Startups que fracassam são sucesso no streaming

Plataformas apostam em histórias marcantes de quando a cultura do Vale do Silício falhou miseravelmente. Confira os títulos

Em 2010 Hollywood celebrava a húbris do garotão que queria usar a internet para conhecer mulheres em A Rede Social. Mais de uma década depois, os estúdios americanos parecem ter um novo herói: o startupeiro que fracassou. Desde o início de 2022, vários títulos “celebram” o momento “deu tudo errado” de projetos antes considerados ótimos investimentos. Mas será que além de bom entretenimento, essas obras também oferecem alguma lição?

Grandes fracassos são como acidentes de trânsito. Sabemos que não deveríamos olhar, mas a curiosidade mórbida é mais forte. E é justamente isso que a Theranos e We Work são, desastres exuberantes retratados com exuberância em três produções: A Inventora (HBO Max), The Dropout (Starplus) e We Crashed (Apple TV).

Primeira lição: a importância de dar valor ao negócio

Se há algo que todo empreendedor quer é ter recursos para botar sua ideia em pé. O ideal é ter recursos próprios, dessa forma o sucesso (e os lucros) permanecerão totalmente com o/a dono/a do negócio. Mas no caso de empresas de tecnologia, o custo de operação de uma grande ideia é alto e frequentemente é necessário arrecadar investimento externo.

Esse processo envolve três questões principais: determinar o valor do negócio, a previsão de receita e a viabilidade. Ou seja, não é só uma questão de ter uma excelente ideia. Essa ideia tem que ser viável (não adianta inventar uma roupa que nunca suja se o custo dela é muito superior ao de lavar roupas comuns) e a receita possível precisa permitir que o negócio seja lucrativo (se você precisa vender meias de algodão a R$ 200 num mercado em que o preço médio de produtos similares é R$ 30, sua chance do negócio ser lucrativo é inexistente).

Tanto a Theranos quanto a We Work conseguiram vender a ideia de que o negócio valia muito, portanto fazia sentido os investidores colocarem neles milhões em troca de parte da empresa. O problema é que, no caso da Theranos, a tecnologia que dava valor ao negócio não estava pronta, portanto as projeções de receita não eram reais e não iriam se concretizar.

Já no caso da We Work, o negócio existia, a demanda existia, mas o custo de operação era alto demais. Ou seja, apesar de faturar bilhões, a empresa gastava mais do que arrecadava e se manteve deficitária.

Mas nenhum investidor viu isso? Em A Inventora, o documentário analisa justamente o quão emocional (assim como racional) o processo de investir em uma ideia nos estágios iniciais. Nesse estágio, o(a) empreendedor(a) precisa comunicar aos potenciais investidores que ele(a) é capaz de realizar aquela ideia e torná-la viável.

Tanto Elizabeth Holmes, da Theranos, quanto Adam Neumann da We Work, convenceram gente acostumada a analisar ideias e empreendedores e acertar suas apostas. Seus investidores incluíam gente que havia investido em outras grandes ideias que se tornaram empresas de sucesso, como o Twitter, Uber, Facebook.

Ou seja, eles foram bem-sucedidos em criar uma ideia de valor para suas ideias. E projetar um retorno financeiro e uma capacidade de realização crível o suficiente para conquistar esses investidores. Mas falharam em dar conta de concretizar isso.

Segunda lição: o sonho

Parte da razão pela qual Adam e Elizabeth foram tão bem sucedidos é que eles investiram pesado em vender um sonho. Sonhos são fundamentais na cultura startup porque empresas não são (apesar das pessoas acharem que startups são ideias que faturam bilhões em pouco tempo) empreendimentos de curto prazo. Uma boa empresa é aquela que permanece, que suporta e supera os desafios econômicos e sociais.

Pense nas grandes marcas: Disney, Apple, Petrobras, Volkswagen, etc. São empreendimentos que existem a décadas, que já são um elemento estável da História, apesar delas terem mudado de mãos, se adaptado, o mundo ter mudado também.

Mas uma startup não tem décadas de história para invocar. Então o sonho vende décadas do futuro, quando esse sonho se concretizará e a empresa será uma nova Disney. É isto que inflou o valor de ambas empresas e que conquistou as mentes dos investidores.

O problema é que o sonho precisa estar ancorado à realidade e ser coerente com a cultura da empresa. Na We Work, enquanto o casal Adam e Rebekah insistia em estar elevando o consciência mundial, na prática eles vendiam um ambiente de trabalho excessivo, pouco inclusivo e com baixos salários.

Já a Theranos vendia uma revolução na saúde ao mesmo tempo em que colocou uma máquina experimental em uso para pacientes reais, colocando em risco pessoas e sendo pouco transparente a respeito das limitações de seus exames.

O problema em ambas as empresas não era o sonho em si, mas a falta de comprometimento dos líderes com o que pregavam.

Ou seja, não é possível encarar o sonho de um empreendimento apenas como uma estratégia de comunicação. Ele precisa ser parte do núcleo duro do negócio e estar entrelaçado a todos os aspectos da empresa.

Terceira lição: o dinheiro não é o objetivo final

Se a medida do sucesso de um empreendimento é só financeira, não podemos dizer que a Theranos e a We Work foram fracassos. Especialmente a We Work foi um estrondoso sucesso e deixou Adam Neumann bilionário (Elizabeth teve menos sorte, já que ela foi processada e condenada por fraude e a Theranos perdeu todo seu dinheiro). As duas empresas realmente conseguiram arrecadar milhões.

A questão é que a medida de sucesso de uma empresa não pode ser só financeira. Quando deixa de ser uma ideia para ser um negócio, um empreendimento passa obrigatoriamente a ser uma comunidade, a ter importância na vida da cidade em que está, dos clientes, dos funcionários, dos fornecedores. O sucesso e o fracasso de uma empresa provoca ondas que afetam um amplo círculo de pessoas.

Na We Work, a empresa surgiu com o apoio de funcionários que aceitaram jornadas longas de trabalho, salários baixos sob a promessa de ganharem parte do bolo no futuro. Mas o fracasso da empresa em realizar seu IPO (causado pelo fracasso de Neumann em manter os custos sob controle para garantir a lucratividade da empresa) frustrou essa promessa, causando prejuízo a quem se dedicou a ideia.

Na Theranos, apesar de bem financiada, a empresa não se dedicou o suficiente à tecnologia que prometeu desenvolver, focando ao invés disso em aumentar as projeções de lucros e arrecadar novos investimentos. Se tivesse conseguido desenvolver uma máquina que realizasse alguns exames com agilidade e baixo custo a empresa teria a tecnologia e poderia entregar o que prometeu.

Mas como Elizabeth estava mais focada em conseguir mais dinheiro, ela foi aumentando a aposta, tornando a ideia da máquina ainda mais incrível ao prometer um número cada vez maior de exames. No papel isso parecia respaldar previsões otimistas de receita. A tecnologia, porém, não podia entregar o que ela havia vendido e foi só uma questão de tempo até que o castelo de cartas desmoronasse.

Onde assistir The Dropout e A Inventora

Entre os três, o maior hit é a CEO da Theranos, Elizabeth Holmes, que protagoniza não uma, mas duas produções de grandes plataformas: A Inventora, da HBO Max e The Dropout, do Starplus. O primeiro é um documentário e o segundo uma série de oito episódios, mas ambos contam a mesma história: como Elizabeth queria ser uma empreendedora desde cedo, como ela chegou a Universidade de Stanford e avidamente tentou propor uma ideia que fosse um grande negócio, uma inovação marcante que a colocaria no panteão em que figuram Steve Jobs e Bill Gates e como a ideia dela – uma máquina que realiza centenas de exames de sangue a partir de uma única gota rapidamente e a baixo custo – arrecadou milhões e terminou em catástrofe.

Em A Inventora, Elizabeth aparece em entrevistas e gravações, assim como materiais promocionais da Theranos em contraste com jornalistas e outros profissionais que vão revelando os furos na empresa e nas ações de Holmes. Não havia nada de errado com o sonho apresentado por Elizabeth: um mundo no qual você iria a farmácia, ou teria um aparelho em casa e poderia com isso acompanhar seus índices de glicose, colesterol, indicadores de infecção ou de doenças auto-imunes. Tudo por muito pouco dinheiro e em pouco tempo.

Em The Dropout, a mesma história ganha uma versão romantizada, focada na relação de Holmes com Sunny Balwani, o empresário americano 19 anos mais velho com quem Elizabeth se envolveu e que eventualmente se tornou COO (Chief Operating Officer) da Theranos. Balwani teria contribuído para a atmosfera de sigilo em torno da tecnologia supostamente desenvolvida pela empresa. Tanto Holmes quanto Balwani são réus em processos criminais por causa do fim da Theranos (Elizabeth foi condenada por fraude e está aguardando a setença em liberdade, o julgamento de Balwani começou em março de 2022).

O seriado é inspirado no podcast homônimo disponível em inglês.

A história de Elizabeth também pode ser lida em Bad Blood, de John Carreyrou. John escreveu a primeira das grandes reportagens que expuseram a fraude por trás da tecnologia de Elizabeth Holmes. O livro é uma grande reportagem num ritmo típico de um thriller policial, graças a forma como Holmes e Balwani perseguiam quem tentava revelar as falhas da Theranos.

Disponível no formato ebook na Amazon por R$ 43,11

Onde assistir:

  • The Dropout: 8 episódios na Starplus
  • A Inventora: documentário, disponível na HBO Max

Onde assistir We Crashed

Em We Crashed, minissérie da Apple TV cujo oitavo e último episódio estréia no próximo dia 22 de abril, o anti-herói da vez é o empreendedor israelense Adam Neumann e a startup do coworking, We Work, que de 2008 a 2019 arrecadou US$ 10 bilhões em investimentos. A história de Neumann e seu talento em convencer investidores a colocar milhões na ideia de locar espaços de trabalho que ofereciam bebidas e happy hour diariamente também está em Billion Dollar Loser, de Reeves Wiedeman.

Wiedeman te transporta para o início da vida de empreendedor de Neumann, quando ele tentava vender roupas de bebê com protetores nos joelhos e sapatos de salto retráteis e o caminho que o levou até a We Work. Isso inclui encontrar e se casar com uma prima da atriz Gwyneth Paltrow (ela mesma envolvida em uma série de polêmicas pela comercialização de tratamentos “alternativos” através da empresa Goop), Rebekah, que adicionou ao impulso empreendedor de Neumann uma veia new age.

We Crashed explora tanto a vontade incontrolável de Neumann de ter uma empresa multibilionária quanto o uso e abuso de linguajar holístico para empacotar o bom e velho mercado imobiliário numa embalagem mais moderna. A We Work não aluga escritórios, Neumann e Rebekah insistem na série, ela está numa missão para “elevar a consciência humana”.

O problema é que no caminho para a iluminação, o casal queimou bilhões, misturou o patrimônio pessoal ao da empresa (Neumann teria alugado imóveis dele mesmo para a empresa, num claro conflito de interesse) e falhou em conseguir tornar a empresa viável comercialmente. A versão televisiva do casal é vivida por Jared Leto e Anne Hathaway, ele um bon vivant garoto-propaganda de uma cultura de fraternidade universitária, ela uma hippie moderna, ex-instrutora de yoga perseguindo uma identidade própria.

Enquanto a série foca mais na relação do casal e no charme de Adam, o livro detalha melhor os negócios que fizeram a We Work crescer rapidamente, alimentando tanto o ego quanto a capacidade de Adam de conquistar novos investidores.

Onde assistir e ler:

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