cinquenta e seis nomes de artistas que trançaram com a dele as suas trajetórias.

Etel Frota e Gerson Bientinez: amizade de longa data. Crédito da foto: arquivo pessoal Etel Frota.

Deixa o depoimento de uma existência devotada à canção. Deixa a marca de sua alegria. Deixa-nos posto, nas palavras do parceiro-xará Fisbein, que “ser triste é não encontrar a saída/ veja como brilha/ através de uma lágrima/ a vida.”

Te adoro, guri.

Sobre o/a autor/a

5 comentários em “Gersinho, um cara sensacional”

  1. Tá tudo muito bem. Também fui amigo do Gerson desde sempre. Mas esse verso atribuído ao Gerson Fisbein é do porta Guilherme de Almeida. De uma das cartas de amor. Na época eu fazia projetos junto com o Fisbein para a Secretaria da Cultura do Paraná. Falei pra ele sobre o plágio. Ele não deu bola. Enfim fica o registro. Sem nenhum demérito pro nosso Gersinho. O poema referido está nas páginas 22 e 23 de Cartas do meu Amor da coleção Toda Poesia volume VI de Guilherme de Almeida. O verso finaliza a carta/poema assim: ” Beijo a carta. Olho em torno a tarde comovida. (Como brilha, através de uma lágrima, a vida!”

  2. Maravilhosa, Etel Frota!! Um resumo/testemunho, uma homenagem com o humor que sempre rodeava Gersinho! E ainda podemos relembrar as suas canções imortalizadas em lindos arranjos. Chorei…

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