Samba no pé (vermelho)

O Plural entrevistou Leonardo Bora, o carnavalesco de Irati citado como "herdeiro de Joãosinho Trinta"

Depois de meia hora, Leonardo Bora, 32, precisou encerrar a conversa com o Plural via telefone. “Vou ter que correr, estão me chamando desesperadamente”, justificou. Faltam apenas dez dias para que o trabalho de um ano como carnavalesco seja exposto e julgado na Marquês de Sapucaí, o palco daquele que muitos consideram “o maior espetáculo da Terra” – o carnaval carioca – e a essa altura do campeonato nunca se tem tempo sobrando. “Adiantado a gente nunca está. A gente está no ritmo. Vai sair o projeto planejado, mas na ponta do lápis e aos 45 minutos”, projeta.

Escola pela qual ele é um dos responsáveis (junto com o também carnavalesco Gabriel Haddad), a Acadêmicos do Cubango entra na avenida com um enredo sobre fé e devoção no sábado, 2 de março, pela série A. No Rio, as agremiações são divididas entre o grupo especial, que tem os desfiles transmitidos para todo o Brasil, e os grupos de acesso, e a série A é último degrau antes do topo representado pela TV.

Leonardo nunca esteve tão perto do ápice. Ele nasceu em 1986, em Irati, um pequeno município do sudeste do Paraná colonizado por descendentes de poloneses e ucranianos, lugar que não é exatamente conhecido por ser um celeiro de carnavalescos. No entanto, foi ali que aos sete anos ele começou a rascunhar as fantasias e alegorias que via nos desfiles da TV, e com o tempo meteu na cabeça que era isso o que queria fazer da vida. Hoje, é tido como um dos mais promissores profissionais do Rio de Janeiro, citado por críticos de arte nas páginas dos jornais.

Formado em Letras pela PUC-PR e em Direito pela UFPR, com mestrado e doutorado em teoria literária, durante o ano Leonardo se divide entre os preparativos para carnaval e as aulas no departamento de Belas Artes da UFRJ. No Rio, já passou por cinco escolas de samba, e tem três títulos de campeão do carnaval nos grupos de acesso.

Na entrevista abaixo, ele conta sua trajetória e fala um pouco sobre os bastidores do seu ofício. Leia os principais trechos:

Você é natural de Irati, interior do Paraná. Como foi parar no carnaval do Rio de Janeiro? Não é uma trajetória muito comum.

Bem, eu nasci numa família que sempre gostou de carnaval, sempre acompanhou pela TV o carnaval e sempre participou das manifestações carnavalescas da cidade. Que eram basicamente carnaval de rua, com a apresentação de blocos, algumas escolas de samba pequenas e bailes em clubes, essa tradição dos carnavais de clube. E eu sempre participei desse momento, o carnaval sempre foi uma época muito esperada.

A relação com as escolas de samba começou mediada pela TV. Eu sou um representante daquela geração que se apaixonou pelas escolas de samba assistindo aos desfiles pela transmissão televisiva. Meu pai assistia aos desfiles com muita empolgação, meus avós gostavam, minha mãe também. Eu comecei a assistir, comecei a gostar e muito cedo eu comecei a desenhar. Com sete anos eu já desenhava, rabiscava fantasias, carros alegóricos, imaginava esse universo, na minha cabeça não era uma coisa tão distante. Aos poucos eu fui percebendo que a geografia oferecia uma distância. Eu não tinha nenhum parente no Rio, nenhuma relação com a cidade. E a paixão foi esfriando.

Leonardo Bora.

Então eu fui pra Curitiba, morei nove anos na capital, para fazer minhas faculdades. E nesse período começou a aproximação com o Rio. Eu já planejava continuar os estudos, mestrado e doutorado, na UFRJ, pesquisando o carnaval, numa linha de pesquisa em teoria literária. Aos poucos eu fui conhecendo pessoas do meio do carnaval, apresentando desenhos na internet. Fui descobrir que havia um concurso, chamado Carnaval Virtual, que é basicamente um concurso de desenhos. Pessoas que gostam, que desenham fantasias e alegorias, montam apresentações numa passarela virtual, com enredo, com samba. E isso é avaliado por um corpo de jurados que tem pessoas ligadas às escolas de samba mesmo. Eu comecei a participar desse concurso em 2007, meu trabalho foi sendo conhecido e aos poucos eu fui fazendo pequenos trabalhos à distância.

Agora, eu só fui começar a trabalhar como carnavalesco pra valer, assinando um desfile, depois que eu vim morar no Rio, em 2012. Então, meu primeiro carnaval assinado é de 2013.

Do jeito que você conta parece que foi uma coisa fácil, até natural. Não teve nenhum percalço, nenhum atrapalho?

Olha, muita gente diz que eu tenho um lado pessimista. Eu não me considero pessimista, acho que eu sou realista. O meio do carnaval é muito incerto, muito instável. Desde questões mais básicas, como direitos trabalhistas, até questões mais complexas, que envolvem o próprio cenário da arte: em um ano você faz um trabalho que é aclamado, elogiado, que te catapulta para uma posição de destaque, e no ano seguinte você pode ser esquecido. Essa roda toda é muito cruel. E eu sempre tive um pouco de medo disso. Nunca quis chegar no Rio com uma mochila nas costas pra viver em um barracão. Essa nunca foi a minha ideia. Então na verdade essa vinda ao Rio acabou sendo muito planejada. Eu fiz as duas graduações no Paraná. Ainda durante a graduação em Direito eu comecei a reunir o material pra fazer o mestrado no Rio em teoria literária, entrar em contato com professores, ir ladrilhando esse caminho pra chegar na UFRJ e depois, de dentro da universidade, mergulhar no carnaval, mas tendo sempre essa âncora. Felizmente deu certo.

Você contou que começou a gostar de escolas de samba quando era pequeno, vendo desfiles pela TV. Você tem uma primeira memória, uma cena ou um desfile marcante, algo que você viu e pensou: “é isso”?

As primeiras memórias são do carnaval de 92, quando a Estácio de Sá foi campeã com um enredo sobre a Semana de Arte Moderna de 1922. Mas as memórias mais concretas são de 93. Em 1993 eu já acompanhei todos os desfiles e comecei a desenhar, a imitar nos cadernos de desenho do colégio algumas daquelas alegorias e fantasias que eu via passando na avenida. Foi o ano em que o Salgueiro foi campeão, com o famoso samba-enredo Explode Coração. Desse carnaval eu guardo memórias mais palpáveis.

Quando você estudava aqui em Curitiba, se envolveu de alguma forma com o carnaval, com as escolas da cidade?

Não, não. Conheci algumas pessoas das escolas, mas nunca cheguei a participar efetivamente, fazer desenhos. Eu frequento o carnaval do Rio desde 2008. Nos dois anos anteriores, passei em São Paulo. E até então os meus carnavais eram sempre os mesmos: ir pra Irati e ficar assistindo a todas as escolas de samba na TV. E ainda gravar em fita VHS, pra ver de novo depois. Meu carnaval era este: era ficar na casa dos meus pais assistindo às escolas de samba.

Você ainda visita Irati, tem contato com a sua cidade natal?

Sim, eu vou com certa frequência visitar meus pais.

E o pessoal te conhece, sabe o que você faz, pergunta a respeito? Eles sabem que você é carnavalesco?

Algumas pessoas, sim. Saíram algumas matérias na imprensa local sobre isso. Infelizmente o carnaval da cidade, que já foi um dos maiores do centro-sul do estado, está um pouco abandonado. Não sei como vai ser o carnaval deste ano. Meus pais também não têm mais participado. Eles passam o carnaval aqui no Rio comigo desde que eu comecei a trabalhar como carnavalesco. Mas algumas pessoas sim. E é um retorno que sempre me propicia muitas memórias. Trabalhar com essa memória inicial do carnaval, daquele tempo em que eu desenhava imaginando que o Rio de Janeiro era muito distante.

Leonardo Bora com seu parceiro de criação, Gabriel Haddad.

Agora em fevereiro o jornal O Globo publicou um texto da crítica de arte Daniela Name citando você como um dos carnavalescos mais promissores da nova geração, um herdeiro de Joãosinho Trinta e de outros revolucionários. Como isso soa pra você?

É difícil falar dessa coisa de herdeiro, de herança, contemporaneamente. Mas é óbvio que a obra do Joãosinho Trinta, principalmente enquanto grande discurso de país, enquanto visão onírica, fantástica, panfletária de país, influencia o meu trabalho. Eu sou um grande admirador da obra dele, como sou um admirador da obra de vários outros carnavalescos. Eu me sinto um herdeiro da tradição do carnaval. Alguém que ama o carnaval, alguém que gosta da estética do carnaval. Um artista que não vê o carnaval separado das demais formas de arte. Que entende o carnaval enquanto arte, enquanto discurso, enquanto potência criativa. E o Joãosinho Trinta talvez seja o nome mais conhecido que expressa esse universo tão grande. É uma honra poder pisar na mesma passarela que alguém que fez tantos desfiles impressionantes.

Você se formou em Letras pela PUC-PR e depois fez pós-graduação na área, já no Rio. O que você leva dessa formação literária para o carnaval?

Olha, a profissão carnavalesco é uma profissão muito fluida, uma profissão híbrida. Não necessariamente você precisa ter uma formação em determinada área para ser carnavalesco. Então a gente encontra nas escolas pessoas oriundas das mais diversas profissões, com as mais variadas experiências. Claro que tudo soma. Na comissão de carnaval da Mocidade Unida do Santa Marta, que foi onde eu comecei, éramos em sete pessoas. Tinha gente da moda, tinha gente de cinema, tinha gente da antropologia, tinha eu da literatura, tinha relações internacionais, belas artes. Eu acho que é essa mistura de saberes e experiências que gera um resultado final interessante.

A literatura se reflete nos meus enredos, que eu desenvolvo em parceria com o Gabriel Haddad há quatro anos. Eles sempre possuem uma pegada literária na forma de contar a história, e também na própria temática. É um universo que me fascina muito e que vem sendo explorado no carnaval.

[Em 2016, Leonardo Bora e Gabriel Haddad venceram a série B do carnaval carioca pela escola Acadêmicos do Sossego com o enredo ‘O circo do menino passarinho’, uma homenagem ao poeta Manoel de Barros.]

E como é que se escolhe um enredo? Vocês têm liberdade pra definir? Tem disputa com a escola, com a comunidade?

Isso depende. Muitas vezes a escola tem uma ideia ou alguém da escola tem uma ideia. Há o caso dos enredos patrocinados, quando a diretoria da escola fecha um contrato de patrocínio com uma empresa, um município ou um estado. Aí não depende do carnavalesco. Agora, há o caso dos enredos apresentados pelo carnavalesco, debatidos com a escola e aceitos, que é o caso de todos os carnavais que eu fiz até hoje.

Caso chegassem com uma ideia pronta, você tem algum limite, uma restrição, uma coisa que não toparia fazer?

Determinados enredos sim. Determinadas homenagens eu acho um pouco complicadas. Não faria não.

Pode dar um exemplo?

Olha, é difícil dar um exemplo porque eu nunca parei pra pensar muito nisso. Os exemplos que eu poderia dar são enredos que foram feitos por outros carnavalescos e eu considero equivocados. Mas seria um pouco antiético falar disso, então é melhor não comentar.

Você ainda não assinou um carnaval sozinho, sempre trabalhou em comissões ou em parceria com o Gabriel Haddad. Sente falta disso?

Por enquanto, eu gosto de trabalhar em parceria. Eu acredito que o resultado final é mais coeso, é mais interessante. E tem a ver com a própria demanda de trabalho. Eu acredito que se você dividir as funções e tiver mais de uma cabeça pensando, soma. Trabalhar sozinho não é algo em que eu pense. Não tenho essa vaidade, que é um pouco datada, inclusive. Esse negócio do artista como dono de uma obra. O carnaval é uma grande obra coletiva, na verdade. Por mais que haja uma assinatura, Carnavalesco Fulano de Tal, ele só é produzido porque existem inúmeros profissionais que contribuem para feitura desse projeto e infelizmente muitas vezes ficam no anonimato. E isso na arte contemporânea é muito comum: você tem uma ideia, mas a execução dessa ideia envolve inúmeras pessoas. Uma escola de samba é um pouco isso. Então eu não tenho essa ideia de fazer uma coisa sozinho por enquanto não.

A gestão do prefeito Marcelo Crivella (PRB) cortou recursos para o carnaval do Rio deste ano. De quanto foram os cortes? E qual você acha que foi a motivação?

A realidade hoje é que ainda não foi assinado o contrato de subvenção das escolas da série A com a prefeitura do Rio. Isso faltando menos de duas semanas pro desfile, dez dias pro desfile [a entrevista foi feita na tarde de quarta-feira, 20 de fevereiro]. O valor do ano passado para o grupo de acesso era de R$ 500 mil, e agora foi reduzido para R$ 250 mil.

A alegação oficial é a crise, a crise que afeta todos os setores. Mas é fato que outras manifestações também de cunho afro-brasileiro, como a festa de Iemanjá, também passaram por um processo de redução, o que gera muitos questionamentos. Até que ponto a religiosidade do prefeito se reflete nessa postura em relação ao carnaval? [Marcello Crivella é bispo licenciado da Igreja Universal.]

Você acredita que tem uma interferência?

Olha, eu conheço algumas pessoas que trabalham na Secretaria de Cultura que afirmam que não, que não passa por essa categoria. Que na verdade o corte existe porque não há um entendimento da grandiosidade do espetáculo, e do quanto o espetáculo gera de receita, com rede hoteleira, setor privado, empregos temporários, a própria cadeia produtiva de um barracão de escola de samba. É uma incompreensão de todo esse modelo de gestão. Que é o que está acontecendo com a cidade inteira. Eles fazem uma redução de investimento na área do turismo, por exemplo, cada vez maior. Felizmente existem ondas que na contracorrente conseguem segurar isso. Por exemplo, o réveillon de Copacabana diminuiu. Quando eu vim morar aqui, em 2012, eram cinco palcos. Agora é um só, e bem menor. Porém o número de pessoas aumentou, e a gente espera também que o número de pessoas no carnaval deste ano aumente. Que seja um carnaval, a despeito da crise, das dificuldades financeiras, muito bom, muito feliz.

Você naturalmente almeja chegar no grupo especial das escolas do Rio. Tem um plano? Que estar lá já no ano que vem?

Não, não. Eu acredito que tem que acontecer da melhor forma possível, sem atropelos. É óbvio que eu quero, é o que todo carnavalesco deseja. Acredito que eu, junto com o Gabriel, estou construindo uma trajetória muito realista. Então se hoje nós nos sentiríamos preparados para assumir uma escola do grupo especial é porque nós começamos lá nas escolas sem visibilidade e temos essa trajetória, esse entendimento do que é um chão de barracão. Então, se surgir um convite, surgir uma oportunidade, que seja da melhor forma, mas eu não penso muito nisso não. Prefiro que as coisas aconteçam.

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