Nota do editor: O texto a seguir revela detalhes da trama do filme “Titane”. Se você não gosta de spoilers, é melhor voltar à resenha depois de ver o filme.
Apesar de bizarro e ultraviolento, é um filme sobre o amor, como alguns defendem? Ou trata de duas pessoas que tentam se agarrar desesperadamente uma à outra para não cair em definitivo no abismo existencial em meio a um mundo triste, com atmosfera de fim de festa?
“Titane”, de Julia Ducourneau, começa com imagens arrojadas da parte inferior de um carro em movimento. Filmado com muita proximidade, o conjunto de aço, titânio e outros metais, que brilham com o óleo sujo escorrendo, é de uma nitidez que impressiona. O “ronco” do automóvel, que tudo indica estar em uma autoestrada, confunde-se com a canção folk americana “Wayfaring Stranger”, ouvida no sistema de som do carro. Esse conjunto, apesar de estranhamente belo, passa uma sensação de perigo iminente.
“Titane”
Pai e filha pequena (ou filho, não é possível saber) estão no carro. Ocorre um acidente e a criança bate a cabeça no vidro. É uma cena rápida e brutal. Provavelmente em razão de um traumatismo no crânio, a criança é submetida a uma cirurgia na cabeça e recebe uma placa de titânio.
Tudo isso ocorre em poucos minutos de filme. Em seguida, já vemos a menina adulta, uma figura enigmática e andrógina, interpretada pela estreante Agathe Rousselle. A personagem (ficamos sabendo que se chama Alexia) faz questão de arrumar o cabelo de forma que a cicatriz da cirurgia com placa de titânio fique bem visível. Ela trabalha em uma feira de carros esportivos e sua função é dançar de forma sensual em cima do capô de automóveis tendo como plateia muitos homens.
Titânio
Não sabemos se, quando criança, Alexia já possuía algum transtorno mental, mas somos levados a acreditar que o brutal acidente que sofreu e a cirurgia na cabeça, além daquela placa de titânio, foram as causas que a transformaram em uma assassina em série.
Uma das armas mortais de Alexia é um longo grampo de cabelo que ela crava no ouvido das vítimas. Mas a personagem também é capaz de matar um homem esmagando a mandíbula do sujeito com o pé de uma cadeira.
Ultrarrealista
As cenas com essas mortes chocantes podem vir acompanhadas de sons pesados e abafados, mas, também, com a animadíssima canzone dos anos 60 “Nessuno mi puo giudicare”, cantada por Caterina Caselli. Nesse último caso, o contraste é curioso, lembra um pouco os filmes de Quentin Tarantino. Porém, aqui a violência não é estilizada e engraçada, muito pelo contrário: a dor, o sangue e o sofrimento são ultrarrealistas, ressaltados pela direção de fotografia que usa cores em tons intensos.
Nesse momento do filme, já sabemos que Alexia tem atração, inclusive sexual, por metais. O cúmulo dessa particularidade acontece quando a personagem faz sexo com um automóvel. A consequência é uma gravidez indesejada.
A barriga de Alexia começa a crescer e ela sofre algumas alterações fisiológicas em razão de seu estado, como expelir óleo pela vagina e pelo bico dos seios. Além disso, ela é agora uma assassina foragida e precisa se esconder.
Aparências
Uma das estratégias de Alexia é mudar a aparência. Ela corta os cabelos e quebra o próprio nariz. O objetivo é ficar parecida com um menino chamado Adrian, desaparecido há muitos anos e cuja foto – em que foi envelhecido digitalmente – está espalhada por toda parte.
O pai do garoto reconhece em Alexia a figura do filho e a leva para casa. Recebe o garoto com extrema emoção.
Esse homem, chamado Vincent (interpretado por Vincent Lindon), é um bombeiro de cerca de 60 anos. Ele vive em uma unidade de corpo de bombeiros junto aos subordinados, e percebemos nele uma solidão angustiante. É um sujeito de físico forte, que busca manter esse vigor a qualquer custo, inclusive submetendo-se a injeções de testosterona ou outra substância do gênero. Após uma dessas autoaplicações, Vincent olha-se no espelho e o que vê é um homem que, por fora, está prestes a explodir, mas, por dentro, está em ruínas.
Alexia/Adrien começa a acompanhar Vincent nas atividades dos bombeiros. Chega mesmo a reanimar uma idosa que sofre uma parada cardíaca, uma cena quase intolerável que fica ainda mais perturbadora porque a reanimação é acompanhada pela canção “Macarena”.
Erotismo
A personagem participa também dos momentos de lazer dos bombeiros, incluindo uma dança com o grupo. A cena é em câmera lenta, com os homens fumando e bebendo enquanto dançam suavemente. Em trechos como esse, a diretora parece querer ressaltar a beleza dos gestos masculinos, em uma atmosfera de erotismo.
A masculinidade, aliás, está cada vez mais evidente em Alexia, apesar da aparência franzina. O novo visual, entretanto, atordoa o expectador quando a personagem, nos momentos de privacidade, retira as roupas e olha a barriga cada vez maior, apresentando um formato estranho, quadrado, além de estar cada vez mais suja de óleo e graxa, que escorrem de seu corpo.
A partir desse momento, ocorrem algumas das sequências mais fortes do filme. A primeira é a revelação da anatomia de Alexia ao pai. Quando Vincent a flagra sem roupa, com seu corpo feminino, ele cobre a nudez de Alexia com delicadeza. Percebemos que o constrangimento é, sobretudo, pelo filho. A essa altura, já não importa que seja Adrien ou Alexia.
Outro momento marcante do seguimento final da produção é a dança de Alexia. Em cima de um caminhão, e diante dos bombeiros, ela realiza gestos femininos sensuais e sexuais. O grupo de homens vê Adrien se transformar em uma mulher, ou em alguma pessoa sem gênero. Aqui, a diretora Julia Ducourneau coloca Alexia em suas mãos e, acompanhando os movimentos ondulantes da dança da personagem, a cineasta parece modelar seu corpo e sua essência. Diante de nós, Alexia transforma-se em uma figura humana não binária, um molde a partir do qual a personagem pode ser o que quiser.
Por fim, temos o parto. O que nascerá da relação sexual de Alexia com o automóvel? Esse momento fatal será bravamente acompanhado por Vincent. Ele não abandonará o filho. Ambos se agarrarão um ao outro até o fim. Isso também pode significar amor?
Onde assistir
“Titane” ganhou a Palma de Ouro em Cannes 2021, em júri presidido pelo diretor Spike Lee. O filme está disponível, com exclusividade, na MUBI.
Grata pelo texto esplendido,Gilberto.Eu não iria assistir o filme,agora vou.O título da tua matéria é certeiro…evoca o amor em situações limítrofes.Tenho quase certeza que sairei com o coração dilacerado.