Tito Leite atravessa o cotidiano do sertão em “Dilúvio das Almas”

Uma narrativa envolvente e filosófica apresenta a vida brutal e boêmia de Leonardo, um protagonista apaixonante

Duas horas com pausas para fumar um cigarro de vez em quando. Este foi o tempo que levei para ler “Dilúvio das Almas”, de Tito Leite.

Embora contraditório, as pausas para os cigarros me davam fôlego para voltar à história que tem ritmo marcado, com uma narrativa envolvente e filosófica.

Leite é cearense, poeta, mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e monge beneditino. Tudo o que é reflete no estilo da escrita desse romance de estreia (ele é autor de dois outros livros de poemas).

A obra, publicada pela Todavia, traz uma belíssima ilustração de Rafaela Pascotto: quente como o romance.

O protagonista Leonardo é um cidadão do mundo. Bicho solto, não cabia em Dilúvio das Almas, sua cidade natal. Assim, deixa o sertão e parte para São Paulo. Lá, entre um perrengue e outro, conhece um pouco de filosofia, psicanálise, letras e a boemia na cidade grande.

Por partes

O romance é curto, tem 112 páginas, e está divido em 4 partes: o andarilho invisível, um desafio de martelo com o destino, sertão romã e sarça ardente.

O texto começa com Leonardo em São Paulo e revela as dificuldades que um nordestino passa na maior cidade da América Latina. No entanto, em poucas páginas, o errante protagonista segue para o nordeste.

Juazeiro do Norte, Cariri, Recife… Um tour que o leva até Dilúvio das Almas, cidade em que cresceu, mas que nunca amou.

Angústia

O reencontro com a família é interessante porque não traz nada de sagrado. É um reencontro incômodo, dolorido, indesejado. A angústia do personagem angustia também a leitora.

Leonardo volta a ser um morador local, mas não um pertencente daquela comunidade, na qual as pessoas fazem o que dá para sobreviver.

Diz um trecho do livro: “Minha mãe e o velho Joaquim, meu pai, nunca abriram conta em banco. Então, juntaram várias caixas de Ypióca. Na verdade, foi uma forma de não perder tanto dinheiro com a inflação. Dessa economia, eu ganhei uma moto, presente da minha mãe, uma semana depois que voltei. Costumo alugá-la para quem está aprendendo a pilotar. E para rapazes que aceleram alucinados em busca de alguma maria-gasolina”.

Coadjuvante

Além da família nuclear, outros parentes são apresentados ao longo do romance e, quase sem perceber, quem lê também acaba virando conterrâneo dessa gente.

A parte seguinte traz o que no cinema chamaríamos de coadjuvante: Simone. Uma mulher que, assim como Leonardo, não cabe em Dilúvio das Almas. Se esse fosse um livro previsível, poderíamos apostar num “felizes para sempre”. Mas não é caso.

O coronelismo típico de cidades pequenas (não apenas no nordeste, basta dar um passeio pelo interior do Paraná e é fácil identificar quem manda), uma história de amor, uma surpreendente e próspera lavoura fecham esse passeio que termina, enfim, com Leonardo entendendo que não pertence tanto a um lugar quanto a Dilúvio das Almas.

Leite é feliz na construção da narrativa que surpreende e instiga. É um livro lírico e concomitantemente realístico. Vale muito a leitura.

Livro

“Dilúvio das Almas”, de Tito Leite. Editora Todavia, 112 páginas. R$ 54,90 ou R$ 34,90 (e-book). Publicado em 2022.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Tito Leite atravessa o cotidiano do sertão em “Dilúvio das Almas””

  1. Acompanhei a germinação desse romance e fico super feliz com o progresso e o amadurecimemto de Tito Leite como romancista. Maravilhoso retrato do país, um olhar profundo sobre os eternos problemas brasileiros.

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