Música clássica: os 12 álbuns de 2021 que você deveria ouvir (parte 2)

Veja dicas de música contemporânea e de compositores obscuros que foram lançados no ano

Tá no nome: a coisa é “clássica” porque foi consagrada, certo? Sim, o cenário dessa música que hoje chamamos de clássica é dominado, desde meados do século 19, pela constante revisitação ao cânone formado por autores e obras ditas “importantes”. O negócio é que o tal cânone não é fechado. A gente está constantemente redefinindo esse panteão – seja ao reavaliar a produção que, por algum motivo, permaneceu desconhecida, seja ao lidar com música que é criada neste exato momento e que é impossível de dizer se vai resistir ao tempo ou não.

Boa parte das dezenas de álbuns clássicos lançados toda sexta-feira no mercado internacional é dedicada ao “caminho menos trilhado”. Discos são um ambiente muito mais permeável à exploração de repertório do que concertos.

Abaixo, os seis álbuns de repertório não-padrão que mais chamaram minha atenção em 2021. Tem música contemporânea, compositores obscuros e um ou outro nome mais famoso. Abra seus ouvidos.

Parte 2 – Novas descobertas

Poldowski
Sonata para violino e piano (1914)
Jeniffer Pike, violino
Petr Limonov, piano
Chandos

O terror dos bibliotecários: o autor com muitos nomes, todos igualmente obscuros. É o caso da compositora anglo-belga Régine Wieniawski, digo, Irène Wieniawska, quer dizer, Lady Dean Paul, não, “Poldowski”. Que difícil! Vamos usar o pseudônimo que ela adotou por último e torcer para que ele se consagre. Poldowski era filha do célebre violinista polonês Henryk Wieniawski e adotou o piano como instrumento (mulheres violinistas ainda eram tabu no final do século 19). Ela se casou com um duque inglês mas se separou poucos anos depois, após a morte do filho mais velho. Foi a partir desse evento trágico que abraçou de maneira mais definitiva a carreira de concertista e compositora. Contemporânea de Ravel e aluna de d’Indy, ela obteve certo sucesso como autora de canções em vida mas… saiu totalmente do repertório após sua morte. Até a violinista britânica Jeniffer Pike incluir, em 2021, a Sonata de Poldowski na sua antologia de obras polonesas para violino e surpreender todo mundo: uau, que interessante é essa obra! Ela lembra Fauré na harmonia e Franck na forma cíclica muito bem amarrada, mas tem uma energia diferente, muito pessoal. Você precisa ser surpreendido também. (O álbum é completado pela sonata que o consagradíssimo Karol Szymanowski escreveu ainda bem jovem e que não é tão surpreendente assim.)

Enescu
Octeto de cordas, op. 7 (1900)
Ensemble Bambú
IBS Classical

O romeno George Enescu está longe de ser um nome desconhecido, mas quero que você faça uma careta e tente puxar pela memória uma obra dele que não seja as “Rapsódias romenas” (ou talvez a Sonata para violino no. 3). Difícil, né? Enescu foi um multi-virtuose como pouco se viu: igualmente assombroso ao violino, ao piano ou regendo. E compondo, vou acrescentar. As famosas e coloridas “Rapsódias” não representam bem sua linguagem musical dada à complexidade. Enescu compunha para superdotados como ele: harmonias ultracromáticas, contraponto hiperativo, formas muito expandidas. É difícil de tocar e bem enroscado de ouvir – mas que música bonita! Este quase sinfônico Octeto de cordas é um exemplar perfeito do estilo cerebrino de Enescu: 40 densíssimos e ininterruptos minutos em uma forma que pode ser analisada tanto como um único movimento de sonata quanto como uma sinfonia completa em quatro partes. Os espanhóis do Ensemble Bambú gastam sua música para dar vida a esse mamute, e conseguem. Você também pode conferir o virtuosismo dessa galera nas obras que completam o álbum: o Prelúdio e Scherzo de Shostakovich e a Serenata do espanhol Javier Martínez Campos, composta em 2016. São adições interessantes, mas é o Enescu que vai fazer os seus olhos brilharem.

Stevenson
Passacaglia sobre o tema DSCH (1962)
Igor Levit, piano
Sony Classical

Apesar do álbum ser obviamente focado nos Prelúdios e fugas de Shostakovich, obra seminal do piano do século 20, vamos deixá-los de lado aqui. A Sony optou por combinar 2 horas e meia de Shostakovich com outra peça gigantesca, ao invés de lançar dois álbuns separados. Não consigo entender: a Passacaglia sobre o tema DSCH, do escocês Ronald Stevenson, merecia receber top billing em um disco só para si. É uma obra-prima em todos os parâmetros que você quiser: pianísticos, formais, criativos, emocionais… Stevenson estruturou sua passacaglia como um fluxo contínuo de música de 1 hora e meia, sempre sobre a base ré-mi bemol-dó-si (na nomenclatura alemã, D-Es-C-H, a assinatura musical de Shostakovich). A música é ininterrupta mas há seções perfeitamente discerníveis que espertamente encaixam formas dentro da forma: começa com uma sonata, vai para uma suíte de danças, conjuntos de variações sobre diversos temas (incluindo um baseado no famoso discurso de Lênin, “Paz, pão e terra”), fugas, imitações de gaita de foles, bunda, bomba atômica, a pia da cozinha, tudo. Cansa? Não! É formidável – onde essa peça estava nesses anos todos, que eu não conhecia?


Weinberg
Quinteto para piano e cordas, op. 18 (1944)
Caderno para crianças no. 3, op. 23 (1945)
Elisaveta Blumina, piano
Noah Bendix-Balgley, violino
Shanshan Yao, violino
Máté Szücs, viola
Bruno Delepelaire, violoncelo
Oehms Classics

Mieczysław Weinberg foi um compositor polonês que viveu na União Soviética desde os 20 anos de idade (toda sua família foi assassinada pelos nazistas; encontrou refúgio no Uzbequistão). Pouca coisa mais moço que Shostakovich, foi eclipsado no ocidente pelo amigo famoso. Sua obra é bem volumosa – inclui vinte e duas sinfonias e sete óperas – e está voltando a circular, aos poucos, há cerca de dez anos. Parte importante da produção de Weinberg está na música de câmara, e este álbum liderado pela pianista russa Elisaveta Blumina resgata duas peças de sua fase inicial: o Quinteto para piano e cordas, estreado em 1944 por ninguém menos que Emil Gilels, e o terceiro “Caderno para crianças”, uma obra didática. O quinteto é obviamente o carro-chefe do disco, embora as miniaturas infantis sejam muito fofinhas (e um bocado sofisticadas também). A inevitável comparação com a obra para a mesma formação que Shostakovich compôs quatro anos antes não lhe é desfavorável (um feito e tanto!). A peçona de Weinberg dura bons 45 minutos e é emocionalmente intensa, formalmente inventiva e demonstra uma coesão temática notável. O ouvinte sai dela oprimido, esmagado; mas o objetivo era esse mesmo, certo? Descoberta impressionante de um autor que não somente merece, mas exige resgate.

Coleridge-Taylor

Quinteto para piano e cordas, op. 1 (1893)
Peças de Fantasia para quarteto de cordas, op. 5 (1898)
Quinteto para clarinete e cordas, op. 10 (1895)

Stewart Goodyear, piano
Anthony McGill, clarinete
Quarteto Catalyst
Azica Records

Quando o inglês Samuel Coleridge-Taylor, contemporâneo mais ou menos exato de Holst e Ives, fez uma turnê nos Estados Unidos, ganhou o apelido de “Mahler africano”. Filho de uma inglesa e de um médico de Serra Leoa com quem nunca conviveu, foi uma criança prodígio. Começou a tocar violino aos 5 anos e aos 15 já estava na Royal Academy of Music. Ficou célebre no Reino Unido graças a três cantatas baseadas no épico de Longfellow, “A canção de Hiawatha”. Morreu com somente 37 anos. As cantatas permaneceram no repertório britânico por algum tempo (Malcolm Sargent fazia grandiosas montagens delas com frequência anual) mas hoje elas soam irremediavelmente datadas – e inglesas demais, apesar da temática indígena. Sorte que outra parte de sua produção está começando a ser resgatada. Este disco de intérpretes americanos traz sua obra para quarteto de cordas, toda escrita na juventude. Coleridge-Taylor tinha 18 anos quando compôs o lindo (e muito dvorakiano) Quinteto para piano e 20 quando escreveu o profundamente encantador Quinteto para clarinete. São peças incrivelmente fluentes, repletas de temas memoráveis trabalhados de maneira hábil. Não há motivo nenhum para você não conhecê-las – ao contrário, foram das minhas maiores fontes de alegria em 2021.

Turnage
Maya (2016)

Mackey
Triceros (2015)

Hillborg
Bach materia (2017)

Neuwirth
Aello (2017)

Caine
Hamsa (2015)

Dean
Approach (2017)

Maya Beiser, violoncelo
Håkan Hardenberger, trompete
Fiona Kelly, flauta
Pekka Kuusisto, violino
Antja Weithaas, violino
Mahan Esfahani, cravo
Uri Caine, piano
Tabea Zimmermann, viola
Orquestra de Câmara Sueca
Thomas Dausgaard, regente
BIS

Programas de concerto costumam usar música famosa como isca para divulgar música contemporânea. O regente dinamarquês Thomas Dausgaard vai um pouquinho além neste álbum: ele pareia cada um dos seis incrivelmente célebres “Concertos de Brandemburgo” de Bach com uma obra especialmente encomendada de compositor contemporâneo. Assim ele não somente usa Bach como alavanca para autores vivos como já lhes fornece a inspiração. Alguns dos compositores ignoraram o par bachiano proposto – como o inglês Mark-Anthony Turnage, que escreveu um solilóquio neorromântico para violoncelo e orquestra de câmara. Outros se ativeram fielmente ao seu par brandemburguês – como o americano Steven Mackey, cuja peça se inicia diretamente na fermata final do Bach, ao trompete; ou como o australiano Brett Dean, que faz o inverso ao compor um prelúdio ao sexto “Brandemburgo”, que lhe sucede sem interrupção. “Bach materia”, do sueco Anders Hillborg, expande o material do “Brandemburgo” 3 com longas sessões de scat singing, e é talvez a obra mais intrigante das seis. As peças menos interessantes são as da austríaca Olga Neuwirth e do americano Uri Caine, pelos motivos opostos: Neuwirth faz um pastiche curtinho e dadaísta do “Brandemburgo” 4; já Caine cria um concertão para piano tão ambicioso quanto descosido. Mas como julgar? É música contemporânea, que estamos vendo ser criada na nossa frente e que, por conceito, não temos como entender direito agora. Saberemos mesmo é no futuro.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima