Pão de Hamburguer, pra quem tem fome de rock and roll

Lançamento de “Lado B” consolida grupo curitibano como uma das melhores bandas do rock brasileiro atual

Quando o assunto é rock brasileiro, especialmente aquele que surge na província, seja ela qual for, um dos mais notáveis efeitos provocados pelas intensas transformações da indústria musical das últimas décadas é a necessidade e o emprego de um tempo cada vez mais longo à maturação do som das bandas, que por estarem fora da indústria e, por isso, raramente sobreviverem de sua música, o mais das vezes carecem daquela química que somente a convivência e o exercício criativo contínuo oferecem.

Não é exatamente o caso, porém, dos curitibanos do Pão de Hamburguer. Em que pese o evidente amadurecimento estético que a banda apresenta em seus últimos registros, desde seus primeiros EPs – “Ontem e Hoje” e “Have a Nietzsche Day” – as composições do quarteto já enfeixavam um conjunto de marcas e características que formam sua identidade musical, chegando rapidamente a uma cristalização: a profusão de guitarras alucinantes, certa energia do hard rock setentista, algumas pitadas progressivas e o que podemos chamar de uma psicodelia urbana, que passa necessariamente pelo temário das letras, sempre atravessadas por um olhar poético sobre a cidade e suas opressões cotidianas, mas também sobre as relações afetivas que nela se estabelecem. Em sua curta discografia, tais elementos alcançaram um ponto de culminância com “Visconde de Guarapuava”, álbum cujo lançamento se dividiu em dois momentos: um “Lado A” em 2017 e – para a angústia de quem conferiu toda a potência do primeiro lançamento e quis mais – o “Lado B” somente agora, em 2020.

Formada por quatro canções, a segunda parte de “Visconde de Guarapuava” abre com “A Cidade”, perfeito exemplo da poética urbana explorada pela banda, anteriormente já mencionada. Está tudo aqui: a névoa de Curitiba, o assalto na padaria, a farmácia traficando drogas e uma abertura indie rock que, no decorrer da canção, ganha força de expressão mediante o jorro de um explosivo solo de guitarra.

Na sequência, a fórmula se inverte: em “Economia”, segunda música do “Lado B”, os solos de guitarra aparecem logo à abertura, para depois desaguarem numa cadência de leseira lisérgica, que soa como uma espécie de jam garageira, inclusive no aspecto verbal (“economia/ deixa todo mundo louco no jornal/ mas ninguém estudou e ninguém tá ligado/ dá pra enrolar legal/ que nem um baseado). Que o leitor não se engane, porém: a sonoridade de improviso, aqui, é apenas aparente – trata-se antes de uma atmosfera sonora desenvolvida em detalhe pelos músicos e que confere um frescor muito particular às canções.

“Bisa”, a terceira faixa, retoma procedimentos já utilizados pela banda em “Oh Pai”, mas também em outras canções, se bem que de forma menos direta. O universo familiar e a crônica das relações afetivas é transformada em música de sabor quase confessional, intimista e emocional, com um caleidoscópio de fragmentos soltos da memória e texturas sonoras de grande beleza.

A principal surpresa e o momento mais alto do disco, entretanto, encontram-se na última canção. “Ninguém nunca morre” é um rock rural, quase moda de viola, que reúne soluções interessantíssimas no plano instrumental e um aspecto lírico mais original ainda. Invertendo a escatologia cristã, seus versos afirmam: “só essa gente que ainda lê a Bíblia acredita no pior”, rebatendo o dado com proposta afinada à intuição – “sou dessa terra onde tudo que se planta nasce/alguma vez você se lembra/que ninguém nunca morre?”.  Ritmicamente, o acompanhamento de um tiquetaque de relógio ou metrônomo, que soa também como cavalgada, amplifica a angústia relativa à passagem do tempo, que está no cerne da canção. Conta ainda a inclusão de um desfecho aparente que, na sequência, mostra-se falso (“ninguém nunca morre”), quando a melodia retorna por mais alguns instantes, antes da música acabar por definitivo.

Estamos falando, vê-se, de um conjunto de canções de primeira grandeza, que fecham em grande estilo um disco que concorre, desde já, ao posto de um dos melhores registros do rock brasileiro das duas últimas décadas – certamente, um dos mais importantes da música no Paraná. E quem, como este autor, esperou ansioso pelo lançamento desta segunda parte de “Visconde de Guarapuava”, agora pode repetir o play – enfim e indefinidamente – em sua plataforma de preferência e tirar a prova real: à revelia de um tempo tão hostil ao rock como forma de arte, o Pão de Hamburguer está aí para satisfazer aos ouvidos mais exigentes. E quem tem olhos para ler, que ouça.

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