Série mostra como João de Deus usou a fé para enganar e arrebanhar multidões

Em cartaz na Globoplay, "Em nome de Deus" refaz os passos da investigação que expôs o religioso

Vi minha mãe morrer quatorze anos atrás. Lentamente, de uma doença incurável. Ela morreu sabendo que ia morrer. Mas ela estava em paz. “Passe óleo de oliva na barriga”, ela aconselhava, para quando eu decidisse engravidar. O que dava paz para a minha mãe era a fé.

Ela era de uma fé inabalável em Deus, em um ser superior, e acreditava que iria para um lugar melhor, nos braços Dele. Não tenho a mesma fé, mas invejo até hoje a capacidade dela de enfrentar com dignidade o fim da própria existência.

Não é fácil enfrentar a doença, a própria mortalidade. É um momento de desespero, de solidão. De fragilidade. Não só do doente, mas das pessoas ao redor dele, que enfrentam a impotência de não poder fazer nada, a não ser estarem presentes.

João de Deus

Foi justamente no desespero da doença que pessoas se viram vítimas de “homens de bem” como João de Deus. Ele prometia cura, prometia salvação. A impotência e o desespero levava milhares, todos de branco, a entrar em correntes de oração e se entregar a cirurgias espirituais.

João, como hoje se sabe, usava essas mesmas promessas para abusar sexualmente e estuprar mulheres. Centenas de mulheres.

Foram justamente elas que acabaram com João de Deus. E o colocaram na prisão [no caso, hoje, por causa da pandemia, prisão domiciliar].

Entre os relatos, algumas diziam conhecer dois João: o homem de Deus e o monstro. A série documental “Em nome de Deus”, em cartaz na Globoplay, mostra em seis episódios que ambos são um só.

Passo a passo, a investigação sobre o médium mostra como ele tirava dinheiro do desespero das pessoas, apesar de alegar não cobrar nada pela “cura”; como afastou pessoas doentes da medicina tradicional, acelerando a degradação da saúde delas; como viajou o mundo cobrando caro para “curar”.

E como, nisso tudo, foi deixando um rastro de dor, de perda e de violência pelo caminho.

A série, que é produzida por Pedro Bial (foi em seu programa “Conversa com o Bial” que as agressões de João contra mulheres finalmente ganharam a atenção que mereciam), é uma importante reconstrução de como a fé de muitos – celebridades, políticos, médicos e religiosos – pavimentou o caminho pérfido percorrido por João.

Um grupo o expulsou de uma cidade por ter abusado de uma jovem, mas não o levou à Justiça nem o denunciou publicamente. Outros tentaram comprar o silêncio de uma mulher abusada a dois passos do marido, durante uma suposta oração.

Os exemplos são muitos. Uma fã alega que “muitos foram curados”, mas a equipe de “Em Nome de Deus” mostra dois casos de pessoas que morreram esperando um milagre enquanto abandonaram a medicina tradicional.

Jornalista Camila Appel

O trabalho da equipe liderada pela jornalista Camila Appel é fundamental. Mostra o mecanismo que usa a fé – talvez a mesma fé que deu tanta paz para minha mãe – para cegar, para arrebanhar multidões.

A cegueira, o documentário mostra, foi também do jornalismo. Gravações antigas mostram João sendo promovido em programas locais, jornais e até no “Globo Repórter”.

A exposição deu certo: ele virou uma celebridade internacional. Ganhou força, poder e dinheiro, muito dinheiro. O mesmo dinheiro que ajudou a mantê-lo tanto tempo longe da Justiça.

Por sorte, um dia, o jornalismo – esse pária – jogou luz nos cantos obscuros da vida de João. O documentário, agora, escancara ainda mais o que precisava ser limpo pelo sol.

O jornalismo, sozinho, não tem poder de fazer nada. Mas o caso narrado na série “Em nome de Deus” mostra que, às vezes, olhar para aquilo que as pessoas se recusam a ver já é fazer muito. É o suficiente para recuperar a fé de que mesmo aqueles que se imbuem da luz divina um dia precisarão responder pelos seus atos.

Streaming

“Em nome de Deus” está em cartaz na Globoplay. A série tem seis episódios de 60 minutos cada um.

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