William Melvin Kelley narra êxodo pela liberdade no livro “Um tambor diferente”

Romance se passa num estado fictício dos EUA e conta a história de um descendente de escravizados, Tucker Caliban

“Um tambor diferente” é um daqueles livros inesquecíveis e atuais, embora tenha sido escrito por William Melvin Kelley em 1962. Neste ano, a Todavia trouxe novamente o clássico aos holofotes, com tradução de Heloísa Mourão e Luisa Geisler, e com uma primorosa capa feita por Julia Custodio.

Apesar de ser considerado um clássico da literatura norte-americana, “Um tambor diferente” não é uma publicação “famosa”. Kelley (1937–2017) o publicou quando tinha apenas 24 anos.

O autor se debruça sobre as questões raciais, mas adota uma lógica incomum: pensar isso a partir do que é ser um branco que vive numa sociedade supremacista branca. O romance se passa num estado fictício dos EUA e conta a história de um descendente de escravizados, chamado Tucker Caliban.

Essa inversão da linha narrativa deixa o texto satírico e causa um (bom) desconforto, afinal temos um homem negro falando sobre como os brancos pensam a questão racial.

Ancestrais

Algo muito próprio de pessoas negras na América é a inexistência de ancestralidade. Diferente do que acontece com gente branca, que pode rastrear por meio de documentos quem foram seus avós, bisavós, trisavós, tataravós e sabe-se lá quem mais, pessoas negras não podem fazer o mesmo.

Isso porque toda pessoa sequestrada no continente africano e escravizada na América era separada da sua família e até mesmo dos habitantes da mesma região de onde veio. Depois, recebia um “novo” nome e o sobrenome do senhor escravagista.

Eu, Aline Reis, não tenho nada de Reis, que é um sobrenome português. Mas como uma pessoa negra, também não sei o que há para além de Reis, nem de que parte da África meus ancestrais foram sequestrados, nem nada do tipo. Mas voltemos ao livro.

Africano

Tucker Caliban sabe que descende de um homem chamado por todos de “Africano” (sem sobrenome). Ele causou um verdadeiro problema quando chegou aos Estados Unidos em um navio negreiro e fugiu dos brancos, criando uma espécie de quilombo. Foi morto ao ser traído por outro homem negro e deixou um bebê, que foi capturado pelos brancos e se tornou o primeiro Caliban, batizado assim por conta de uma peça de Shakespeare.

Assim como os Calibans anteriores, Tucker também trabalhava em plantações de famílias brancas. Sua ancestralidade foi encarada pelos brancos como o motivo para ele ter ateado fogo à própria fazenda – comprada dos Wilsons, que “empregaram” os Calibans durante toda a vida – e seguir rumo ao norte com a família. Com esse movimento, ele deu início a um êxodo pela liberdade de todos os negros da cidade. O sangue do Africano que fugiu até ser morto por brancos era o mesmo que corria nas veias de Tucker Caliban.

A partida

Mesmo que Kelley não siga uma narrativa cronológica, a leitura é extremamente fluída e agradável, e as peças da história se encaixam de forma primorosa. A conexão entre as personagens é feita com maestria e, a descrição de como as pessoas brancas ficam intrigadas com o incêndio nas terras de Caliban é bastante provocadora.

“Bom, tudo começou na quinta ou na quarta, num tenho certeza, mas parece que todos os pretos ali por Sutton enfiou na cabeça que num vão mais aguentar isso. Não vale a pena lutar porque as coisas não vão melhorar pra nós aqui. Até as pessoas de cor do Mississippi têm ma vida melhor, e olha lá. Até parece que se esse estado tivesse tomado uma tunda na Guerra dos Estado, nós de cor ia estar melhor. Esse estado foi o único da Confederação que o ianque num conseguiu bater”, diz um trecho de “Um tambor diferente”.

A partida de Tucker Caliban é seguida pela partida de todos os negros da cidade, que rumam para o norte. O êxodo pela liberdade incomoda os brancos de diversas formas: alguns dizem que não precisam de negros. Outros questionam quem vai varrer o chão e todos ficam estupefatos ao ver a cidade toda branca.

Interessante notar as relações interraciais descritas por Kelley. Mesmo as pessoas brancas que evitam, por exemplo, se referir aos afro-americanos como “crioulos”, por ser um termo pejorativo, desfrutam de todos os benefícios de uma sociedade racista. O autor é muito sutil em anotar essas nuances.

“Um tambor diferente” é um livro potente e incômodo. É uma pena que não receba a atenção devida.

Livro

“Um tambor diferente”, de William Melvin Kelley. Tradução de Heloísa Mourão e Luisa Geisler. Todavia, 256 páginas, R$ 69,90 e R$ 44,90 (e-book). Ficção estrangeira.

Sobre o/a autor/a

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