Os 12 meses que revolucionaram o jazz

Miles, Mingus, Brubeck e Ornette Coleman tornaram 1959 um ano inesquecível para a música

Em fevereiro do longínquo ano da graça de 1993 eu entrei no curso de Letras da UFPR. Já no primeiro semestre tive aulas de latim, e aprendi que a maioria dos adjetivos latinos tinha três gêneros diferentes (masculino, feminino e neutro), e que no dicionário eles eram apresentados na forma masculina, seguida apenas das terminações do feminino e do neutro. Assim, em vez de longus, longa, longum, o que você veria era longus, -a, -um.

Imediatamente me ocorreu, cacilda, era isso que o Mingus estava fazendo!

Mingus Ah Um foi lançado há seis décadas, no mágico ano de 1959, em que o jazz pareceu tomar um sacudão de proporções épicas. Junto dele, naquele ano, surgiram Kind of Blue, de Miles Davis, Time Out, de David Brubeck e The Shape of Jazz to Come, de Ornette Coleman, quatro novos caminhos, quatro trilhas abertas.

Kind of Blue é o disco de Jazz mais vendido de todos os tempos, em grande medida devido à atmosfera refinadíssima, elegante desde e a abertura “impressionística”, que se derrama num riff perfeito e culmina com o som de prato mais famoso da história do jazz (Jimmy Cobb sempre disse que na hora achou ter pesado a mão, mas num disco quase integralmente feito de primeiros takes, foi esse que ficou).

Em termos musicais, era a nova porta que Miles abria para o jazz “superar” a fase do Bebop. Porque era esse o impasse do fim dos anos 50. O Jazz tinha se tornado cerebral e atlético, tinha atraído intelectuais e se intelectualizado. Se o princípio da improvisação continuava sendo usar a sequência de acordes do tema para criar novas e infinitas frases, o que a geração de Charlie Parker e Dizzy Gillespie tinha feito foi acelerar os tempos e complicar as harmonias, transformando o exercício em algo feito para separar os fortes dos fracos: um verdadeiro teste de inteligência e criatividade musical em alta rotação.

Miles, em Kind of Blue, propunha algo totalmente novo. A dita improvisação modal, em que a troca veloz dos acordes fica de lado, e os músicos “estacionam” por longos períodos numa mesma escala… como que rodando sem um centro de referência.

Isso, mais a atmosfera “cool”, mais o frescor de uma sessão de gravação de meras sete horas, sendo que os músicos conheceram os temas apenas no estúdio… tudo isso gerou algo que é nada menos que uma obra-prima da história da música como um todo.

Os outros três discos desse ano mágico também podem ser vistos como respostas ao dilema do cerebralismo do Bebop.

Mingus, mais politizado, mais caótico, mais pan-histórico, apresentou sua versão do passado do presente e do futuro do jazz.

Num certo sentido, Mingus Ah Um, é de todos os quatro o disco menos preocupado com a superação de algum modelo. Em sua panela cabe de tudo, inclusive o próprio Bebop, reelaborado e reinventado, junto com shouts negros, spirituals, muito blues, muita dança. Música muito mais “festiva”, mas ao mesmo tempo muito mais enfurecida. Música de ação, música de festa, de dança e de luto.

Ah Um foi o disco que criou a reputação do compositor Charles Mingus, até ali mais conhecido como baixista sem par. E em uma faixa como Goodbye Porkpie Hat, com sua longa melodia que seria repetida por todos os músicos de jazz que se seguiram, ou ainda em Self Portrait in Three Colors, onde nem existe improvisação, mas a peça cresce pela sobreposição de camadas novas, o que se vê é o lado refinado da brutalidade de Mingus.

Se Miles seria responsável, durante todas as reviravoltas de sua carreira nas décadas seguintes, pela manutenção daquela indefectível aura “cool” do jazz, Mingus aqui se estabelecia como o santo padroeiro da revolta.

Dave Brubeck, por outro lado, é figura mais complicada. Branco, ele foi por vezes acusado de se apropriar da linguagem do jazz negro e diluí-la para uma plateia branca (Take Five, o tema mais famoso de Time Out, é o compacto de jazz mais vendido da história, e o primeiro tema instrumental a invadir as paradas e as rádios dedicadas à música pop).

Ainda, se a revolução de Miles era na harmonia, e a de Mingus, na linearidade da história, a sua era rítmica, ou seja: tocava justamente o coração “africano” da música. Time Out é uma coleção de músicas escritas em compassos diferentes do eterno 4/4 do jazz tradicional. Sua faixa mais conhecida, afinal, é em 5/4, compasso até hoje difícil de se encontrar na música “acessível” do rádio.

Europeu? Elitista? Stravinskiano?

Mas o que dizer do apelo imediato dessa música aos americanos da época? O que dizer da genialidade de apresentar uma peça em cinco tempos (composição do saxofonista Paul Desmond), com um grande solo de bateria no meio, com o lindo título Take Five, que apesar de ser uma expressão bem conhecida com o sentido de “vamos fazer uma pausa de cinco minutos” (e a gravação original tinha quase exatamente essa duração), no fundo pode significar algo como “encare esse compasso de cinco tempos”!

Brubeck e seu quarteto “integrado” (com o baixista negro Eugene Wright) foram um acontecimento na sociedade de fins dos anos 50, e ainda hoje persiste o impacto da música produzida por aquele grupo afinadíssimo e volátil (Desmond e o baterista Joe Morello tiveram sérios atritos…)

Eu gosto dos três discos.

Queria ser o tipo de pessoa que acha Kind of Blue o melhor deles. Acho fino. Adoraria ser o tipo de pessoa que prefere Mingus Ah Um. Acho bonito. Aceitaria ser o tipo de pessoa que escolhe Time Out. Acho alegre.

Mas, pra mim, a cereja do ano é The Shape of Jazz to Come.

Charlie Haden, que, mal saído da adolescência, tocou baixo no disco, diz que lembra do dia em que, num show de Gerry Mulligan, um doido apareceu e pediu pra tocar. De repente o cara puxa um saxofone DE PLÁSTICO sobe no palco e desmonta tudo que o menino baixista sabia de jazz. Mulligan teria ficado contrariado, e pedido para o rapaz se retirar (essa cena é “homenageada” no primeiro romance de Thomas Pynchon). Foi só alguns dias depois que Haden conseguiu reencontrar o camarada, e lhe disse: “a gente devia tocar junto”. Ao que o jovem Ornette Coleman respondeu: “que tal agora?”

Desse encontro começa a nascer o quarteto que gravaria o disco que talvez ganhe o prêmio de título mais pretensioso de todos os tempos. É baseado num livro de H.G. Wells (The Shape of Things to Come)? Sim. Mas a interpretação literal é incontornável. O disco se chama A forma do jazz que está por vir.

Ouça a abertura, Lonely Woman, e se tiver tempo compare os primeiros segundos com os sons inaugurais de Kind of Blue.

São duas respostas ao Bebop, duas maneiras mais livres de se improvisar. Mas aqui a liberdade beira o total (e o fato de o quarteto de Coleman não ter piano ajuda bastante nessa desconexão com a tradição da harmonia do jazz), o clima é de quase-erro, de uma complexidade absurda, mas baseada em regras que você não entende direito. Se Miles Davis é João Gilberto, Mingus seria a Tropicália e Brubeck, provavelmente João Donato. Mas Coleman… Coleman é um Hermeto Pascoal!

E como me deixa feliz essa urgência, essa festividade e essa dificuldade. Essa aspereza e esse lirismo.

Ele é mais cerebral que Brubeck, mas com os pés bem mais cravados na tradição do jazz. Ele é mais inventivo melodicamente que Miles, e isso é pra bem poucos. Ele é ainda mais bagunçado que Mingus, mas dentro de uma estrutura que o tempo todo insinua um rigor doido. Ele é doido.

Coleman pode até pode ter errado em sua profecia quanto ao futuro: Mingus e Miles foram as vozes que deram, de maneiras diferentes e em momentos diferentes, a cara do jazz que viria; sem nem contar que o Bebop, sob a forma de Hard Bop, continua vivo e ativo. Mas a influência da obra prima de Coleman mesmo assim foi gigante, e o disco continua parecendo vivo e novo, sessenta anos depois.

O fato é que hoje, se você ouve, digamos, o último disco de Ambrose Akinmusire, Origami Harvest, de 2018, vai ver que todas essas quatro trilhas podem convergir, das maneiras mais inesperadas. É essa afinal, a tendência num gênero definido pelo improviso, pela resposta espontânea ao inesperado, pela aceitação do acaso e do tropeço, se for o caso.

Lá naquele primeiro semestre de 1993, pouco mais de trinta anos depois de 1959, a minha vida estava mudando rápido. E o país inteiro, também.

Hoje, quase trinta anos depois, nem se fala…

Tempos instáveis…

Tempos ruins…

Talvez por isso eu ter me voltado ao jazz nos últimos meses. Uma música de vire-se, de esteja-ali, de presença total e consciência, e de uma força vital desgraçada….

Kind of Blue

Mingus Ah Um

Time Out

The Shape of Jazz to Come

Origami Harvest

A escolha é tua.

Mas eles estão bem ali, te mostrando que a música continua acontecendo, bem no centro de tudo, continua se criando sempre nova, a cada vez, a cada encontro, sempre que você aperta play.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Os 12 meses que revolucionaram o jazz”

  1. Hermógenes Saviani Filho

    Galindo. que maravilha de texto! Eu assisti ao teu curso na Escrevedeira sobre ” A Terra Devasta” que foi bárbaro, mas esta tua análise sobre a evolução do Jazz nestes quatro álbuns de 1959 foi de cair o queixo. No dia em que for dar um curso sobre estes quatro álbuns me avise, pois será imperdível. Um forte abraço, mestre!

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