Biografia retrata uma Simone de Beauvoir múltipla e independente

Filósofa, escritora, ensaísta, editora e ativista política, a pensadora francesa lutou acima de tudo pelo direito das mulheres

Uma das epígrafes da biografia “Simone de Beauvoir: uma vida”, escrita por Kate Kirkpatrick, é uma frase do livro “O segundo sexo”, de 1949, escrito pela romancista e feminista francesa: “Emancipar a mulher é recusar-se a encerrá-la nas relações que ela mantém com o homem, mas não as negar a ela”.

Apesar disso, como lembra a biógrafa de Beauvoir, quando a escritora morreu, em 14 de abril de 1986, aos 78 anos, os jornais globais a encerraram justamente na relação que ela teve com Jean-Paul Sartre (1905-1980), destacando que “ela seguiu Sartre, obedientemente assumindo seu lugar apropriado: o segundo”. Kirkpatrick destaca ainda que “enquanto alguns obituários de Sartre não mencionaram nada sobre Beauvoir, os dela nunca deixaram de mencioná-lo – às vezes extensamente, deixando um espaço absurdamente estreito nas colunas para falar das obras dela”.

É interessante observar que, nos anos 1980, muitos colocaram em xeque a ideia de feminismo, afirmando que as mulheres já haviam adquirido direitos e viviam uma relação de igualdade com os homens. Mas basta voltar ao obituário da escritora para chegar à conclusão de que a mulher ainda era o segundo sexo.

A biografia de Beauvoir traz à tona a figura múltipla e independente que ela foi no campo cultural e político: filósofa (embora não se considerasse uma), escritora, ensaísta, editora do importante jornal “Les Temps Modernes” e também uma grande ativista a qual defendeu a libertação da Argélia, que, até o início dos anos 1960, era colônia francesa. Lutou pelo direito das mulheres acima de tudo, e pensou também a questão dos negros.

Embora tenha sido reconhecida e agraciada com prêmios importantes ao longo de sua vida, ela não se iludia, sabia que era vista como alguém “derivada de Sartre, e incompreendida por pessoas que tinham interesse em não a entender”, como afirma a sua biógrafa. Um exemplo da incompreensão em relação ao seu pensamento diz respeito à sua ideia de maternidade: Beauvoir se referia às grávidas como hospedeiras, como escravas da espécie e via nisso um “paradoxo criminoso”, pois não entendia como podiam “negar às mulheres qualquer atividade pública, fechar para elas acesso às carreiras masculinas, proclamá-las incapazes em todos os domínios, mas confiar-lhes o mais delicado e mais sério de todos os empreendimentos: a formação de um ser humano”.

Além disso, a escritora apontava para dois equívocos perigosos sobre ser mãe: o primeiro, acreditar que a maternidade era suficiente para satisfazer uma mulher, e o segundo, supor que uma criança encontrará felicidade nos braços da mãe, mesmo que a progenitora se sinta frustrada e insatisfeita.

Muitos homens se opuseram à forma como ela abordava a maternidade, “esse assunto sagrado”, mas esqueciam que outros filósofos já haviam tratado sobre o tema da mesma maneira, como, por exemplo, Schopenhauer.

A luta de Beauvoir era também pela liberdade; e nesse sentido, discordava de Sartre, o qual acreditava que, na condição humana, somos “condenados à liberdade”.  Para a escritora, a liberdade era limitada e dependia do outro, ou seja, de o outro aceitar a liberdade do próximo. Na condição feminina, contudo, as mulheres eram condenadas não a serem livres, mas a se sentirem divididas, a se tornarem “sujeitos divididos”, pois, ou deviam renunciar a si mesmas para ter sucesso no amor, ou se tornarem elas mesmas e renunciarem ao amor. Os homens haviam criado mitos sobre a feminilidade e não queriam abrir mão deles.

Ser livre, contudo, não é tarefa fácil, disso sabiam Sartre e Beauvoir, pois é mais confortável aceitar nosso papel no mundo como predeterminado do que escolher o que se quer ser. Permanecer passivo era um ato de má-fé, salientava a escritora.

Beauvoir acreditava ainda que as liberdades não eram iguais, porque “as situações são diferentes”, e se indagava sobre que tipo de liberdade poderia alcançar, por exemplo, uma mulher trancada em um harém.

A escritora refletia também sobre o que era a liberdade para negros e judeus, os quais também, assim como as mulheres, eram “reduzidos a uma única dimensão de sua facticidade, e, ao fazê-lo, deixam de reconhecer completamente sua humanidade”.

Quando visitou pela primeira vez os Estados Unidos da América, Beauvoir se interessou pelos negros americanos e foi apresentada a um livro que mudaria seu curso intelectual, “Um dilema americano: o problema negro e a democracia moderna”, publicado em 1944 pelo sociólogo Gunnar Myrdal.

A escritora logo se deu conta de que “os ideais políticos estadunidenses – como igualdade, meritocracia e oportunidade – não levavam em conta o modo pelo qual a vida negra era, no passado e no presente, condicionada pela opressão, o preconceito e a exclusão”.

A obra de Simone de Beauvoir (1908-1986) ainda hoje é pouco compreendida, e a escritora acaba sendo reduzida, muitas vezes, a um único perfil. Vale a pena também ler duas entrevistas que ela concedeu ao jornal “O Estado de S. Paulo”, quando visitou o Brasil em 1960.  

Livro

“Simone de Beauvoir: uma vida”, de Kate Kirkpatrick. Tradução de Sandra Martha Dolinsky. Crítica, 416 páginas, R$ 69,90.

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